Acervo Crítico Entrevista: com Gustavo Machado

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Gustavo Machado Possui é graduação em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Minas Gerais (2007). Mestre em filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (2016). Atualmente é pesquisador do Instituto Latino-americano de Estudos Socioeconômicos - ILAESE e doutorando em Filosofia Política pela UFMG. Além disso, possui um canal no Youtube, “Orientação Marxista”, feito para divulgação de conteúdo voltado à Marx e o marxismo.


Acervo Crítico – Para iniciar nossa entrevista, sua pesquisa envolve o marxismo, em especial a questão da história. Você publicou seu livro “Marx e a História” (Editora Sunderman) falando que, em linhas gerais, não existe uma “teoria da história” no autor. Qual a ideia geral do seu livro?

Gustavo Machado – A tese central do livro envolve dois aspectos aparentemente distintos, mas que, como procuro mostrar, estão entrelaçados: a questão da história e das particularidades nacionais em Marx. Abra qualquer manual, livro ou vídeo introdutório ao pensamento de Marx e este provavelmente irá se iniciar com a apresentação do que seria a pedra filosofal do seu pensamento: a descoberta de uma teoria universal da história. Por vezes tal teoria é descrita de forma esquemática e determinista, outras, de forma mais sofisticada, dizendo se tratar de uma teoria da história aberta. Às vezes como filosofia da história ou a exposição da estrutura objetiva de toda história da humanidade, mais recorrentemente nas últimas décadas, como teoria do conhecimento ou um método universal que permite analisar todas formas históricas particulares e concretas. A tese que sustento é que nada disso existe no pensamento de Marx. Não há teoria da história alguma, em nenhum dos sentidos acima mencionados. Fomos de tal forma bombardeados por exposições do pensamento de Marx nesse sentido que, de início, minha tese pode parecer um exagero, mas se analisarmos com calma, veremos que não é o caso. Não existe um único livro ou artigo, mesmo não publicado, em que Marx apresente a sua suposta teoria da história. Vários materiais utilizados com esse objetivo, como a Ideologia Alemã, são textos polêmicos que se regem pelo que foi escrito pelo antagonista e sem qualquer pretensão de apresentar um sistema próprio, por assim dizer, positivo. Afora trechos isolados arrancados de seu contexto, resta as teorias da história “marxistas” tão somente o prefácio do livro Contribuição à Crítica da Economia Política de 1859. A questão fica ainda mais inusitada. Marx teria apresentado sua teoria mais geral e suposta base de todo seu pensamento unicamente em uma breve formulação de poucas páginas, inserida em uma nota autobiográfica de um prefácio. Pior ainda, uma formulação em que Marx diz explicitamente se tratar, não de um ponto de partida, mas da conclusão a que chegou e que, uma vez adquirida, serve de guia para seus estudos. Dito isso, procuro mostrar em meu livro que Marx não elaborou teoria da história alguma, mas tão somente uma concepção materialista da história. Esta se caracteriza justamente por negar a intervenção de qualquer princípio transcendente ou ordem natural na histórica humana e se direcionar ao estudo da forma por meio do qual os homens se organizam para sobreviver em cada forma social específica. Estas formas sociais específicas são estudadas de modo completamente imanente, analisando-as internamente, sem recorrer a princípios externos e supra-históricos, necessários em qualquer teoria geral da história.  Mas, com isso, não minimizo o papel da história no interior do pensamento de Marx. Ele recorre constantemente as formas sociais do passado, mas sempre com o objetivo de capturar a gênese e a especificidade da única forma social que analisou e expôs de forma sistemática: o capital e o capitalismo. No intuito de demonstrar essa tese, eu percorro todo Livro I de O Capital no capítulo três de meu livro, além de analisar passagens decisivas do Prefácio de 1859 e dos Grundrisse nos dois primeiros capítulos. Apenas depois de desfazer de todas teorias da história eu posso, no capítulo quarto do Livro, mostrar o papel das particularidades nacionais no pensamento de Marx, examinando dezenas de artigos sobre a Índia, China e Irlanda. Demonstro, por meio do exame atento dos textos, que Marx não ignora as particularidades nacionais em função de uma filosofia universal que sequer existe. Mas também que não autonomiza as particularidades nacionais, já que elas se manifestam, agora, no interior de uma universalidade efetivamente existente: a do capital com seu arsenal de categorias abstratas e impessoais. O interesse de todo esse debate que apresento no livro não é meramente teórico. Acredito ser fundamental destronar todas teorias da história marxistas, para que Marx volte a ser, nas palavras de Rosdolsky, “uma fonte viva de conhecimentos e da prática que se guia por ela”.

AC – No seu doutorado, qual é seu objeto que vem desenvolvendo como tese? Poderia nos apresentar um pouco dela?

G – O meu doutorado é, segundo minhas pretensões, a continuidade do livro Marx e a História. Agora, o tema é Marx e a Filosofia. A continuidade, contudo, não está na mera justaposição dos temas. Tomo como pressuposto os resultados atingidos no primeiro livro, já que uma teoria universal da história apenas seria possível por meio de um sistema filosófico geral que o sustente. É exatamente assim que os manuais consideram a questão: materialismo dialético ou filosofia geral do universo e da matéria e, na sequência, materialismo histórico ou teoria suprema do homem. Lá tratou-se de sepultar o materialismo histórico assim compreendido. Agora, trata-se de enterrar, de uma vez por todas, o materialismo dialético entendido como filosofia geral de mundo. Mas da mesma forma que no meu primeiro livro, não o faço para secundarizar o papel da filosofia. Ao contrário, pretendo resgatar toda originalidade filosófica de Marx com uma leitura dos três livros de O Capital compreendidos como crítica à metafísica. A tese se afasta, portanto, das elaborações dominantes até os anos de 1970 que viam uma filosofia nos escritos ditos de juventude de Marx, depois abandonada ou meramente aplicada em sua obra posterior. Se afasta igualmente da hipótese dominante desde então, que toma a filosofia de Marx como mero prolongamento ou desenvolvimento da lógica hegeliana materializada em O Capital. Mas coincido com esse último grupo de autores ao encontrar em O Capital, o livro que Marx dedicou toda sua vida a escrever e nem sequer concluiu, o que podemos chamar, mais propriamente, da filosofia de Marx. Não como algo presente nessa ou naquela passagem dita filosófica, mas tomando a estrutura total da obra. Em linhas gerais, meu objetivo é mostrar que a crítica da economia política que subintitula todos os livros de O Capital, pode ser interpretada como a crítica a aparência mística do capital, sem modo metafísico de aparecer e manifestar-se, modo esse em que categorias efetivamente abstratas como mercadoria, dinheiro e capital aspiram em vão apagar tudo que é sensível, humano, acidental, situado no tempo e no espaço. Nesse caminho, pretendo demonstrar como Marx subverte inúmeras significações filosóficas que se cristalizaram no curso da tradição ocidental, de tal forma que as assumimos mesmo sem ter clara consciência, como é o caso, para citar apenas um exemplo, das Categorias de Aristóteles.

AC – Seguindo o mote da primeira questão, vemos alguns autores críticos do marxismo falando em “teleologia” do comunismo, ou seja, um “fim da história”. Ainda que se põem contra a teleologia, eles mesmos reproduzem a ideia, como Popper em sua presunçosa crítica do marxismo. Na sua visão, por que isso acontece, de várias teorias críticas do marxismo, recorrerem erros que eles tentaram “combater”?

G – Tradicionalmente, o termo teleologia é aplicado a autores cuja elaboração tem forte senso histórico. Por vezes, é o caso, como em Hegel. O contrário, no entanto, é mais verdadeiro. Autores liberais, por exemplo, comumente julgam a realidade e a história com base em um modelo abstrato de funcionamento da sociedade e tem como pressuposto, conscientemente ou não, a ideia de uma ordem natural diante da qual todas formas de sociedade do passado são julgadas como artificiais.  O mesmo ocorre com correntes políticas que fundam seu exame da sociedade burguesa em modelos políticos abstratos ditos republicanos, democráticos e assim por diante. Modelos que se fundam em aspectos conceituais abstratos e independente da história. Assim, projetam a história em estruturas abstratas que subsistem apenas no pensamento, aspectos retirados inconscientemente da sociedade burguesa e, em seguida, adornados e universalizados. Em Marx, ao contrário, não há teleologia alguma. É verdade que ele afirma a tendência do comunismo como existente no interior do próprio capitalismo, mas o faz baseado unicamente na análise interna da sociedade burguesa, sem qualquer vestígio de ordem natural, de teorias gerais da história, de uma ética ou regimes políticos universais assentados em noções abstratas como justiça, o bem etc. Por outro lado, Marx indica, igualmente, as contratendências internas do capital que levam a divisão da classe trabalhadora, a consciência meramente individual e as possibilidades de reprodução do capital ainda que sob uma base mais estreita de acumulação. É por isso que o comunismo aparece em Marx como uma possibilidade. Como uma tendência necessária, ao lado da qual figura tendências outras. Por esse motivo ele não se limitou a construir uma teoria científica sobre o capital e o capitalismo, mas, também, fundou partidos e associações, editou jornais e livros de propaganda. Por esse motivo a tarefa suprema do marxismo, com base no exame teórico da realidade, é fundamentalmente prática e pode ser resumida nas palavras certeiras de Chris Arthur no último capítulo de seu livro sobre O Capital: “O ponto da teoria marxista não é acadêmico da observação e previsão, mas reside na contribuição que faz em trazer o proletariado para a consciência de sua tarefa”.

AC – Gustavo, como marxista, provavelmente conhece a tese de José Chasin sobre a “ontonegatividade da política” a respeito de Marx. Qual sua posição acerca desse debate?

G – Conheço sim. Penso que o conteúdo mais geral desta tese está correto, ainda que prefira não usar o termo ontonegatividade, por motivos que deixarei claro logo adiante. Antes, é preciso fazer uma observação mais geral a esse respeito. Parece-me que tal tese é vulgarmente apropriada por parte expressiva dos estudantes e intelectuais brasileiros que dizem acompanhar a tese de Chasin. Em sua formulação original, tal tese não tem nada que ver com um certo desdém pela atividade política. Nunca se tratou de relegar para segundo plano a atividade política, mas de fundamentá-la em um programa firmemente assentado nas necessidades sociais e não o contrário, por isso, a expressão de Marx de uma “revolução política com alma social”. O caráter científico da elaboração de Marx consiste exatamente nisso: fundar seu projeto de transformação social nas possibilidades socialmente e objetivamente postas e não na aplicação externa de um projeto político cujo fundamento reside em si mesmo, um projeto político autônomo, introjetado desde fora à sociedade. Segue-se daí que a política (ou o político, como preferem os sociólogos socráticos) não pode ser considerada a parte das formas de sociedade no interior das quais sua existência mostra-se necessária. A política não é uma condição eterna da existência humana e a emancipação da classe trabalhadora despe a atividade humana de seu caráter político. Observem que desta formulação não se deduz absolutamente nada a respeito do fim da forma partido, tampouco se nega a necessidade do proletariado tomar o poder para destruir o capital, como afirmam alguns supostamente inspirados em Chasin. Em verdade, os textos de Marx escritos para a Liga dos Comunistas e depois para a Associação Internacional dos Trabalhadores (que eram, aliás, partidos centralizados) estão recheados de passagens que colocam como tarefa imediata ao partido do proletariado a tomada do poder. Chasin conhecia bem esses textos e, parece-me, jamais pretendeu negá-los, ao menos não com sua tese da ontonegatividade da política. Sua seta era direcionada as organizações dominantes na esquerda brasileira em seu tempo: o PCB e o PT, que, cada um ao seu modo, faziam de sua concepção política o motor da sua atividade, o ponto de partida e de chegada. Por fim, não utilizo o termo ontonegatividade pois me parece que, para Marx, tudo de determinado é ontonegativo. Ainda que possamos recorrer a certas categorias abstratas, consideradas unicamente do ponto de vista homem-natureza e dizer que, nessa perspectiva, os valores de uso, o trabalho concreto, o produto, o processo de trabalho, a cooperação simples, a reprodução social, estão presentes em todas as formas de sociedade, sob nenhuma hipótese tais categorias são ontopositivas, pois são meras abstrações provisórias na exposição de Marx de O Capital. O que interessa saber são as formas sociais específicas nas quais se revestem essas categorias em um tipo específico de sociedade. Assim, sob o capital, os produtos são mercadorias, o processo de trabalho é, simultaneamente, processo de valorização do valor, a reprodução social é acumulação de capital e assim por diante. O que funda um tipo de sociedade são essas formas sociais ou relação específicas que as configura. Nesse sentido, não vejo como criar, baseando-se em Marx, qualquer teoria geral do ser social, quer seja em termos ontológicos ou não. Por isso, tudo de determinado é ontonegativo e não vejo motivos de atribuir esse predicado a politicidade. Trato desses aspectos no primeiro capítulo de meu livro, com razoáveis detalhes. Claro que Chasin não pensa assim. Sua elaboração está fundada em um estatuto ontológico, aspecto em que não o acompanho.

AC – Um dos principais equívocos dentro das categorias de “O Capital” de Marx é sobre o “fetichismo da mercadoria”. Como é um debate extenso e muito confuso, poderia nos falar um pouco sobre o que seria o “fetichismo da mercadoria” no pensamento de Marx?

G – Antes de falar um pouco sobre o fetichismo da mercadoria em Marx é necessário fazer duas contextualizações que, segundo penso, estão na base de toda essa confusão. Em primeiro lugar, é importante notar que a leitura de O Capital de Marx como ciência econômica, dominante até os anos de 1970, secundarizou notadamente o tema do fetichismo como um adorno discursivo de pouca importância. Na sequência, fez-se o contrário. O tema ganhou centralidade, mas não para restituir o seu sentido genuíno no interior da crítica da economia política de Marx, mas para arrancá-lo fora de O Capital e deslocá-lo para domínios circunscritos a cultura, a psicologia e a antropologia. Criou-se uma teoria do fetichismo, de todo alheia à elaboração de Marx, fundada nos desejos e na imaginação humana. Mas o fetichismo não é um fenômeno subjetivo, mas totalmente objetivo. Ainda que possa ter implicações subjetivas, independe em absoluto delas. Marx denominou fetichismo o fato objetivo de que no meio de todas relações sociais existe sempre uma mercadoria que rege, dirige e domina as ações do seu criador. Tanto é assim que quando nos relacionamos socialmente não vemos pessoas com suas respectivas atividades e capacidades internas, mas um produto acabado com seu preço. Pior ainda, o processo por meio do qual toda riqueza capitalista circula ocorre, de fato, as costas de seus produtores. Por isso, a mercadoria ganha vida própria, controlando todas relações sociais no lugar do seu criador. O fetiche da mercadoria é apenas a figura mais abstrata desse fenômeno que, na sequência de O Capital, irá se desenvolver na figura do fetiche do dinheiro, no fetiche do capital até se consumar, no Livro Terceiro, na figura do capital portador de juros, que Marx denomina o fetiche mais completo, o fetiche perfeito e acabado. Nessa última figura, o juro aparece metafisicamente como algo oriundo do nada, aparentemente sem qualquer tipo de mediação social, dinheiro que gera diretamente mais-dinheiro: D-D’. Cito dois exemplos que nos permite ter uma ideia da relevância da noção de fetiche, bem como a amplitude de sua incompreensão, mesmo entre os marxistas. Muitos acreditam que possuímos relações sociais em relações diretas de indivíduo para indivíduo: encontros familiares, religiosos, entre amigos etc. Nada mais falso. Uma relação social não é todo tipo de relação entre pessoas, mas quando as pessoas se relacionam com a sociedade de modo a garantir que ela continue a existir. Por isso, por estranho que possa parecer, nos relacionamos socialmente quando fazemos compras, quando quitamos a parcela de um automóvel ou uma casa e assim por diante. É pela compra e venda de mercadorias que as pessoas se relacionam com a sociedade capitalista, garantindo a distribuição de toda a riqueza produzida. Por último, um outro exemplo que não posso deixar de mencionar, já que está, também, na base da confusão referida pela pergunta. Nos textos iniciais de Marx sobre a sociedade capitalista, ele ainda não diferencia nitidamente divisão técnica e divisão social do trabalho. Nos assim chamados Manuscritos econômicos e filosóficos, bem como na Ideologia Alemã, Marx denomina estranhamento ou alienação o fato de o trabalhador executar apenas uma função parcial no interior do processo de divisão técnica do trabalho. Essa visão é em absoluto abandonada em O Capital. Não há fetichismo algum na divisão técnica oriunda das revoluções manufatureira e industriais. Não há nada de mistificador no fato do trabalhador executar uma função parcial no processo produtivo. Ele sabe disso, e tem consciência de que não domina tem atua sobre a totalidade do produto. A divisão técnica do trabalho é transparente, por mais que unilateralize a atividade laborativa. A mistificação surge quando essa atividade parcial é conjugada ao obscuro processo de compra e venda da força de trabalho e submetido ao processo de valorização do valor. O trabalhador perde de vista, assim, a relação entre seu trabalho e a riqueza produzida em termos capitalista, em termos de valor. Hoje, estranhamente, antes de analisar escritos como os Manuscritos Econômicos e Filosóficos à luz da elaboração acabada: O Capital, a maior parte dos interpretes faz o contrário. Daí emerge problemas como o que acima mencionamos.

AC – Você faz parte do grupo de pesquisa chamado ILAESE (Instituto Latino Americano de Estudos Socioeconômicos). Em sua opinião, partindo de suas pesquisas, a classe trabalhadora latino-americana, está vivendo “melhor”, como afirma as teorias liberais de que viveríamos “melhor que nunca antes na história”?

G – Esta ideia de que se vive melhor hoje na América Latina é típica de liberais. Eles se aferram a números e abstrações que desprezam todo e qualquer elemento qualitativo, histórico e social. Se examinarmos, por exemplo, os números do analfabetismo, do trabalho informal e das pessoas com acesso a algum tipo de previdência nos anos de 1950 e atualmente veremos que eles evoluíram de forma muito significativa. Apesar disso, o que era o grosso da população latino-americana em 1950? Ainda que a economia da maior parte dos países girasse em torno da exportação de matérias-primas como mercadoria para os grandes centros capitalistas; a maior parte da população era formada por agricultores ligados, direta ou indiretamente, as pequenas propriedades e a agricultura a subsistência. Ora, nesse contexto, ainda que a vida não fosse das melhores, a reprodução social transcorria sem grandes obstáculos pelo fato dos trabalhadores serem, em sua maior parte, analfabetos, sem vínculo formal de trabalho e previdência. A garantia da sobrevivência girava em torno da propriedade familiar e seus agregados. Hoje, um trabalhador urbano sem nenhuma alfabetização, em trabalho informal e sem contribuição previdenciária está permanentemente ameaçado de ser jogado para a mendicância e a miséria extrema. Em uma economia completamente monetarizada, depende diretamente de garantias públicas para sobreviver. A análise de números que desconsidere esses aspectos, não serve para absolutamente nada. Dito isso, existe, do ponto de vista da classe trabalhadora latino americana, uma notória regressão desde, pelo menos, os anos de 1990. A partir do pós-guerra, o continente, e sobretudo o Brasil, foram utilizados como polo estratégico no processo global de produção de mercadorias. O esquema é razoavelmente conhecido: indústria de base e de matérias-primas com investimento e empresas estatais de modo a viabilizar a entrada de multinacionais com produção de mercadorias de tecnologia de ponta, o que na época eram os setores automobilístico e de eletrodomésticos. Este processo de industrialização tardia na América Latina, usando o Brasil como plataforma principal, atendia não apenas o mercado interno, mas também o externo. Esta situação, contudo, se alterou drasticamente desde os anos de 1990. A chamada nova revolução industrial passou ao largo da América Latina, que passou a ser apenas um centro consumidor dos novos produtos. No setor de manufaturados há uma notória desindustrialização e o continente volta a ser, predominantemente, um setor produtor de matérias-primas: agronegócio, mineração, celulose. Estamos apenas na ponta de baixo de toda uma cadeia de produção de valores e não produzimos sequer as máquinas e equipamentos ali empregados. Quais as consequências desse cenário para a classe trabalhadora? São terríveis. A formação de um monstruoso exército industrial de reserva, camuflados nas estatísticas oficiais. Como demonstramos no Anuário Estatístico do ILAESE, em 2018 temos 46,7 milhões de pessoas no trabalho formal, contraposto a 33,6 milhões de subempregados e 45 milhões de pessoas sem emprego. Essa massa de pessoas sem emprego e subempregados tendem a fazer descer os salários dos trabalhadores formais, fomentar reformas que destruam os direitos trabalhistas etc. Todos modelos clássicos de governo, liberais ou intervencionistas, falharam copiosamente em inverter esse processo: por isso os governos ditos de direita e de esquerda se alternam em todos os cantos do continente. Não há interesse algum do relativamente do capital latino americano em inverter esse processo. Ele é frágil do ponto de vista global, mas nem por isso deixa de acumular somas espantosas.  Somente a classe trabalhadora e seus potenciais aliados podem inverter esse processo, e não podem fazê-lo sem subverter radicalmente as bases do sistema capitalista.

AC – Para encerrar nossa entrevista, você concorda que a adesão dos cursos de Filosofia (e outras áreas das humanidades) está cada mais vez estreito e mais conservador? Por que?

G – Concordo em partes. Segundo penso, os principais problemas dos cursos de Filosofia e demais áreas das humanidades no Brasil não é nada recente. O primeiro aspecto é de natureza histórica. Com exceção do Direito, tais cursos são absolutamente tardios no país. Datam em sua quase totalidade da segunda metade do século XX. Não houve interesse da colonização portuguesa em criar universidades no Brasil. Na colonização espanhola, por exemplo, o processo foi muito distinto. Some-se a isso um país que passou por quase quatro séculos de escravidão, quando os estudos eram limitados a um setor insignificante da sociedade, basicamente a burocracia administrativa e religiosa. É sobre essa base que os cursos de humanidades se desenvolveram e sobre ela novos problemas foram adicionados. Vejamos o caso dos cursos de filosofia. Desde a sua origem, seguindo uma matriz unilateralmente europeia e, sobretudo, francesa, os cursos de filosofia no Brasil se limitam a interpretação e exegese de textos clássicos. A ideia por traz dessa abordagem é que, em função da situação histórica que acima aludimos, para fazer filosofia no Brasil e colocar novos problemas, seria necessário, primeiro, se apropriar de milênios de tradição filosófica e fazer tão somente história da filosofia. Esse processo é descrito por Paulo Arantes em seu livro: Um Departamento Francês de Ultramar. Acontece que após décadas se limitando exclusivamente a exegese textual, os estudantes e professores brasileiros de filosofia não sabem fazer outra coisa que não seja a interpretação de textos filosóficos. Muitos professores brasileiros enchem a boca para dizer que não fazem nem tem nenhuma intenção em fazer filosofia, mas apenas história da filosofia. Isto é ridículo. A questão não é que cada estudante que ingresse em um curso de filosofia deva se tornar um filósofo. O problema é que os cursos de filosofia são uma fábrica que induzem unilateralmente a se pensar unicamente sobre o que os outros escreveram. É conhecida a afirmação de Marx de que “Até agora os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de várias formas. O que importa é transformá-lo”. No Brasil, a palavra de ordem é: “os filósofos [historiadores da filosofia] se limitam a interpretar as interpretações sobre o mundo de várias formas. Nada mais importa”. A situação é ainda mais grave. Os filósofos são estudados como mônadas do pensamento, isolados do contexto histórico e dos debates em curso. Se estuda Hegel, mas não Leopold von Ranke, seu grande e influente antagonista. Pois o rótulo de Ranke é de historiador. Marx está fora das grades básicas de filosofia, mas se estuda muitos filósofos do século XX que foram de algum modo influenciados por ele. Marx, dizem alguns, é sociólogo ou economista. Fala-se do século XIX como o século do historicismo, mas não se estuda sua origem que é Giambattista Vico. Não se estuda Herder que está na base de todo desenvolvimento do nacionalismo do século XIX.  Só para citar alguns exemplos. Curioso é que não é uma especificidade das universidades. O Instituto Brasileiro de Filosofia, fundado por Miguel Reale, com abordagem mais conservadora, faz a mesmíssima coisa, com a diferença de que no lugar de focar suas interpretações nos autores clássicos, voltam-se para filósofos e autores brasileiros. Não é, também, uma exclusividade da filosofia. Vejamos as grandes interpretações clássicas da história do Brasil: Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado, Gilberto Freyre etc., quantas foram realizadas por historiadores profissionais das universidades brasileiras? Sem dúvida, a menor parte. O grande conservadorismo nas universidades brasileiras, segundo penso, é esse roteiro vazio com a qual ela se originou e dentro da qual continua a se mover. Hoje a área de humanidades está sobre grande ataque do governo federal. As críticas são, certamente, injustas e caricaturais, quando não são completamente falsas. Mas para sobreviver, o ensino universitário brasileiro de humanidades precisa se reinventar e superar os limites acumulados historicamente.


Agradecemos ao filósofo marxista Gustavo Machado pela gentil entrevista e disposição para esta plataforma de crítica e reflexão!



Wesley Sousa

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