Por
Gabriel Yuji – mestrando em Sociologia pela UFGD/MS.
Neste artigo analisaremos os três
primeiros capítulos da obra O caminho da servidão, de Frederich August Von Hayek. Lançado em 1944 na
Inglaterra pela primeira vez, é considerada um dos livros mais importantes do
autor ligado à Escola Austríaca – cuja grande figura é Ludwig von Mises; e cuja ideia
central é o poder de organização espontânea dos mecanismos de preço. Economista
de formação, Hayek tinha “todas as razões possíveis para não escrever ou
publicar este livro” (HAYEK, 2010, p. 9). Mas o fez porque achou necessário
informar a população que “não está de modo algum suficientemente informada”
(HAYEK, 2010, p. 10).
A tese central que
defenderá e o que ele procurará esclarecer é que “fascismo e comunismo são
meras variantes do mesmo totalitarismo que o controle centralizado da atividade
econômica tende a produzir” (HAYEK, 2010, p. 14). Afirma Hayek (2010, p. 31): “Poucos
estão prontos a admitir que a ascensão do nazismo e do fascismo não foi uma
reação contra as tendências socialistas do período precedente, mas o resultado
necessário dessas mesmas tendências”. E que “Era, com efeito, a preponderância
das ideias socialistas [...] o que a Alemanha tinha em comum com a Itália e a
Rússia” (HAYEK, 2010, p. 35).
Antes de tudo, é preciso colocar
Hayek em seu devido contexto histórico: 1929, que também foi o ano de
publicação de seu primeiro livro, Monetary Theory and the Trade Cycle,
foi o ano em que começou a Grande Depressão que durará boa parte da década de
30 (NETTO & BRAZ, 2006, p. 192). Ainda nessa época, dois grandes fenômenos
convergentes ocorriam no mundo: por um lado, a organização da classe trabalhadora
em movimentos sindicais na Europa Ocidental e Nórdica industrializada, onde
também havia a ascensão de governos social-democratas ligados ao operariado
implantando políticas de massa; por outro lado, a Revolução Russa de 1917 e
seus impactos econômicos ao estreitar o mercado global e principalmente seus
impactos ideológicos nas vanguardas operárias que começavam a aderir aos
Partidos Comunistas a partir de 1919. Grandes greves se sucederam ao fim da
Primeira Guerra na Alemanha, Itália, França, Grã-Bretanha e mesmo nos Estados
Unidos (NETTO & BRAZ, 2006, p. 193).
Certamente é a
esse destino de combatividade da classe trabalhadora e de crítica ao
capitalismo que Hayek se refere quando diz que: “é o destino da Alemanha que
estamos em perigo de seguir” (HAYEK, 2010, p. 30). Esse “destino” que a
Inglaterra parece seguir ocorre no mesmo período histórico da Primeira Guerra:
“os que estudam as correntes de ideias dificilmente deixarão de observar que há
mais do que uma semelhança superficial entre o rumo do pensamento na Alemanha
durante e após a Primeira Guerra Mundial e o atual rumo das ideias neste país”
(HAYEK, 2010, p. 30).
Para Mészáros (2011, p. 190), as
teorias de Hayek – que Mészáros chama de “apologias” – são “pseudocientíficas e não históricas”.
É o que vemos quando Hayek enxerga no New
Deal de Theodore
Roosevelt um exemplo prático de como os Estados Unidos estaria começando a ser
afetado pela ideologia do planejamento que levou ao nazismo e ao comunismo
(HAYEK, 2010, p. 14). Na verdade, embora Hayek diga que o mercado se
autorregularia e que “uma das principais justificativas da concorrência é que
ela dispensa a necessidade de um ‘controle social consciente’” (HAYEK, 2010, p.
58), essa medida é exatamente uma resposta à crise de 29 que “evidenciou para
os dirigentes mais lúcidos da burguesia dos países imperialistas a necessidade
de formas de intervenção do Estado na economia capitalista” (NETTO & BRAZ,
2006, p. 192). Estas formas foram apresentadas por, dentre outros
pensadores, John Maynard Keynes, que deixou claro sua posição ideológica ao
lado da “burguesia educada” em seu artigo “Serei eu um liberal?” (apud
MÉSZÁROS, 2004, p. 61). E as ligações entre Keynes e o presidente Roosevelt são
mencionadas pela Ministra do Trabalho do presidente, Frances Perkins, em The
Roosevelt I Knew.
Que, como diz Mészáros (2011, p.
192), “sua apologia serve aos fins da cruzada antissocialista e a
mais nada”, Hayek mesmo admite de bom grado no prefácio: “O livro [...]
dirigia-se sobretudo a uma classe muito especial de leitores britânicos. Não
foi de modo algum por zombaria que eu o dediquei ‘aos socialistas de todos os
partidos’” (HAYEK, 2010, p. 11). Mas Hayek consegue ir ao ápice do absurdo ao
dizer que “A tendência crescente para [...] recorrer a controles estatais
diretos ou para criar entidades monopolísticas [...] constituem ainda um legado
poderoso da era socialista” (HAYEK, 2010, p. 16). Pelo contrário, é sabido que
a formação de monopólios é uma tendência intrínseca ao próprio capitalismo.
Na
concorrência entre capitalistas, uma das formas que o capitalista tem de
desbancar seus concorrentes é aumentando sua produtividade e diminuindo custos
através do uso de novas tecnologias. Porém, isso eleva a quantidade de capital
que é necessária para um capitalista competir no mercado, tornando mais
excludente a disputa. Isso leva a concentração de capital em que “cada vez mais
capital é necessário para produzir mais mais-valia” (NETTO & BRAZ, 2006, p.
130). Com o tempo, só os capitalistas com grande massa de capital terão sucesso
no mercado.
Paralelamente
a concentração, ocorre a centralização de capital, que “não implica um aumento
de capital em função de uma nova acumulação, mas tão somente o aumento de capital
pela fusão de vários outros […] capitais já existentes” (NETTO & BRAZ,
2006, p. 130-131). Cartéis, trustes e holdings são exemplos dessa
centralização que, ao lado da concentração, levam a formações de monopólios.
Esses fenômenos afetam a própria concorrência dentro do capitalismo em que a
tradicional “livre concorrência” começa a desaparecer.
Essa
concentração encontra seu ápice naquilo que seria denominado de “capital
monopolista”. Nos primeiros anos do século XX, os bancos deixam de ser meros intermediários
de pagamento e passam a ser um sistema de crédito e acúmulo de capitais. Por um
lado, os bancos são usados pelos detentores do capital industrial que estão se
tornando monopolistas; por outro, os próprios banqueiros começam a comprar
ações de grandes indústrias. Nesse entrelaçamento do capital industrial e
bancário surge o capital financeiro (NETTO & BRAZ, 2006, p. 178-179). A
necessidade de expansão desse capital gera uma transnacionalização das empresas
que começam a dominar diversos países no que se chama de “imperialismo” que,
exatamente na década de 40 quando Hayek escreve O caminho da servidão,
está passando de sua “fase clássica” para entrar nos “anos dourados” marcados
pela intervenção estatal (NETTO & BRAZ, 2006, p. 192).
Esses
monopólios de fato barram a concorrência e de fato são sustentados pelo Estado,
como afirma Hayek. Mas isso não ocorre por conta de ideias socialistas nos
países, senão pelo que já havíamos enunciado anteriormente a respeito da crise
de 29 que mostra ao capitalismo a necessidade da intervenção. Somos tentados a
concordar com o enunciado de Mészáros (2011, p. 198) de que “gente como Hayek
preferia esquecer que a formação do Estado moderno foi absolutamente essencial
para a articulação completa e o triunfo global do sistema do capital”.
Na verdade,
porém, Hayek sabe exatamente a função do Estado dentro do capitalismo, como
veremos a partir de suas próprias citações; ele apenas mascara sua opinião no
“paradoxal” tratamento que os liberais têm com relação ao Estado, como diz
Acanda (2006, p. 90). Acanda discorre: “O verdadeiro objetivo do liberalismo
não é tanto que o Estado não intervenha na economia, mas sim que não interfira
e, ainda mais, que se subordine a lógica do funcionamento do mercado
capitalista” (ACANDA, 2006, p. 92). Pois vejamos se não é exatamente o que
enuncia Hayek (2010) em duas passagens diferentes:
O bom uso da concorrência como princípio de organização
social exclui certos tipos de intervenção coercitiva na vida econômica, mas
admite outros que às vezes podem auxiliar consideravelmente seu funcionamento,
e mesmo exige determinadas formas de ação governamental. (p. 58, grifos
nossos) […]
O funcionamento da
concorrência
não apenas requer a organização adequada de certas instituições como a moeda,
os mercados e os canais de informação – algumas das quais nunca poderão ser
convenientemente geridas pela iniciativa privada mas depende sobretudo da existência de um sistema legal
apropriado,
estruturado de modo a manter a concorrência e a permitir que ela produza os
resultados mais benéficos possíveis. (p. 59, grifos nossos).
O “sistema
legal apropriado” a que Hayek se refere não é nada mais, nada menos que o
Estado. Isso nos leva a um aparente “paradoxo” do liberalismo e nos faz
questionar, nas palavras e Acanda (2006, p. 92), como é possível “entender o
fato de a doutrina do Estado-nação ter nascido nos marcos da ideologia liberal”
(p. 92), uma ideologia supostamente anti-Estado. São dois os motivos: primeiro,
porque a ideia de nação “estabelece os limites do mercado nacional que o Estado
deve salvaguardar para a burguesia nacional” (p. 92). E, depois, pois a
concorrência pressupõe o indivíduo livre juridicamente. Conforme nos mostra a
história do liberalismo,
Para garantir a independência do indivíduo privado é preciso
remover todas as instâncias que anteriormente a submetiam (a religião, a
tradição, a comunidade), menos uma: deve-se seguir representando o Estado como
uma instância situada acima do indivíduo, substituindo-se, assim, a unidade
intrínseca do organismo social pela unidade formal, extrínseca, do ordenamento
jurídico. Disso decorre o seguinte paradoxo: a ideia liberal de “indivíduo
livre” produz a ideia do Estado como princípio imprescindível de representação
(ACANDA, 2006, p. 90)
A posição
de Hayek quanto ao Estado fica ainda mais clara ainda quando ele diz quais
serviços cabem ao mercado e quais cabem ao Estado:
Quando, por exemplo, é impraticável condicionar o usufruto
de certos serviços ao pagamento de um preço, a concorrência não produzirá tais
serviços;
e o sistema de preços também não funcionará de modo conveniente quando o dano
causado a outrem por certos usos da propriedade não puder ser cobrado ao
proprietário. [...] Por exemplo, a colocação de sinais de tráfego nas ruas e,
na maioria das circunstâncias, a construção das próprias vias públicas, não
pode ser paga pelos seus usuários individualmente. Tampouco certos efeitos
nocivos do desmatamento, de determinados métodos agrícolas, ou da fumaça e do
ruído das fábricas, dizem respeito apenas ao proprietário em questão ou àqueles
que aceitam se expor a esses efeitos em troca de uma compensação estipulada. Em
tais casos, devemos procurar outros meios de controle que possam substituir o
mecanismo de preços. (HAYEK, 2010, p. 60)
Vemos que
os serviços que procuram facilitar a vida da população em geral e que
possibilitam o próprio empreendimento dos capitalistas, como construção das
vias públicas e sinais de tráfego, devem ser dados ao Estado. Igualmente, os
problemas causados pelos proprietários individuais, como desmatamento ou a
poluição, cabem ao Estado. O ônus cabe ao Estado enquanto este dá o aporte
necessário para a iniciativa privada. À livre concorrência cabe apenas os
serviços em que seja possível condicionar “ao pagamento de um preço”, ou seja,
em que o capitalista possa lucrar; o que não dá lucro fica a cargo do Estado.
De fato, como dizem Netto & Braz (2006):
[...] o Estado burguês sempre interveio na dinâmica
econômica, garantindo as condições externas para a produção e a acumulação capitalistas;
mas a crise de 29 revelou que novas modalidades interventivas tornavam-se
necessárias: fazia-se imperativa uma intervenção que envolvesse as condições
gerais da produção e da acumulação (p. 192-193) […] seja no nível dos
investimentos, estimulando-os diretamente (inclusive com o Estado operando como
empresário capitalista), seja no tocante à reprodução da força de trabalho,
desonerando o capital de parte de suas despesas (através de programas sociais
tocados por agências estatais) (p. 195).
Avançando
um pouco mais no tempo, sucedem-se as duas grandes guerras mundiais pela
partilha territorial do mundo entre as grandes potências imperialistas e, entre
elas, acontece a ascensão do nazifascismo discutido por Hayek. Ele argumentará que o totalitarismo nesses países são
“produtos de uma evolução de ideias” (HAYEK, 2010, p. 38) a partir da qual
“fomos nos afastando progressivamente das ideias básicas sobre as quais se
erguera a civilização ocidental” (HAYEK, 2010, p. 39).
Para Hayek, as ideias das quais
fomos nos afastando foram o pensamento liberal dos séculos XVIII e XIX. E, por
isso, diz ele, fomos avançando na direção do socialismo, que é sinônimo de
escravidão. Hayek descreve o totalitarismo como resultado disso.
O fato de que este novo
rumo tomado com tanta esperança e ambição nos fizesse deparar com o horror do
totalitarismo representou um profundo choque para esta geração, que se recusa
ainda a relacionar uma coisa à outra. Contudo, este desdobramento apenas
confirma as advertências dos fundadores da filosofia liberal que ainda
professamos. Fomos aos poucos abandonando aquela liberdade de ação econômica
sem a qual a liberdade política e social jamais existiu no passado. Embora
alguns dos maiores pensadores políticos do século XIX, como de Tocqueville e
Lord Acton, nos advertissem de que socialismo significa escravidão, fomos
continuamente avançando em direção ao socialismo (HAYEK, 2010, p. 39)
Vemos aqui o caráter a-histórico de
que Mészáros fala: Hayek desconhece ou ignora que, entre “os fundadores da
filosofia liberal”, Thomas Jefferson tinha escravos e Locke, além estar
diretamente vinculado ao tráfico de escravos (ACANDA, 2006, p. 70), justificou
a escravização de prisioneiros de guerra (LOSURDO, 2004, p. 48) e afirmou que a
maior parte da humanidade “não pode deixar de estar submetida a condições de
vida de trabalho pelas quais se encontra slaved, ou seja, reduzida a uma
condição semelhante à escravidão” (LOSURDO, 2004, p. 45). Que nem Locke,
Montesquieu ou Adam Ferguson tenham feito qualquer questionamento a colonização
de outros povos pela Inglaterra ou pela França também não é algo a ser lembrado
por Hayek (ACANDA, 2006, p. 70).
De modo mais particular, os dois autores
nomeados por Hayek também contradizem o que a própria teoria liberal
supostamente defende. Tocqueville foi complacente com a escravidão nos Estados
Unidos; ele celebra o fato de que lá “cada indivíduo goza de uma independência
mais inteira, de uma liberdade maior do que em qualquer outro tempo ou qualquer
outra parte da Terra”, mesmo que, admitindo a condição deplorável dos indígenas
e dos negros, conclui que estes são “temas, que […] referem-se à América, não à
democracia” (LOSURDO, 2004, p. 29-30). Lord Acton, por sua vez, elogiou o
defensor da escravidão John C. Calhoun como “um campeão da causa de combate
contra qualquer forma de absolutismo” (LOSURDO, 2011, p. 2) e ele próprio
rejeitou a proibição da escravidão quando teve oportunidade (LOSURDO, 2011, p.
154).
Hayek argumentará em favor da
similaridade entre nazifascismo e comunismo através do fato de que alguns
ex-socialistas se tornaram nazistas ou fascistas. Diz ele:
Não menos significativa
é a história intelectual de muitos líderes nazistas e fascistas. Todos os que
têm observado a evolução desses movimentos na Itália ou na Alemanha
surpreenderam-se com o número de líderes, começando por Mussolini (sem excluir
Laval e Quisling), que a princípio foram socialistas e acabaram se tornando
fascistas ou nazistas
E o que ocorreu com os
líderes – ocorreu muito mais com os liderados. A relativa facilidade com que um
jovem comunista podia converter-se em nazista ou vice-versa era notória na
Alemanha, sobretudo para os propagandistas dos dois partidos. (HAYEK, 2010, p.
51)
O único problema de sua lógica é que ao
longo dos dois primeiros capítulos ele procurou demonstrar como os ideais
socialistas mudaram as mentalidades dos liberais, inclusive se aproveitando do
termo “liberdade” para tornar o ideal liberal em um ideal socialista (HAYEK,
2010, p. 48). Segundo ele mesmo, “o socialismo substituiu o liberalismo como a
doutrina da grande maioria dos progressistas” (HAYEK, 2010, p. 47) e que “Não
há dúvida de que a maior parte dos socialistas ingleses ainda crê profundamente
no ideal liberal de liberdade” (HAYEK, 2010, p. 52). Alerta-nos Hayek (2010, p.
56):
Também não devemos
esquecer que o socialismo não é apenas a espécie mais importante de
coletivismo ou de “planificação”; é também a doutrina que persuadiu
inúmeras pessoas de tendências liberais a se submeterem mais uma vez ao
rígido controle da vida econômica que haviam abolido (grifos nossos).
Sendo assim, se o fato de socialistas
terem se convertido ao nazifascismo prova que há uma afinidade entre essas duas
correntes de pensamento, há também uma afinidade entre socialismo e
liberalismo? Seguindo sua própria lógica, o liberalismo também seria
responsável pelo nazifascismo uma vez que influenciou o socialismo, que teria
influenciado os regimes de Hitler e Mussolini.
Não bastasse essa contradição
consigo mesmo, veremos como Mészáros (2011, p. 193) acerta novamente ao chamar
sua postura de “irracional” – o que é latente quando Hayek chama Augusto Comte
de “totalitário” por conta dele ter afirmado que “a eterna doença do Ocidente”
é “a revolta do indivíduo contra a espécie” (HAYEK, 2010, p. 41). A
incapacidade de Hayek em entender contextos históricos, o impede de ver que
Comte é um filósofo positivista preocupado com a consolidação do capitalismo e,
em consonância com aquilo que Durkheim mais tarde escreveria sobre a divisão social
do trabalho, procura justificar que cada indivíduo tem uma função específica
para manter a ordem necessária ao sistema do capital. Por isso, sua revolta não
é bem vista, porque é uma revolta contra a ordem capitalista estabelecida. Se
Comte é, pois, um “totalitário”, como Hayek implica, o totalitarismo que
defende é exatamente o capitalismo.
Mais do que isso, Hayek apresenta um
“positivismo acrítico” (MÉSZÁROS, 2011, p. 190)
que o impede de ver que suas teorias são extremamente similares as de
Comte. Vejamos: Lowy (1991, p. 35-36) define como positivista a análise de que
“a sociedade humana é regulada por leis naturais, […] invariáveis,
independentes da vontade e da ação humana”. A partir dessa lógica, Comte estuda
a “indispensável concentração de riquezas nas mãos dos senhores industriais”. A
função da sociologia, para ele, seria, portanto, explicar isso aos proletários;
nas palavras de Comte, “graças ao positivismo os proletários reconhecerão […]
as vantagens da submissão” (apud LÖWY, 1991, p. 39). Hayek, além de classificar o
capitalismo como a “única ordem econômica natural” (MÉSZÁROS, 2011, p. 197),
está de acordo com Comte a respeito de que a riqueza deve estar com os
capitalistas e de que isso é vantajoso para os proletários. Mészáros cita e dialoga
com passagens de A arrogância fatal, outra obra de Hayek.
Nas palavras de Hayek:
“Quando perguntamos o que os homens devem às práticas morais dos chamados
capitalistas, a resposta é: suas próprias vidas”. Não obstante, os
ingratos trabalhadores criados e mantidos vivos pelos generosos sujeitos
chamados de capitalistas não hesitam em morder a mão que os alimenta, em vez de
“se submeterem à disciplina impessoal” necessária para o bom funcionamento do
melhor dos mundos, a “ordem econômica ampliada” do capital... Pois, “embora
essa gente talvez se sinta [o grifo é de Hayek] explorada e os políticos possam brincar
com esses sentimentos para ganhar poder, grande parte do proletariado ocidental
e grande parte dos milhões no mundo em desenvolvimento devem sua existência às
oportunidades que os países avançados criaram para eles” (MÉSZÁROS, 2011, p.
190-191)
Hayek também concorda com o
“totalitário” Comte ao enfatizar o papel do indivíduo dentro da divisão social
do trabalho:
Para Hayek, as coisas
são muito simples em suas equações de apologia do capital: “sem os
ricos – os que acumularam o capital – os pobres que existissem seriam ainda
mais pobres”. E assim, no que diz respeito às pessoas “que vivem nas periferias
... por mais doloroso que seja este processo, também elas, ou melhor,
especialmente elas se beneficiam da divisão do trabalho formada pelas práticas
das classes empresariais” (MÉSZÁROS, 2010, p. 197)
Assim, “por mais doloroso que seja”,
não cabe ao indivíduo se revoltar contra sua espécie. Parece o ideal de Hayek,
segundo o qual “o respeito pelo indivíduo como ser humano, isto é, o
reconhecimento da supremacia de suas preferências e opiniões na esfera
individual, por mais limitada que esta possa ser, e a convicção de que é
desejável que os indivíduos desenvolvam dotes e inclinações pessoais” (HAYEK,
2010, p. 40), fica em segundo plano frente a supremacia e as preferências dos
capitalistas e da lógica do capital. Considerando isso, talvez
o título de seu livro ficasse mais apropriado se escrito como “Caminho da
servidão ao capital”.
REFERÊNCIAS
ACANDA, Jorge
Luis. Sociedade civil e hegemonia. Trad. Lisa Stuart. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 2006.
HAYEK,
Friedrich August von. O caminho da servidão. Trad. Anna Maria Capovilla,
José Ítalo Stelle e Liane de Morais Ribeiro. 6. ed. São Paulo: Instituto Ludwig
von Mises Brasil, 2010.
LOSURDO, Domenico. Democracia ou
bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal. Trad. Luiz Sério
Henriques. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004.
LOSURDO, Domenico. Liberalism: A
Counter-History. Trad. Gregory Elliott. Nova Iorque: Verso, 2011.
Disponível em
<http://abahlali.org/wp-content/uploads/2015/11/Domenico-Losurdo-Gregory-Elliott-Liberalism_-A-Counter-History-Verso-2011.pdf>. Acesso em: 04/10/2016.
LÖWY, Michael. Ideologias e ciência
social: elementos para uma análise marxista. 7. ed. São Paulo: PUC, 1991.
MÉSZÁROS, Istvan. O poder da ideologia. Trad. Paulo
Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo Editoral, 2004.
MÉSZÁROS,
István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. Trad.
Paulo Cezar Castanheira, Sérgio Lessa. 1.ed. revista. São Paulo: Boitempo,
2011.
NETTO, José Paulo; BRAZ, Marcelo. Economia política: uma
introdução crítica. São Paulo: Cortez Editora, 2006.
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