Imagem de capa da primeira edição de "Das Kapital", em 1867. |
Por Lucas
Parreira Álvares[1]
Alguns meses atrás participei de um debate na
Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG (FACE) que se desenvolveu a partir das
discussões do livro Marx at the Margins
de autoria de Kevin Anderson, que estava presente no debate. Em determinado
momento, o renomado professor da casa João Antônio de Paula, numa tentativa de
estabelecer uma aproximação entre Marx com o pensamento evolucionista, mencionou
o tal episódio em que “Marx pretendia dedicar O Capital à Charles Darwin”. Por já saber que na verdade essa
suposta dedicatória não passava de um grande mal entendido, contestei, naquele
instante, a fala do professor João Antônio de Paula que em seguida me
respondeu: “mas isso é fato, está documentado”. Coube, em seguida, ao professor
Kevin Anderson – com maior propriedade, e com toda sua elegância - explicar o
imbróglio.
A resolução desse assunto não é novo na
literatura marxista, e mesmo alguns pesquisadores brasileiros já mencionaram em
artigos científicos o episódio em questão – por exemplo o artigo História e Teologia em Darwin e Marx: para
entender um debate de Maurício Vieira Martins. Entretanto, desde esse
episódio na FACE me deparei com alguns textos recentes que ainda batiam nessa
mesma tecla da suposta dedicatória que Marx teria feito a Darwin. Me atraí
principalmente por uma recente citação do excelente artigo Capital as Spirit, do marxista japonês Kojin Karatani, publicado na
revista Crisis and Critique. Aspas para Karatani “It is well-known that Marx dedicated Capital to Darwin”. Baseado
nessa inquietação, e por admiração ao professor João Antônio de Paula,
desenvolvi esse breve texto cuja intenção – nem um pouco inédita - é a de tentar
explicar minuciosamente essa “trama envolvente” que ganhou contornos
tragicômicos no seio da tradição marxista.
***
Cena
1
1859 d.C.: O naturalista britânico Charles
Darwin lança sua obra-prima intitulada A
Origem das Espécies por Meio da Seleção Natural ou a Preservação de Raças
Favorecidas na Luta Pela Vida, ou simplesmente A Origem das Espécies, obra paradigmática para as ciências da
natureza através da qual Darwin apresenta sua teoria da evolução das espécies.
Cena
2
1867 d.C.: O revolucionário alemão Karl Marx
lança o primeiro tomo de sua obra-prima intitulada O Capital: crítica da economia política – o processo de produção do
capital, ou simplesmente O Capital
livro I, obra paradigmática para a ciência da história na qual Marx apresenta
as determinações da anatomia da sociedade-civil-burguesa. Nessa obra, Marx cita
Darwin em duas notas de rodapé.
Cena 3
1873 d.C.: Marx envia a Darwin a segunda
edição de O Capital. Dentro, um
singelo bilhete escrito “Ao Sr. Charles
Darwin, em nome de seu sincero admirador, Karl Marx”. No mesmo ano, Darwin
envia uma carta a Marx como resposta: “Distinto
senhor, agradeço-lhe a honra que me oferece ao me enviar seu excelente trabalho
O Capital. Sinceramente, penso que mereceria mais o seu dom se eu entendesse
algo mais sobre essa questão profunda e importante que é a economia política.
Embora nossos estudos sejam tão diferentes, acredito que ambos desejamos
ardentemente a disseminação do conhecimento e que, a longo prazo, isso
certamente ajudará a aumentar a felicidade da raça humana. Fico muito
agradecido senhor. Do seu, com afeto, Charles Darwin”.
Cena
4
1880 d.C.: Edward Aveling, biólogo inglês
casado com Eleanor Marx, filha de Karl Marx, escreve uma carta a Darwin, de
quem era seguidor, solicitando permissão para dedicar sua obra The Student’s Darwin ao evolucionista: “Proponho, dependendo novamente de sua
aprovação, homenagear minha obra e a mim mesmo dedicando-a a você”. Sem
nomear o destinatário na carta, e sem mesmo data-la, Darwin responde naquele
mesmo ano: “Distinto senhor, estou muito
agradecido pela sua cortês correspondência e pelo conteúdo da mesma. A
publicação, na forma que está, de suas observações sobre meus escritos não precisa
em realidade de consentimento algum por minha parte, por isso não seria sério
para mim que eu desse meu consentimento do que não possui nenhuma necessidade.
Preferia que não me dedicasse o tomo e o volume (embora eu agradeça pela honra
que quer me dar), pois isso implicaria de certo modo em minha aprovação de toda
a publicação, sobre a qual eu nada sei. Além disso, embora eu seja um decidido
defensor da liberdade de pensamento em todos os campos, me parece – com razão
ou equivocadamente – que as argumentações de maneira direta contra o
cristianismo e o teísmo dificilmente produzem algum efeito no público. Penso
que a liberdade de pensamento se promove melhor através da gradual iluminação
das mentes em que se deriva o progresso da ciência. Pode ser que, no entanto,
eu tenha sido muito influenciado pelo desgosto que alguns membros da minha
família sentiria se eu tivesse aprovado de algum modo ataques dirigidos contra
a religião. Não gostaria de rejeitar sua oferta, mas estou velho, tenho pouca
força e ler as provas de impressão – como eu sei pela experiência recente – me
cansa muito. Fico muito agradecido senhor. Do seu, com afeto, Ch Darwin”.
Cena
5
1881 d.C.: Edward Aveling publica sua obra The Student’s Darwin sem a dedicatória a
Charles Darwin.
Cena
6
1883 d.C.: Morre Karl Marx. Grande parte de
seu acervo fica sob organização de seu companheiro Friedrich Engels, que,
dentre outros trabalhos, organiza e publica os tomos II e III de O Capital.
Cena
7
1895 d.C.: Morre Friedrich Engels. O acervo
de Marx, por um tempo, fica sob responsabilidade de sua filha Eleanor Marx bem
como de seu genro, Edward Aveling. Nesse tempo, os materiais de Marx se
mesclaram com os materiais de Aveling.
Cena
8
1931 d.C.: A revista soviética Pod Znamenem Marksizma (Sob a
Bandeira do Marxismo) publica a carta que Darwin enviou a Aveling. Pelo fato da
carta estar em seu acervo, e por não ser nomeada nem datada, a revista sugere
que o destinatário desconhecido da carta poderia ser Karl Marx.
Cena
9
1939 d.C.: Isaiah Berlin, liberal britânico e
um dos biógrafos de Karl Marx, escreve em sua obra que “o autor de O Capital queria dedicar a Darwin a edição original alemã”.
Depois dessa menção da biografia de Marx escrita por Berlin, vários marxistas
do Século XX acreditaram que Marx pretendia dedicar O Capital a Darwin.
Cena
10
1978 d.C.: Margareth Fay, intérprete de
Darwin, escreve o artigo “Did Marx offer
to dedicate Capital to Darwin? A Reassessment of the Evidence”, através do
qual apresenta as conclusões de sua investigação onde descobriu que o
verdadeiro destinatário da carta de Charles Darwin no ano de 1880 não era Karl
Marx, mas sim o seu genro Edward Aveling.
***
Não foram poucos os renomados
autores que reproduziram essa informação de que Marx pretendia dedicar O Capital a Darwin. Além de Isaiah
Berlin e Kojin Karatani, o húngaro Györg Lukács e o americano Lawrence Krader
igualmente aderiram ao mal entendido. O biógrafo David McLellan também não
escapou dessa. E se por um acaso você encontrar algum teórico contemporâneo que
mencione o tal episódio, não se surpreenda – embora possa parecer incômodo que
Marx cogitasse dedicar uma obra a Darwin. O fato é que Marx dedicou o tomo I de
O Capital ao seu “inesquecível amigo, ao
corajoso, fiel e nobre pioneiro do proletariado, Wilhelm Wolff”, e por isso
alguns intérpretes acreditaram – e Isaiah Berlin também cogitou essa possibilidade
– de que a intenção de Marx era dedicar o tomo II a Darwin. Bom, nem Marx tinha
essa intenção, e nem sabemos qual era o destinatário da dedicatória do tomo II,
afinal Marx morreu antes da obra ser concluída. Mas que a história fez da
relação de Marx com Darwin uma trama tragicômica, isso fez. Para piorar, Janeth
Browne, intérprete e editora das obras de Darwin concluiu em 2002 que o
evolucionista não chegou a ler, nem sequer a abrir o exemplar de O Capital que Marx o enviara. A obra
permanece intacta na conservada e cuidadosa biblioteca de Darwin até hoje.
Poderia ser essa a nossa décima primeira cena?
Referências Bibliográficas
ARNAL, Salvador Lópes. Darwin, Marx y las dedicatorias de El
Capital. 2009. Disponível em:
<https://observadorjuvenil.wordpress.com/2009/11/23/darwin-marx-y-las-dedicatorias-de-el-capital/>.
Acesso em: 03 jan. 2018.
BROWNE, Janet. Charles Darwin. El poder del lugar,
Valencia, PUV, 2009, p. 246 (traducción de Julio Hermoso).
FAY,
Margaret. “Did Marx offer to
dedicate Capital to Darwin?: A Reassessment of the
Evidence” . Journal of
the History of Ideas, Vol. 39, No. 1 Jan-Mar, 1978, pp. 133-146.
KARATANI,
Kojin. Capital as Spirit. Crisis
& Critic. Volume 3, 2016, p.167-190.
McLELLAN,
David. Karl Marx. Su vida y sus ideas.
Barcelona : Crítica, 1983, 488p.
[1]
Nascido no município de Pompéu (MG), é graduado
em Ciências do Estado pela Universidade Federal de Minas Gerais e mestrando em
Direito pela mesma instituição. É autor do artigo “Comunismo Primitivo e
transição capitalista no pensamento de Rosa Luxemburgo” (2017) e atualmente
desenvolve pesquisas sobre os Cadernos etnológicos de
Karl Marx.
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Parabéns companheiro, excelente texto. Finalmente me tirou essa dúvida... Recentemente ouvi essa história, novamente, em uma live e a curiosidade me fez dar uma pesquisada!!
ResponderExcluirÓtimo texto!
ResponderExcluirEsclarecedor.
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