![]() |
Imagem YouTube. |
Gustavo
Machado Possui é graduação em Ciência da Computação pela Universidade Federal de
Minas Gerais (2007). Mestre em filosofia pela Universidade Federal de Minas
Gerais (2016). Atualmente é pesquisador do Instituto Latino-americano de
Estudos Socioeconômicos - ILAESE e doutorando
em Filosofia Política pela UFMG. Além disso, possui um canal no Youtube, “Orientação
Marxista”, feito para divulgação de conteúdo voltado à Marx e o marxismo.
Acervo Crítico
– Para
iniciar nossa entrevista, sua pesquisa envolve o marxismo, em especial a
questão da história. Você publicou seu livro “Marx e a História” (Editora
Sunderman) falando que, em linhas gerais, não existe uma “teoria da história”
no autor. Qual a ideia geral do seu livro?
Gustavo Machado – A
tese central do livro envolve dois aspectos aparentemente distintos, mas que,
como procuro mostrar, estão entrelaçados: a
questão da história e das particularidades nacionais em Marx. Abra qualquer
manual, livro ou vídeo introdutório ao pensamento de Marx e este provavelmente
irá se iniciar com a apresentação do que seria a pedra filosofal do seu
pensamento: a descoberta de uma teoria universal da história. Por vezes tal
teoria é descrita de forma esquemática e determinista, outras, de forma mais
sofisticada, dizendo se tratar de uma teoria da história aberta. Às vezes como
filosofia da história ou a exposição da estrutura objetiva de toda história da
humanidade, mais recorrentemente nas últimas décadas, como teoria do
conhecimento ou um método universal que permite analisar todas formas
históricas particulares e concretas. A tese que sustento é que nada disso
existe no pensamento de Marx. Não há teoria da história alguma, em nenhum dos
sentidos acima mencionados. Fomos de tal forma bombardeados por exposições do
pensamento de Marx nesse sentido que, de início, minha tese pode parecer um
exagero, mas se analisarmos com calma, veremos que não é o caso. Não existe um
único livro ou artigo, mesmo não publicado, em que Marx apresente a sua suposta
teoria da história. Vários materiais utilizados com esse objetivo, como a Ideologia
Alemã, são textos polêmicos que se regem pelo que foi escrito pelo
antagonista e sem qualquer pretensão de apresentar um sistema próprio, por
assim dizer, positivo. Afora trechos isolados arrancados de seu contexto, resta
as teorias da história “marxistas” tão somente o prefácio do livro Contribuição
à Crítica da Economia Política de 1859. A questão fica ainda mais
inusitada. Marx teria apresentado sua teoria mais geral e suposta base de todo
seu pensamento unicamente em uma breve formulação de poucas páginas, inserida
em uma nota autobiográfica de um prefácio. Pior ainda, uma formulação em que
Marx diz explicitamente se tratar, não de um ponto de partida, mas da conclusão
a que chegou e que, uma vez adquirida, serve de guia para seus estudos. Dito
isso, procuro mostrar em meu livro que Marx não elaborou teoria da história
alguma, mas tão somente uma concepção materialista da história. Esta se
caracteriza justamente por negar a intervenção de qualquer princípio
transcendente ou ordem natural na histórica humana e se direcionar ao estudo da
forma por meio do qual os homens se organizam para sobreviver em cada forma
social específica. Estas formas sociais específicas são estudadas de modo
completamente imanente, analisando-as internamente, sem recorrer a princípios
externos e supra-históricos, necessários em qualquer teoria geral da
história. Mas, com isso, não minimizo o
papel da história no interior do pensamento de Marx. Ele recorre constantemente
as formas sociais do passado, mas sempre com o objetivo de capturar a gênese e
a especificidade da única forma social que analisou e expôs de forma
sistemática: o capital e o capitalismo. No intuito de demonstrar essa tese, eu
percorro todo Livro I de O Capital no capítulo três de meu livro, além
de analisar passagens decisivas do Prefácio de 1859 e dos Grundrisse
nos dois primeiros capítulos. Apenas depois de desfazer de todas teorias da
história eu posso, no capítulo quarto do Livro, mostrar o papel das
particularidades nacionais no pensamento de Marx, examinando dezenas de artigos
sobre a Índia, China e Irlanda. Demonstro, por meio do exame atento dos textos,
que Marx não ignora as particularidades nacionais em função de uma filosofia
universal que sequer existe. Mas também que não autonomiza as particularidades
nacionais, já que elas se manifestam, agora, no interior de uma universalidade
efetivamente existente: a do capital com seu arsenal de categorias abstratas e
impessoais. O interesse de todo esse debate que apresento no livro não é
meramente teórico. Acredito ser fundamental destronar todas teorias da história
marxistas, para que Marx volte a ser, nas palavras de Rosdolsky, “uma fonte viva
de conhecimentos e da prática que se guia por ela”.
AC – No seu doutorado, qual
é seu objeto que vem desenvolvendo como tese? Poderia nos apresentar um pouco
dela?
G – O meu doutorado é, segundo minhas pretensões, a
continuidade do livro Marx e a História. Agora, o tema é Marx e a
Filosofia. A continuidade, contudo, não está na mera justaposição dos
temas. Tomo como pressuposto os resultados atingidos no primeiro livro, já que
uma teoria universal da história apenas seria possível por meio de um sistema
filosófico geral que o sustente. É exatamente assim que os manuais consideram a
questão: materialismo dialético ou filosofia geral do universo e da matéria e,
na sequência, materialismo histórico ou teoria suprema do homem. Lá tratou-se
de sepultar o materialismo histórico assim compreendido. Agora, trata-se de
enterrar, de uma vez por todas, o materialismo dialético entendido como
filosofia geral de mundo. Mas da mesma forma que no meu primeiro livro, não o
faço para secundarizar o papel da filosofia. Ao contrário, pretendo resgatar
toda originalidade filosófica de Marx com uma leitura dos três livros de O
Capital compreendidos como crítica à metafísica. A tese se afasta,
portanto, das elaborações dominantes até os anos de 1970 que viam uma filosofia
nos escritos ditos de juventude de Marx, depois abandonada ou meramente
aplicada em sua obra posterior. Se afasta igualmente da hipótese dominante
desde então, que toma a filosofia de Marx como mero prolongamento ou
desenvolvimento da lógica hegeliana materializada em O Capital. Mas
coincido com esse último grupo de autores ao encontrar em O Capital, o
livro que Marx dedicou toda sua vida a escrever e nem sequer concluiu, o que
podemos chamar, mais propriamente, da filosofia de Marx. Não como algo presente
nessa ou naquela passagem dita filosófica, mas tomando a estrutura total da
obra. Em linhas gerais, meu objetivo é mostrar que a crítica da economia
política que subintitula todos os livros de O Capital, pode ser
interpretada como a crítica a aparência mística do capital, sem modo metafísico
de aparecer e manifestar-se, modo esse em que categorias efetivamente abstratas
como mercadoria, dinheiro e capital aspiram em vão apagar tudo que é sensível,
humano, acidental, situado no tempo e no espaço. Nesse caminho, pretendo
demonstrar como Marx subverte inúmeras significações filosóficas que se
cristalizaram no curso da tradição ocidental, de tal forma que as assumimos
mesmo sem ter clara consciência, como é o caso, para citar apenas um exemplo,
das Categorias de Aristóteles.
AC – Seguindo o mote da
primeira questão, vemos alguns autores críticos do marxismo falando em
“teleologia” do comunismo, ou seja, um “fim da história”. Ainda que se põem
contra a teleologia, eles mesmos reproduzem a ideia, como Popper em sua
presunçosa crítica do marxismo. Na sua visão, por que isso acontece, de várias
teorias críticas do marxismo, recorrerem erros que eles tentaram “combater”?
G – Tradicionalmente, o
termo teleologia é aplicado a autores cuja elaboração tem forte senso
histórico. Por vezes, é o caso, como em Hegel. O contrário, no entanto, é mais
verdadeiro. Autores liberais, por exemplo, comumente julgam a realidade e a
história com base em um modelo abstrato de funcionamento da sociedade e tem
como pressuposto, conscientemente ou não, a ideia de uma ordem natural diante
da qual todas formas de sociedade do passado são julgadas como
artificiais. O mesmo ocorre com
correntes políticas que fundam seu exame da sociedade burguesa em modelos
políticos abstratos ditos republicanos, democráticos e assim por diante.
Modelos que se fundam em aspectos conceituais abstratos e independente da
história. Assim, projetam a história em estruturas abstratas que subsistem
apenas no pensamento, aspectos retirados inconscientemente da sociedade
burguesa e, em seguida, adornados e universalizados. Em Marx, ao contrário, não
há teleologia alguma. É verdade que ele afirma a tendência do comunismo como
existente no interior do próprio capitalismo, mas o faz baseado unicamente na
análise interna da sociedade burguesa, sem qualquer vestígio de ordem natural,
de teorias gerais da história, de uma ética ou regimes políticos universais
assentados em noções abstratas como justiça, o bem etc. Por outro lado, Marx
indica, igualmente, as contratendências internas do capital que levam a divisão
da classe trabalhadora, a consciência meramente individual e as possibilidades
de reprodução do capital ainda que sob uma base mais estreita de acumulação. É
por isso que o comunismo aparece em Marx como uma possibilidade. Como uma tendência
necessária, ao lado da qual figura tendências outras. Por esse motivo ele não
se limitou a construir uma teoria científica sobre o capital e o capitalismo,
mas, também, fundou partidos e associações, editou jornais e livros de
propaganda. Por esse motivo a tarefa suprema do marxismo, com base no exame
teórico da realidade, é fundamentalmente prática e pode ser resumida nas
palavras certeiras de Chris Arthur no último capítulo de seu livro sobre O
Capital: “O ponto da teoria marxista não é acadêmico da observação e previsão,
mas reside na contribuição que faz em trazer o proletariado para a consciência
de sua tarefa”.
AC – Gustavo, como
marxista, provavelmente conhece a tese de José Chasin sobre a “ontonegatividade
da política” a respeito de Marx. Qual sua posição acerca desse debate?
G – Conheço sim. Penso que
o conteúdo mais geral desta tese está correto, ainda que prefira não usar o
termo ontonegatividade, por motivos que deixarei claro logo adiante. Antes, é
preciso fazer uma observação mais geral a esse respeito. Parece-me que tal tese
é vulgarmente apropriada por parte expressiva dos estudantes e intelectuais
brasileiros que dizem acompanhar a tese de Chasin. Em sua formulação original,
tal tese não tem nada que ver com um certo desdém pela atividade política.
Nunca se tratou de relegar para segundo plano a atividade política, mas de
fundamentá-la em um programa firmemente assentado nas necessidades sociais e
não o contrário, por isso, a expressão de Marx de uma “revolução política com
alma social”. O caráter científico da elaboração de Marx consiste exatamente
nisso: fundar seu projeto de transformação social nas possibilidades
socialmente e objetivamente postas e não na aplicação externa de um projeto
político cujo fundamento reside em si mesmo, um projeto político autônomo,
introjetado desde fora à sociedade. Segue-se daí que a política (ou o político,
como preferem os sociólogos socráticos) não pode ser considerada a parte das
formas de sociedade no interior das quais sua existência mostra-se necessária.
A política não é uma condição eterna da existência humana e a emancipação da
classe trabalhadora despe a atividade humana de seu caráter político. Observem
que desta formulação não se deduz absolutamente nada a respeito do fim da forma
partido, tampouco se nega a necessidade do proletariado tomar o poder para
destruir o capital, como afirmam alguns supostamente inspirados em Chasin. Em
verdade, os textos de Marx escritos para a Liga
dos Comunistas e depois para a Associação
Internacional dos Trabalhadores (que eram, aliás, partidos centralizados)
estão recheados de passagens que colocam como tarefa imediata ao partido do
proletariado a tomada do poder. Chasin conhecia bem esses textos e, parece-me,
jamais pretendeu negá-los, ao menos não com sua tese da ontonegatividade da
política. Sua seta era direcionada as organizações dominantes na esquerda
brasileira em seu tempo: o PCB e o PT, que, cada um ao seu modo, faziam de sua
concepção política o motor da sua atividade, o ponto de partida e de chegada.
Por fim, não utilizo o termo ontonegatividade pois me parece que, para Marx,
tudo de determinado é ontonegativo. Ainda que possamos recorrer a certas
categorias abstratas, consideradas unicamente do ponto de vista homem-natureza
e dizer que, nessa perspectiva, os valores de uso, o trabalho concreto, o
produto, o processo de trabalho, a cooperação simples, a reprodução social,
estão presentes em todas as formas de sociedade, sob nenhuma hipótese tais
categorias são ontopositivas, pois são meras abstrações provisórias na
exposição de Marx de O Capital. O que interessa saber são as formas
sociais específicas nas quais se revestem essas categorias em um tipo
específico de sociedade. Assim, sob o capital, os produtos são mercadorias, o
processo de trabalho é, simultaneamente, processo de valorização do valor, a
reprodução social é acumulação de capital e assim por diante. O que funda um
tipo de sociedade são essas formas sociais ou relação específicas que as
configura. Nesse sentido, não vejo como criar, baseando-se em Marx, qualquer
teoria geral do ser social, quer seja em termos ontológicos ou não. Por isso,
tudo de determinado é ontonegativo e não vejo motivos de atribuir esse
predicado a politicidade. Trato desses aspectos no primeiro capítulo de meu
livro, com razoáveis detalhes. Claro que Chasin não pensa assim. Sua elaboração
está fundada em um estatuto ontológico, aspecto em que não o acompanho.
AC – Um dos principais equívocos dentro das
categorias de “O Capital” de Marx é sobre o “fetichismo da mercadoria”. Como é
um debate extenso e muito confuso, poderia nos falar um pouco sobre o que seria
o “fetichismo da mercadoria” no pensamento de Marx?
G – Antes
de falar um pouco sobre o fetichismo da mercadoria em Marx é necessário fazer
duas contextualizações que, segundo penso, estão na base de toda essa confusão.
Em primeiro lugar, é importante notar que a leitura de O Capital de Marx
como ciência econômica, dominante até os anos de 1970, secundarizou notadamente
o tema do fetichismo como um adorno discursivo de pouca importância. Na
sequência, fez-se o contrário. O tema ganhou centralidade, mas não para
restituir o seu sentido genuíno no interior da crítica da economia política de
Marx, mas para arrancá-lo fora de O Capital e deslocá-lo para domínios
circunscritos a cultura, a psicologia e a antropologia. Criou-se uma teoria do
fetichismo, de todo alheia à elaboração de Marx, fundada nos desejos e na
imaginação humana. Mas o fetichismo não é um fenômeno subjetivo, mas totalmente
objetivo. Ainda que possa ter implicações subjetivas, independe em absoluto
delas. Marx denominou fetichismo o fato objetivo de que no meio de todas
relações sociais existe sempre uma mercadoria que rege, dirige e domina as
ações do seu criador. Tanto é assim que quando nos relacionamos socialmente não
vemos pessoas com suas respectivas atividades e capacidades internas, mas um
produto acabado com seu preço. Pior ainda, o processo por meio do qual toda
riqueza capitalista circula ocorre, de fato, as costas de seus produtores. Por
isso, a mercadoria ganha vida própria, controlando todas relações sociais no
lugar do seu criador. O fetiche da mercadoria é apenas a figura mais abstrata
desse fenômeno que, na sequência de O Capital, irá se desenvolver na
figura do fetiche do dinheiro, no fetiche do capital até se consumar, no Livro
Terceiro, na figura do capital portador de juros, que Marx denomina o fetiche
mais completo, o fetiche perfeito e acabado. Nessa última figura, o juro
aparece metafisicamente como algo oriundo do nada, aparentemente sem qualquer tipo
de mediação social, dinheiro que gera diretamente mais-dinheiro: D-D’. Cito
dois exemplos que nos permite ter uma ideia da relevância da noção de fetiche,
bem como a amplitude de sua incompreensão, mesmo entre os marxistas. Muitos
acreditam que possuímos relações sociais em relações diretas de indivíduo para
indivíduo: encontros familiares, religiosos, entre amigos etc. Nada mais falso. Uma relação social não
é todo tipo de relação entre pessoas, mas quando as pessoas se relacionam com a
sociedade de modo a garantir que ela continue a existir. Por isso, por estranho
que possa parecer, nos relacionamos socialmente quando fazemos compras, quando
quitamos a parcela de um automóvel ou uma casa e assim por diante. É pela
compra e venda de mercadorias que as pessoas se relacionam com a sociedade
capitalista, garantindo a distribuição de toda a riqueza produzida. Por último,
um outro exemplo que não posso deixar de mencionar, já que está, também, na
base da confusão referida pela pergunta. Nos textos iniciais de Marx sobre a
sociedade capitalista, ele ainda não diferencia nitidamente divisão técnica e
divisão social do trabalho. Nos assim chamados Manuscritos econômicos
e filosóficos, bem
como na Ideologia Alemã,
Marx denomina estranhamento ou alienação o fato de o trabalhador executar
apenas uma função parcial no interior do processo de divisão técnica do
trabalho. Essa visão é em absoluto abandonada em O Capital. Não há fetichismo algum na divisão
técnica oriunda das revoluções manufatureira e industriais. Não há nada de
mistificador no fato do trabalhador executar uma função parcial no processo
produtivo. Ele sabe disso, e tem consciência de que não domina tem atua sobre a
totalidade do produto. A divisão técnica do trabalho é transparente, por mais
que unilateralize a atividade laborativa. A mistificação surge quando essa
atividade parcial é conjugada ao obscuro processo de compra e venda da força de
trabalho e submetido ao processo de valorização do valor. O trabalhador perde
de vista, assim, a relação entre seu trabalho e a riqueza produzida em termos
capitalista, em termos de valor. Hoje, estranhamente, antes de analisar
escritos como os Manuscritos Econômicos e Filosóficos à luz da elaboração acabada: O Capital, a maior parte dos interpretes faz o
contrário. Daí emerge problemas como o que acima mencionamos.
AC – Você faz parte do
grupo de pesquisa chamado ILAESE
(Instituto Latino Americano de Estudos Socioeconômicos). Em sua opinião,
partindo de suas pesquisas, a classe trabalhadora latino-americana, está
vivendo “melhor”, como afirma as teorias liberais de que viveríamos “melhor que
nunca antes na história”?
G – Esta ideia de que se vive melhor hoje na América Latina é
típica de liberais. Eles se aferram a números e abstrações que desprezam todo e
qualquer elemento qualitativo, histórico e social. Se examinarmos, por exemplo,
os números do analfabetismo, do trabalho informal e das pessoas com acesso a
algum tipo de previdência nos anos de 1950 e atualmente veremos que eles
evoluíram de forma muito significativa. Apesar disso, o que era o grosso da
população latino-americana em 1950? Ainda que a economia da maior parte dos
países girasse em torno da exportação de matérias-primas como mercadoria para
os grandes centros capitalistas; a maior parte da população era formada por
agricultores ligados, direta ou indiretamente, as pequenas propriedades e a
agricultura a subsistência. Ora, nesse contexto, ainda que a vida não fosse das
melhores, a reprodução social transcorria sem grandes obstáculos pelo fato dos
trabalhadores serem, em sua maior parte, analfabetos, sem vínculo formal de
trabalho e previdência. A garantia da sobrevivência girava em torno da
propriedade familiar e seus agregados. Hoje, um trabalhador urbano sem nenhuma
alfabetização, em trabalho informal e sem contribuição previdenciária está
permanentemente ameaçado de ser jogado para a mendicância e a miséria extrema.
Em uma economia completamente monetarizada, depende diretamente de garantias
públicas para sobreviver. A análise de números que desconsidere esses aspectos,
não serve para absolutamente nada. Dito isso, existe, do ponto de vista da
classe trabalhadora latino americana, uma notória regressão desde, pelo menos,
os anos de 1990. A partir do pós-guerra, o continente, e sobretudo o Brasil,
foram utilizados como polo estratégico no processo global de produção de
mercadorias. O esquema é razoavelmente conhecido: indústria de base e de
matérias-primas com investimento e empresas estatais de modo a viabilizar a
entrada de multinacionais com produção de mercadorias de tecnologia de ponta, o
que na época eram os setores automobilístico e de eletrodomésticos. Este
processo de industrialização tardia na América Latina, usando o Brasil como
plataforma principal, atendia não apenas o mercado interno, mas também o
externo. Esta situação, contudo, se alterou drasticamente desde os anos de
1990. A chamada nova revolução industrial passou ao largo da América Latina, que
passou a ser apenas um centro consumidor dos novos produtos. No setor de
manufaturados há uma notória desindustrialização e o continente volta a ser,
predominantemente, um setor produtor de matérias-primas: agronegócio,
mineração, celulose. Estamos apenas na ponta de baixo de toda uma cadeia de
produção de valores e não produzimos sequer as máquinas e equipamentos ali
empregados. Quais as consequências desse cenário para a classe trabalhadora?
São terríveis. A formação de um monstruoso exército industrial de reserva,
camuflados nas estatísticas oficiais. Como demonstramos no Anuário Estatístico
do ILAESE, em 2018 temos 46,7 milhões de pessoas no trabalho formal,
contraposto a 33,6 milhões de subempregados e 45 milhões de pessoas sem
emprego. Essa massa de pessoas sem emprego e subempregados tendem a fazer
descer os salários dos trabalhadores formais, fomentar reformas que destruam os
direitos trabalhistas etc. Todos modelos clássicos de governo, liberais ou
intervencionistas, falharam copiosamente em inverter esse processo: por isso os
governos ditos de direita e de esquerda se alternam em todos os cantos do
continente. Não há interesse algum do relativamente do capital latino americano
em inverter esse processo. Ele é frágil do ponto de vista global, mas nem por
isso deixa de acumular somas espantosas.
Somente a classe trabalhadora e seus potenciais aliados podem inverter
esse processo, e não podem fazê-lo sem subverter radicalmente as bases do
sistema capitalista.
AC – Para encerrar nossa
entrevista, você concorda que a adesão dos cursos de Filosofia (e outras áreas
das humanidades) está cada mais vez estreito e mais conservador? Por que?
G – Concordo em partes. Segundo penso, os principais problemas
dos cursos de Filosofia e demais áreas das humanidades no Brasil não é nada
recente. O primeiro aspecto é de natureza histórica. Com exceção do Direito,
tais cursos são absolutamente tardios no país. Datam em sua quase totalidade da
segunda metade do século XX. Não houve interesse da colonização portuguesa em
criar universidades no Brasil. Na colonização espanhola, por exemplo, o
processo foi muito distinto. Some-se a isso um país que passou por quase quatro
séculos de escravidão, quando os estudos eram limitados a um setor
insignificante da sociedade, basicamente a burocracia administrativa e
religiosa. É sobre essa base que os cursos de humanidades se desenvolveram e
sobre ela novos problemas foram adicionados. Vejamos o caso dos cursos de
filosofia. Desde a sua origem, seguindo uma matriz unilateralmente europeia e,
sobretudo, francesa, os cursos de filosofia no Brasil se limitam a
interpretação e exegese de textos clássicos. A ideia por traz dessa abordagem é
que, em função da situação histórica que acima aludimos, para fazer filosofia
no Brasil e colocar novos problemas, seria necessário, primeiro, se apropriar
de milênios de tradição filosófica e fazer tão somente história da filosofia.
Esse processo é descrito por Paulo Arantes em seu livro: Um Departamento
Francês de Ultramar. Acontece que após décadas
se limitando exclusivamente a exegese textual, os estudantes e professores
brasileiros de filosofia não sabem fazer outra coisa que não seja a
interpretação de textos filosóficos. Muitos professores brasileiros enchem a
boca para dizer que não fazem nem tem nenhuma intenção em fazer filosofia, mas
apenas história da filosofia. Isto é ridículo. A questão não é que cada
estudante que ingresse em um curso de filosofia deva se tornar um filósofo. O
problema é que os cursos de filosofia são uma fábrica que induzem
unilateralmente a se pensar unicamente sobre o que os outros escreveram. É
conhecida a afirmação de Marx de que “Até agora os filósofos se limitaram a
interpretar o mundo de várias formas. O que importa é transformá-lo”. No Brasil, a palavra de
ordem é: “os filósofos [historiadores da filosofia] se limitam a interpretar as
interpretações sobre o mundo de várias formas. Nada mais importa”. A situação é
ainda mais grave. Os filósofos são estudados como mônadas do pensamento,
isolados do contexto histórico e dos debates em curso. Se estuda Hegel, mas não
Leopold von Ranke, seu grande e influente antagonista. Pois o rótulo de Ranke é
de historiador. Marx está fora das grades básicas de filosofia, mas se estuda
muitos filósofos do século XX que foram de algum modo influenciados por ele.
Marx, dizem alguns, é sociólogo ou economista. Fala-se do século XIX como o
século do historicismo, mas não se estuda sua origem que é Giambattista Vico.
Não se estuda Herder que está na base de todo desenvolvimento do nacionalismo
do século XIX. Só para citar alguns
exemplos. Curioso é que não é uma especificidade das universidades. O Instituto Brasileiro de Filosofia,
fundado por Miguel Reale, com abordagem mais conservadora, faz a mesmíssima
coisa, com a diferença de que no lugar de focar suas interpretações nos autores
clássicos, voltam-se para filósofos e autores brasileiros. Não é,
também, uma exclusividade da filosofia. Vejamos as grandes interpretações
clássicas da história do Brasil: Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado,
Gilberto Freyre etc., quantas foram realizadas por historiadores profissionais
das universidades brasileiras? Sem dúvida, a menor parte. O grande
conservadorismo nas universidades brasileiras, segundo penso, é esse roteiro
vazio com a qual ela se originou e dentro da qual continua a se mover. Hoje a
área de humanidades está sobre grande ataque do governo federal. As críticas
são, certamente, injustas e caricaturais, quando não são completamente falsas.
Mas para sobreviver, o ensino universitário brasileiro de humanidades precisa
se reinventar e superar os limites acumulados historicamente.