Por Wesley Sousa (UFSJ)
O
problema
Recentemente
foi publicado um artigo, cuja autoria é da professora Yara Frateschi, na
revista Cadernos de Filosofia Alemã (v. 26, n. 2 – Dossiê Ruy Fausto). O
título é bastante eloquente: Hannah
Arendt e Ruy Fausto sobre a gênese do totalitarismo de esquerda. De
cara, como qualquer leitor atento em filosofia política, lê-se no título, desde
já, algo que chama atenção, e não por menos, problemático. A “gênese do
totalitarismo”, segundo a autora, parte um resgate ao legado teórico que parte
de ambos autores citados, cada qual em seu devido contexto de produção, mas que
se evidenciam afinidades nas reflexões acerca de um certo “procedimento de
negação da realidade que se aproxima daquele do negacionismo de direita”
(FRATESCHI, 2021, p. 31).
Nesse
pequeno texto que se segue em tela, por outra via, proponho-me – e espero
realizá-la – a subverter a questão do que seja essa alcunha (ou se se
queira: conceito político), muito dita e repetida por um conjunto de analistas
de esquerda, cientistas sociais e também de historiadores. Notadamente sob
auspícios de uma parcimônia conceitual, que chegariam às raias da racionalidade
progressista e, no sentido lato, revisitando certas antinomias da
própria esquerda.
A
autora do artigo desconsidera que o desenvolvimento e o consequente trabalho servil,
erigido à divisão social do trabalho, a divisão entre trabalho intelectual e
manual, e a divisão da sociedade em classes diante do processo produtivo.
Somente nessa divisão construída historicamente e de modo efetivo – culminando
no surgimento da política tal como entendemo-la – repõe como necessidade que o controle
do trabalho, dos modos de realização da distribuição e consumo e de seus
processos efetivos, bem como da decisão dos produtores se aliene na classe que
domina e personifica o processo de exploração e a violência direta. Essa
determinação da sociedade de classes, não uma anomalia, mudando suas
formas particulares em momentos históricos determinados pelo desenvolvimento
das forças produtivas e as possibilidades objetivas que derivam das formas do
trabalho. Lembramos que a história não é redutível a “luta de classes”, mas sim
um de tantos outros componentes dela, e não uma “lei suprema da História
enquanto lei do movimento”, como escreve Frateschi, na esteira de Arendt.
Portanto, não uma leitura interpretativa, mas um espantalho marxista.
O
problema, é claro, que os limites e impasses na contextura histórica de um
tempo coadunam com limites e impasses de suas próprias resoluções, parciais ou
não. Nisso não há novidade. A novidade, porém, acarreta às chancelas herméticas
dos conceitos, à revelia de suas essências, parecendo e necessitando tomarem
corpos nas circunstancialidades em que se promulgam tais terminologias. Em tempos
que o debate filosófico aberto é ceifado com vistas de “ofensas”, a filosofia
só pode avançar nos diálogos abertos, visando sempre um horizonte comum de
mudanças. Esse foi o meu dispêndio aqui.
Luta
de classes, democracia e a política – não autônomos, e sim
autonomizados[1]
Em
primeiro momento, vejamos um exemplo rápido como o jusfilósofo Alysson Mascaro
compreende a maneira que “a estrutura política do capitalismo só se erige, nos
dois últimos séculos, em um processo variável de afirmação, negação, garantia,
seletividade e limitação dos padrões de direitos humanos” (MASCARO, 2017, p.
110). Temos, a partir disso, no liberalismo clássico o Estado parte de um
construto teórico, a partir um pacto coletivo, sua função estaria, na
visão dos contratualistas, a de um contrato social. Sua função era de
atender às necessidades vitais, como a liberdade, segurança e à propriedade.
Podemos inferir que o Direito (subsidiando os direitos humanos) está o
resultado lógico pelo qual a classe dominante apresenta como melhor o seu
ordenamento, o mais adequado. No entanto, pari passu, “os
chamados direitos humanos são certo grupo de garantias políticas e jurídicas
específicas respaldadas às mesmas individualidades” (MASCARO, 2017, p. 117).
Nesse
aspecto, essa noção antipredicativa, isto é, a noção homogeneizante do sujeito
de direito é uma mediação pela qual a igualdade jurídica pode se
consolidar no direito à igual exploração real diante da abstração consentânea
dos “direitos humanos” em luta. Por essa razão, o “estabelecimento da sociedade
capitalista resulta que os indivíduos sejam compulsoriamente tratados e
reconhecidos como possuidores de vontade livre, presumidamente igual, para o
contrato de exploração do trabalho assalariado” (MASCARO, 2017, p. 118). Observamos
que, de acordo com esse argumento de Mascaro, pode-se trazer à luz, por
exemplo, em seu artigo Direitos Humanos: uma crítica marxista (2017),
quando afirma a historicidade política do Estado e do Direito, como especificidades
da forma social existente. Eles refletiriam, segundo ele, as próprias formas da
sociabilidade capitalista. Em suas palavras, pois, “os direitos humanos são
negados exatamente por aqueles que operam nos seus termos e louvores. Sua
institucionalização e sua reprodução são lastreadas por vários níveis de formas
sociais e relações necessárias” (MASCARO, 2017, p. 110).
Nesse
sentido, não se trata de negar por conveniência ou “relativizar” o que
se chama de “direitos humanos” de uma suposta esquerda revolucionária,
mas compreender objetivamente do que são: trata-se, em verdade, de
compreender sua objetivação imanente na sociedade de classes. Não nos é lícito,
por – ironicamente – à conveniência de fazer dos arquétipos jocosos e
pejorativos, tais quais se lê na letra de Frateschi (se a discussão dela é com
a ideologia requentada do stalinismo de alguns “influencers” digitais,
aí tudo bem), onde os revolucionários “considerem hipócrita e assassino o
antitranscendentalismo de circunstância da burguesia imperialista europeia, nem
toda esquerda considera hipócrita e assassino o antitranscendentalismo de
circunstância jacobino e bolchevique” (Idem, p. 35).
Desta
maneira, a luta de classes seria um dos pontos nodulares para compreender tal
fenômeno: a política é, sem pestanejar, um efeito da luta de classes. Esse fenômeno
consolidado apenas nos escritos de Marx – embora existentes de modo mais tímidos
em várias filosofias anteriores, inclusive Adam Smith, Rousseau e Hegel, por
exemplo), pôde desvelar à luz do “materialismo histórico” (termo que nunca usou
e lhe é atribuído), sobretudo, como a luta de classes é travada não apenas em
um âmbito comumente entendido, sobretudo no próprio político, no jogo
“institucional”, na formação de partidos, direitos civis (que condensam ideias
de grupos específicos em disputa), etc.
Marx
não despreza de todo a emancipação política, isto é, a renovação
histórico-concreta da morfologia do Estado. A vê como um processo incompleto,
como uma realização parcial da humanidade. O homem tenta se emancipar com o
Estado Moderno em seu pleno acabamento, isto é, tenta chegar à pureza
universalista através deste complexo, mas ainda não se emancipa realmente, na
vida concreta, na sua realidade efetiva, deixando o indivíduo privado, a
sociedade privada, como reino das particularidades, alienações e desigualdades,
intacta e pressuposta como sociedade natural. Para arrematar, os direitos do
homem, distintos das diretrizes do direito do cidadão, são os direitos da vida
privada, da individualidade e sociabilidade burguesas em seus termos, do
indivíduo entificado como “mônoda egoísta”, isto é, o “homem” é o homem
burguês, forjado no em-si-mesmamento e a atomização da sociedade burguesa
(COELHO; SOUSA, 2020, p. 36).
Em Arendt,
por outra via, vemos as considerações acerca da violência, para “salvar” o
conceito da política. Coloca que a violência, ainda que possa ser usada como
elemento político, ela própria não pertence a este campo. De fato, nas palavras
de Marx e Engels, “O poder político é o poder organizado de uma classe para a
opressão de outra”. Exatamente é o poder político (o Estado) que “organiza” a
sociedade, por isso, nem sempre a violência é o recurso direto para “ordenar” a
sociedade – ou, no jargão popular: manter os pobres e oprimidos em seus
lugares. Assim como a democracia e ditadura são duas formas distintas de
dominação de classes, a violência direta ou indireta faz parte do modus
operandi da divisão social do trabalho. Por isso, a “violência
revolucionária” nada mais é que um ato histórico contingente, realizado por
forças objetivas e subjetivas que se convergem, num sentido de uma prévia
ideação de seu ato realizador, não de seus “fins”. Não se trata de um normativismo teórico “totalitário” ou quaisquer adjetivações similares. Com
isso, uma suposta teleologia histórica pode ser rejeitada de quaisquer
perspectivas críticas, quais sejam, se se queira criticar o “marxismo”. Há uma
passagem do filósofo brasileiro José Chasin, muito clara a respeito do problema:
Em
Marx, o estado e a política em geral, como domínio separado, devem ser superados
por meio de uma transformação radical do complexo social. A ação social
perspectivada não poderá ser uma revolução política, mas social, sob pena de
pagar o ônus de ficar entravada dentro dos confins das formas políticas
antiquadas. A revolução social visa a remover a contradição entre parcialidade
e universalidade que as revoluções políticas do passado sempre reproduziram, submetendo
a sociedade em seu complexo ao domínio da parcialidade política, em benefício
do setor ou setores dominantes da sociedade civil. O agente social da
emancipação é o proletariado. As lutas políticas e socioeconômicas constituem
uma unidade dialética; consequentemente, descuidar da dimensão socioeconômica
priva a política de sua realidade” (CHASIN, 2013, p. 25).
A
política nasce com a sociedade de classes e com ela se vai (esse ponto não é
pacífico nem no marxismo, muito menos fora dele.). O sentido da política
só pode ser compreendido nesses termos: há a centralidade da política no
mundo contemporâneo para sua crítica ou afirmação, ou, por outro lado, é o
mundo contemporâneo que se coloca essa pretensa “centralidade” no real? A
liberdade é, de fato, um predicado idealizado da política? A esfera
pública pressupõe a política? Essas e outras questões, a meu ver, falta-nos
tratamentos corretos na filosofia política contemporânea – em especial na
“esquerda não-marxista”.
A democracia,
por seu turno, não é mais que um arranjo concessionário questionado a cada
passo da luta de classes, logo vê-se que ela não é um “valor universal”, assim
como a política não possui sua legalidade própria. Esse apanágio da centralidade
do político é evidente nos complexos sociais, configurando um certo
conservadorismo filosófico e político em Arendt que se adensou ao longo de suas
formulações críticas, mesmo não diretamente, em relação às filosofias
emancipatórias, como em Marx e Lênin. Ao
que nos interessa aqui, entende-se a “democracia” como um elemento, não somente
ponto chave estanque, mas como um processo
contínuo. A supressão da democracia formal de hoje para erigir-se outra,
como um processo não de “reformas”, ou de defesa ampla e abstrata das instituições burguesas, mas colidir imediatamente
contra elas, para colocar em processo a democracia substantiva e socialista
(cf. LUXEMBURGO, 2018).
Deslizes
de um debate mal colocado
Para Arendt,
o fenômeno da revolução, por ser essencialmente um acontecimento político,
não teria por finalidade resolver problemas econômicos e sociais. Ele existe
unicamente para fundar um novo corpo político em que o espírito seja a
liberdade. No entanto, as revoluções históricas têm-nos demonstrado o
contrário, como foi o caso das Revoluções Russa e Chinesa (SOUSA, 2020, p. 12).
A insistência revisitada por Frateschi não é casual. Assentada às teses
arendtianas, é então Ruy Fausto que recoloca arbitrariamente a questão do
“progresso”, numa pretensa filosofia da história. Inclusive chega a ser, no
mínimo, curiosa a ideia de “regressão histórica” advogada pelo autor e que
Frateschi reconhece: Arendt esteve ciente da ligação umbilical entre o domínio
imperialista como forma política do capitalismo: “o racismo e a prática de
extermínio como política de Estado” (ibidem, p. 41).
O
sentido da “tese de que as revoluções russa e chinesa implicaram regressão
histórica, Fausto precisa se comprometer com a ideia de que ambas interrompem
uma linha de progresso histórico” (p. 39). É claro – e vale mencionar – não é
plausível, como faz Arendt e Fausto, cada qual a seu modelo, atribuir certa
responsabilidade nos acarretamentos históricos que as contingências
revolucionárias podem fazer (o que faz sequer sentido); por outro lado, é
inconcebível também colocar o desígnio “comunista” como similar ao nazismo –
talvez paridade de gênero e câmaras de gases sejam a “mesma
coisa” no fantástico mundo do “antitotalitarismo”... Afinal, qual
“negacionismo” e “fake News” temos agora?
Chega
a ser estranho a caracterização de liberdade pela autora no artigo, com sendo a
perspectiva revolucionária, então, uma aversão às liberdades (o que
significa isso?). A associação entre liberalismo e democracia – em que
Frateschi desvia o olhar, em certo sentido, baseando-se na raquítica e
deletéria concepção de Fausto – teve uma função ideológica quase que exclusiva.
Podemos citar algumas das personalidades liberais, em diversos momentos, capazes
de exprimir esta mesma desconfiança pela democracia, como Hayek: já na segunda
metade do século XX, manifestando a desconfiança pelo sufrágio universal e
pela democracia, que deveria ser entendida exclusivamente a isonomia,
isto é, igualdade frente à lei. Até hoje nas relações internacionais, o mundo
liberal é inimigo da “democracia” (partindo do princípio universalista de
igualdade substantiva). Winston Churchill, genocida conhecido, mas
tratado como “democrata”, amava dizer que, no plano internacional, os países
mais ricos deveriam “dirigir” os mais pobres (basta recapitular o que ele fizera
na Índia, por exemplo). A discriminação censitária, expulsa pela porta
na democracia nacional, volta pela janela na democracia no plano internacional.
Por exemplo, esse também era, a seu modo, o pensamento de Benjamin Constant,
que considerava as classes populares como menores de idade incapazes de
participar das questões políticas (cf. LOSURDO, 2014, p. 185). Isso apenas para
ficarmos em exemplos canônicos.
Entretanto,
voltando para o que nos é relevante compreender aqui no texto, a concepção
revolucionária de Arendt, nas palavras de Hobsbawm, constitui uma “certa
ausência de interesses dos simples fatos” (HOBSMBWM, 1985, p. 205), enquanto
ela enxerga a problemática do “político”. Nesse sentido, tanto a leitura
requentada de Fausto quanto os comentários de Frateschi, diretamente,
partem de princípios circunstanciais e enviesados para corroborarem uma petição
de princípio do “totalitarismo”, como termo guarda-chuva na filosofia. Seria
interessante, no caso, entender que esses conceitos – ou o revisionismo
histórico que, factualmente, configuram-se numa atitude reacionária e
desonesta na historiografia (cf. HOBSBAWM), como demostramos a seguir. Contudo,
para ilustrar o viés conservador e bastante questionável da visão arendtiana
acerca da História, vale trazer à tona passagens dos escritos do historiador
britânico Eric Hobsbawm:
(...)
no que concerne aos estudos da Revolução francesa e da maioria das outras revoluções
modernas, /.../ O livro [de Arendt], portanto, sobrevive ou sucumbe não pelas
descobertas da autora ou por sua percepção em relação a certos fenômenos
históricos específicos, mas pelo interesse de suas ideias e interpretações gerais
/.../ Haverá autores, sem dúvida, que acharão a obra de Hannah Arendt
interessante e proveitosa, mas é improvável que entre eles se incluam os
estudiosos das revoluções, sejam eles historiadores ou sociólogos (HOBSBAWM, 1985,
p. 202-8).
De tal
modo, qualquer entendedor de marxismo, coerente com seus princípios, sabe que o
marxismo não é uma receita revolucionária de violência ilimitada como se
fosse um gozo social do que a própria violência própria do capitalismo já impõe
às pessoas cotidianamente. A crítica marxista à democracia persiste
nisso: em seus próprios termos, nas suas limitações impostas pela sociedade de
classes, e não de “modelos” erigidos mentalmente para fazer destes um conceito
filosófico, como é o caso de Arendt e Fausto, apontando “reticências” em
Marx acerca da liberdade. Engels no seu “Anti Duhring”, ao rebater noções
arbitrárias da “liberdade”, revela aqui um elemento igualmente fundamental
sobre ela. Para ele, “A liberdade consiste, portanto, no domínio sobre nós
mesmos e sobre a natureza exterior baseado no conhecimento das necessidades
naturais; desse modo, é necessariamente um produto do desenvolvimento
histórico” (ENGELS, 2015, p. 113), isto é, domínio que se estabelece apenas
sobre formas específicas de organizações sociais, não de construtos mentais ou
de “leis férreas” na história...
Ademais,
com relação à democracia, fazemos algumas pontuações no que se deriva
dessa crítica do Estado – e escapa aos auspícios idealistas da filosofia
política tradicional. Pois, como veremos, para que citemos Rosa Luxemburgo, a
sua defesa da democracia não é simplesmente uma defesa abstrata, nem de forma
voluntarista (como aparece no artigo de Frateschi dando ensejo à Fausto e
Arendt), mas viceja uma abolição da democracia liberal, ou seja, superação
a ditadura do capital (“democracia burguesa”) e erigir uma democracia social,
ou seja, uma transformação revolucionária, e não reformas no âmbito do capital.
Isso relaciona-se diretamente com a crítica do Estado, a democracia burguesa,
etc.
Rosa
Luxemburgo, quando escreve “Reforma ou revolução?”, fez tratar da política
alfandegária e do militarismo, o desenvolvimento da burguesia, no sentido que
exerceram, até certo ponto, papeis revolucionários, indispensáveis na história
do capitalismo – acumulação e expansão do capital; logo após, porém,
postula que “O militarismo também transformou-se de motor do desenvolvimento
capitalista em uma doença capitalista”. Com isso, o Estado, como uma locomotiva
da reação, adquire funções cada vez mais controladoras, gerenciais e, por
finalmente, descarrilha ao iminente aparato repressivo e violento. De modo
direto, Luxemburgo assevera, a partir disso: “O desenvolvimento da
democracia no qual Bernstein também vê como meio da instauração gradual do
socialismo, não contradiz, mas, pelo contrário, corresponde inteiramente à
mudança do Estado descrita acima” (LUXEMBURGO, 2018, p. 34).
Observa-se
ainda como esta crítica se coloca: segundo a autora polonesa, a democracia, isto é, o “controle social”,
estaria correlacionada com a expansão militarista e do colonialismo. Assim, “as
formas democráticas da vida política são um fenômeno que expressa de maneira
mais forte a evolução do Estado para a sociedade”. A partir dessa qualificação,
arremata da seguinte forma:
Diga-se
que, de acordo com a forma, a democracia serve para expressar os interesses de
toda a sociedade na organização estatal. De outro lado, porém, ela expressa
apenas a sociedade capitalista, isto é, uma sociedade em conformidade com os
interesses capitalistas. As instituições que, por sua forma, são democráticas,
tornam-se assim, por seu conteúdo, instrumentos dos interesses de classes dominantes.
[...] E a democracia como um todo não aparece como um elemento imediatamente
socialista, que pouco a pouco preenche a sociedade capitalista [...], aparece
como um meio especificamente capitalista de amadurecer e expressar as
contradições capitalistas (LUXEMBURGO, 2018, p. 35-6).
Ainda
sobre a questão do “totalitarismo”, como se fosse uma “perversão” da democracia,
volta a dizer José Chasin, que a difusão do conceito, abarcando noções que, no
contexto do capitalismo, é uma perenidade do poder do Estado (como dito,
o Estado é inerente à luta de classes e ao capitalismo). O comunismo, enquanto
uma possibilidade histórica futura, é uma possibilidade objetiva, real.
Para ser claro, afirmar que a URSS foi ou não “totalitária” não torna o
comunismo mesmo menos possível ou “despótico” (justamente porque o comunismo é
a superação do Estado, da propriedade privada e da família patriarcal). Com
isso, percebe-se o “totalitarismo de esquerda”, postulado como uma
“consequência” do marxismo, nos termos aqui empregados, “é uma generalização de
aparências relativas a concretos distintos, dos quais, por força não empírica,
foram abstraídas, sem justificativa, determinadas características, dentre as
quais exatamente aquelas que tornariam irrelevante a similitude fenomênica, e
impossível a confusão dos concretos, reduzindo, portanto, radicalmente o
alcance da generalização” (CHASIN, 2012, p. 20).
É
precisamente o universal abstrato que permite à crítica liberal, dando extensão
máxima ao conceito de totalitarismo, aglutinar uma multiplicidade de fenômenos,
distintamente situados, sob o mesmo rótulo que os confunde sob o pretexto de os
explicar. É nessa linha de procedimento que assistimos ao “monopólio” do poder
se transformar em “monopólio” do poder em geral (tendo se tornado “monopólio”,
isto é, totalitário, exatamente porque não se apresenta difuso, como é
pretendido que ocorra no estado liberal), obviando-se, sem justificativa, o
fato de que o poder sempre implica a questão da hegemonia. Todo o raciocínio
funda-se claramente em posição ideológica, afirmando, contra toda evidência,
que no estado liberal todos têm, ou pelo menos tendem a ter, algum poder. Em
outros termos, que o poder é, aí, difuso, disseminado em geral. Difusão, aliás,
que é tomada como o único antídoto ao mal que o poder é intrinsecamente, seja
ele qual for. O poder, assim, é um mal em geral, ao qual só se pode contrapor
sua própria fragmentação (difusão). Apesar de um mal, portanto, a crítica
liberal não se põe a perspectiva de uma superação do estado e de seu poder,
recomendando, por assim dizer, difundi-lo contratualmente. O que revela, à
medida que o contrato não é efetivamente celebrado entre iguais, que a
ideologia liberal apoia-se no universal abstrato para defender um privilégio
concreto particular (CHASIN, 2012, p. 17).
Por
outro lado, o marxismo é um campo de pensamento, um tanto quanto
heterogêneo, e abarca parte do que se chama de “esquerda”. Sabemos – e aqui validamos
Frateschi – que a crítica às experiências ditas socialistas no séc. XX são
importantes para caminhar ao futuro, mas desde que nos seus próprios termos. Decerto,
não se trata de uma “defesa apaixonada” do marxismo; refere-se às próprias
antinomias pelas quais, nos comentários de Frateschi, ressoam tanto a
arbitrariedade filosófica quanto uma abstração irrazoável da crítica. Talvez,
em alguma medida, ao invés de tratarmos exaustivamente de conceitos
facilmente manipuláveis pelo escrutínio do pensamento analítico, analisaríamos
relações sociais concretas.
Para
isso, vale chamar de “totalitarismo igualitarista” qualquer coisa para
equivaler uma pretensa crítica racional. Se a esquerda quer mesmo superar
dilemas que nos impõem hoje no capitalismo, não há outro horizonte que não se
passe pelo socialismo. Pode-se dizer o que for sobre o sentido do
“totalitarismo”, mas explicar como se dá esse totalitarismo não confirma que ele
seja plausível. Não é a tipologia conceitual que instaura uma muralha do que
é democrático ou antidemocrático, mas as estruturas sociais permeadas pela
estratificação de classe que dá ensejo a uma política democraticamente restritiva
de dominação de classe, direta ou indireta.
Considerações finais
Segundo o filósofo marxista György Lukács, o stalinismo
(termo comum na concepção da ideologia “totalitária” no imaginário da tese
arendtiana) representou o desaparecimento das “tentativas ideológicas
dos últimos anos de Lênin, que visavam a construir uma democracia socialista
real”. Nesse contexto, o autor húngaro
assevera que essa oportunidade de democracia fora do partido-Estado, ademais,
acabou por ser aviltada pelo modelo stalinista
(se tornou tendência nos partidos comunistas ao redor do mundo), mas que, de
maneira, alguma, é a essência marxista. Isso tornou visível que “o aspecto de
maior destaque é que a atividade autônoma das massas praticamente despareceu,
não apenas na chamada grande política, mas também na regulação da vida
cotidiana destas massas” (LUKÁCS, 2008, p. 170) sob o “socialismo real”.
Nisso,
também, implica uma autocrítica séria e serena de nosso passado para voltarmos
às vias de um novo no futuro. Lembrando Marx, sobre o caráter da revolução
socialista – portanto, de caráter mundial. Nos termos de Marx, “uma revolução
política com alma social”. Não apenas por uma descrição singular de fatos
históricos e políticos específicos, mas pela exposição das disputas que se fazem
na política burguesa desde então. Nesse ínterim, para que possamos ir para além
das formalizações de Estado ou da “democracia representativa” – o que está
longe de legitimar o enrijecimento do Estado, seja no verniz
social-democrata, seja no verniz stalinista, que esbarram nos mesmos elementos
e imperativos inexoráveis que Marx enfatizara criticamente.[2]
Sobre
o “totalitarismo de esquerda”, ou melhor, revolucionário, há um elemento que não
coaduna com a perspectiva das lutas transformadoras, que servem como guia para
olhar ao futuro, não repetindo, portanto, os ditos erros anteriores. Não
significa colocar de modo unilateral uma espécie de “academicismo” teórico, mas
seu oposto: o papel do intelectual revolucionário, com justeza no diagnóstico e
os desacertos das atuações de nossa trincheira, não meras “aplicações” de
modelos na realidade social. Portanto, ter a práxis coerente que daí insurja a possibilidade do socialismo. Só assim
essas noções obtusas de “totalitarismo” ficarão nos museus das ideias e na
tumba histórica do capitalismo, assim como a máquina à vapor a roca de tear.
Por
finalmente, em minha concepção, a filosofia serve para clarear conceitos,
não os criar deliberadamente ou englobar fenômenos tão díspares e antagônicos
entre si – como foi o “comunismo” e o “nazismo”. O primeiro via a superação
do capitalismo (superação do patriarcalismo, propriedade privada, colonialismo,
opressão de gênero, etc), enquanto o segundo, visa apenas aprofundar o que há
de mais podre no capitalismo: racismo, xenofobia e limpeza étnica. A
primazia da apreensão dessa realidade na pesquisa filosófica é quem orientará
as formas de condução objetal, não o contrário. Nesse sentido, não diria que
o “totalitarismo” não possa significar nada, apenas defendo no meu argumento
que ele, em tal sentido que ele se emergiu, significa muito menos do que se supõe,
pois tenta abarcar fenômenos gerais que o conceito particular não dá conta
de lidar por si. O debate aqui expresso, todavia, terá cumprido seu
propósito só de lançar luz às questões apontadas no decorrer do texto. Por
isso, o autor se dá por satisfeito de poder realizá-lo.
Referências
COELHO, Henrique; SOUSA,
Wesley. “Marx a tripla crítica ontológica”. Aurora, Marília-SP, v. 13,
n. 2, p. 27-52, 2020.
CHASIN, José. “Democracia e
emancipação humana”. Verinotio. Belo Horizonte. n. 15, ano 8, p. 22-27,
2013.
CHASIN, José. “Sobre o
conceito de totalitarismo”. Verinotio. Belo Horizonte, n. 14, ano 8, p.
15-21, 2012.
ENGELS,
Friedrich. Anti Düring. Tradução Nélio Schneider. 1°
edição. São Paulo: Boitempo, 2015.
HOBSBWM, Eric.
Revolucionários. 2° edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1985.
LOSURDO, Domenico. “Uma
análise crítica da relação entre liberalismo e democracia – Entrevista com
Domenico Losurdo”. São Paulo, Crítica Marxista, n. 39, p. 173-183, 2014.
LUKÁCS, György. Socialismo e
Democratização:
escritos políticos 1956-1971. Tradução Carlos Nelson Coutinho e José Paulo
Netto. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008.
LUXEMBURGO, Rosa. Rosa Luxemburgo: textos
escolhidos. Vol. I (1899-1914). Org.
Isabel Loureiro. Tradução Stefan Klein, Grazyna Costa... 3° edição. São Paulo:
Unesp, 2018.
MARX, Karl. O 18 de
brumário de Luís Bonaparte. Tradução e notas Nélio Schneider; prólogo
Herbert Marcuse. São Paulo: Boitempo, 2011.
MASCARO, Alysson. “Direitos
humanos: uma crítica marxista”. Lua Nova, São Paulo, 101: 109-137, 2017.
SOUSA, Wesley. “A crítica marxista ao conceito de trabalho em Hannah Arendt”. Belo Horizonte, Contextura, v. 11, n. 14, p. 7-20, 2020.
[1]
Agradeço ao amigo Lucas Maciel (UFMG) pelos comentários e sugestões na
elaboração desse texto. Certamente, foram muito válidos, ainda que não todos atendidos,
dado o caráter mais “prosaico” do texto.
[2]
“Não é do passado, mas unicamente do futuro, que a revolução social
do século XIX pode colher a sua poesia. Ela não pode começar a dedicar-se a si
mesma antes de ter despido toda a superstição que a prende ao passado. As
revoluções anteriores tiveram de recorrer a memórias históricas para se
insensibilizar em relação ao seu próprio conteúdo. A revolução do século XIX
precisa deixar que os mortos enterrem os seus mortos para chegar ao seu próprio
conteúdo. Naquelas, a fraseologia superou o conteúdo, nesta, o conteúdo supera
a fraseologia” (MARX, 2011, p. 28- 29).