O caráter desantropomorfizador da ciência na Estética de György Lukács

 


Por Frederico Lambertucci – Mestre em Serviço Social pela UFAL

 

Conhecer a realidade é uma necessidade que brota da vida cotidiana e do trabalho, necessidade interna de realização do ato de trabalho e da própria cotidianidade dos homens. Contudo, em certas formações sociais esse processo é obstaculizado. Se no modo de produção primitivo – abstraídas seus diferentes momentos e particularidades – a luta entre antropomorfização e desantropomorfização não ascende a luta entre princípios, na Grécia isso tem lugar pela primeira vez na história com a produção de uma metodologia de pensamento cientifico.

Na Grécia temos a gênese da ciência, o aparecimento desta enquanto complexo particular. O decisivo desta gênese é a contraposição entre pensamento antropomorfizador e desantropomorfizador se alçar ao nível de universalidade. Sem essa universalização o pensamento desantropomorfizador poderia se acomodar sem dificuldades no interior de uma concepção antropomorfizadora[1]. Podemos ver como a matemática e a astronomia não foram suficientes para alçar ao nível de universalidade, de luta de princípios a luta entre o pensamento antropomorfizador e desantropomorfizador.

Os fundamentos sociais dessa contraposição universalizadora encontramos no modo de produção escravista e sua concomitante democracia política[2]. A propriedade privada grega subordina-se a comunidade, o que implica uma escravidão onde os escravos são posse dos proprietários privados, isto irá permitir o desenvolvimento do pensamento científico, na medida em que não há uma casta ou que o Estado seja uma forma de salvaguarda das verdades e da concepção de mundo dessa sociedade. Contudo, essa mesma base econômica que tornou possível a gênese da ciência, produziu as suas limitações, o principal desses limites derivava do desapreço social do trabalho como veremos a frente.

Aqui importa assinalar como a independência da cientificidade assim posta possibilitou o desenvolvimento de uma metodologia unitária e uma concepção de mundo científica. Isto é, o reconhecimento das categorias e a generalização científica se tornaram possíveis.

Todavia, esse desenvolvimento não foi idílico, a luta entre religião e ciência aparece de forma aguda, poderíamos citar como exemplo o desapreço da filosofia pela poesia e vice-versa. Historicamente, o que é notório é que ciência e religião devem e tem que se separar, isto ocorre na medida em que esses complexos se autonomizam.

Retomando as já citadas limitações, a mais importante se devia ao fato do trabalho ter um desapreço social. Essa relação com o trabalho impunha limites ao desenvolvimento do pensamento científico. A ideia de que a forma superior de pensamento se rebaixaria ao entrar em contato com problemas práticos, do mundo sensível era universal entre os filósofos gregos. Isso tornava impossível que a ciência se relacionasse com os problemas da produtividade do trabalho e nem que esses problemas servissem de plataforma do desenvolvimento da ciência.

Essa impossibilidade impediu um desenvolvimento omnilateral da ciência com a vida cotidiana, a nível de seus resultados influírem universalmente. De outro lado, também impediu o desenvolvimento correto da relação entre o princípio científico e o método científico na elaboração do reflexo científico da realidade.

A limitação tem como consequência que as relações entre ciência e vida cotidiana se manifestem no campo da ética antes que nas ciências da natureza, uma vez que a própria transformação da natureza operada pelo trabalho é desapreciada, inumana. Apesar disso, a filosofia grega elaborou tanto sobre as formas de separação entre pensamento científico e religioso, tanto quanto sobre a função do reflexo científico em relação a vida.

O principal é a fundação de uma linha real de conhecimento objetivo, em contraposição ao subjetivismo operante na vida cotidiana. Lembremos da busca da Arkhé. Independente das formas específicas, a caracterização dessa linha se dá pelo controle da subjetividade em busca do em-si do real. Esse tipo de reflexo científico da realidade é uma desantropomorfização do sujeito e do objeto. Do primeiro pelo sujeito se manter em constante crítica da realidade e de suas representações e formações conceituais, o segundo pelo direcionamento ao em-si do objeto, retirando da relação toda representação subjetiva externa a real objetividade da realidade.

Mesmo tendo dado esses passos gigantes, no entanto, o ponto mais alto e total do pensamento desantropomorfizador só é dado pelo materialismo filosófico. A superioridade do materialismo filosófico, em contraposição ao materialismo antigo, ocorre pelo segundo não ter podido dar o passo seguinte na direção da elaboração do reflexo científico da realidade pelas limitações da economia escravista.

Dessas limitações apenas o renascimento irá reabrir as portas para o desenvolvimento posterior da ciência, inclusive com o cessar da luta entre arte e ciência. Isto ocorre pelo próprio desenvolvimento da filosofia da natureza e a concreção de categorias desantropomorfizadoras com a agora possível descoberta de outras formas de reflexo da realidade.

Na Grécia essa luta não poderia deixar de ocorrer, pelas limitações que já vimos, e pelo fato de que o que até então era concepção global de mundo e a explicação do mundo se tornara objeto que ele mesmo requeria explicação e que assim via-se ameaçado em sua função de explicação global.

É interessante neste ponto observar que há duas fases desse pensamento desantropomorfizador. Hegel pontua, por exemplo, que há uma primeira fase que se volta ao conhecimento do real, enquanto o segundo critica toda objetividade do pensamento filosófico. Assim ele compreende explicando que o primeiro se dirige contra a todo pensamento comum (cotidiano) por se manter no finito, no dado, no empírico.

Ainda segundo Hegel, o mais importante é o fato de que esse pensamento conseguindo criar antinomias transcendendo o pensamento cotidiano e dessa forma se capacita a desvelar o em-si do existente. Isso significa a libertação do pensamento face a percepção sensível.

Apesar de Lukács nunca expor nesses termos, visto que na Estética ainda não havia adotado o conceito de ontologia, que era associado a metafísica, o que Hegel sinaliza e as tendências filosóficas gregas sinalizam é sua perspectiva ontológica. O conhecimento sempre se encontra articulado com o problema do reflexo e ambos igualmente articulam-se com um dos problemas centrais da realidade, a essência da realidade objetiva, a qual era objeto de conhecimento da filosofia grega.

A segunda fase mantém conquistas da primeira fase, mas retorna a uma concepção antropomorfizadora na medida em que em Platão temos uma teoria do conhecimento que propõe uma reorientação da filosofia pela via do idealismo. Isso ocorre com a teoria do reflexo se duplicando em um mundo ideal extra-terreno, a teoria do reflexo não é mais apenas reflexo do real, mas sim reflexo do mundo ideal e do mundo empírico. Platão reconduz a filosofia ao antropomorfismo ao dar real estatuto ontológico ao mundo ideal, que para ele constitui a real objetividade.

Aqui é onde se torna cognoscível a crítica que Aristóteles realiza ao mundo ideal de Platão ao apontar que o mundo ideal de Platão não é nada mais que os predicados da realidade elevados a uma eternidade transcendente de modo a duplicar o mundo. A antropomorfização aparece pelo fato de Platão fazer da essência algo separado e sobre o mundo dos fenômenos.

Para tornarmos compreensíveis os fundamentos dessa recondução, basta que lembremos daqueles fundamentos que põe possibilidades e limitações a economia escravista. Segundo Lukács, o modelo de onde deriva as imagens idealistas de mundo saem da “psicologia do processo de trabalho” isolada da totalidade.

Enquanto a totalidade do processo de trabalho fornece o modelo básico do reflexo correto da realidade, a “psicologia” desse processo isolada faz parte da concepção da antiguidade que termina por dar existência autônoma as ideias, transformando a essência em mundo ideal não apenas separado, mas como causa do mundo empírico. Desse modo o momento subjetivo do trabalho é elevado a momento genético de todo o existente através da essência (mundo ideal).

Esse esgarçamento do momento subjetivo do trabalho e seu elevado estatuto ontológico não apenas deriva de uma abstração do trabalho em geral da causalidade da realidade objetiva, mas antes do próprio caráter do trabalho na Grécia, a parte física do trabalho tinha um absoluto desapreço e, portanto, a transformação material não poderia ter o mesmo estatuto que a sua componente intelectual. Dessa forma o produto sempre aparecia como algo inferior ao seu produtor.

Essa hierarquia entre criador e “criatura” é uma linha condutora que irá salvaguardar os fundamentos intelectuais da religião. Ao mesmo tempo que se opera um retorno a concepção religiosa de mundo essa se mescla com o método científico que é trazido para seu interior, assim impedindo-o de afetar a sua concepção de mundo global. A tendência desantropomorfizadora se transforma em uma antropomorfizadora.

Não é suficiente, apesar de necessário, estabelecer os fundamentos da antropomorfização e da desantropomorfização, a evolução e involução da segunda, face o recuo e avanço da primeira. A contraposição comparece mesmo no interior de um mesmo pensamento como o de Platão, este ao mesmo tempo que retoma a dialética a insere em uma concepção antropomórfica. A contraditoriedade existente no pensamento platônico será realçada com Plotino, que irá separar o mundo ideal de maneira mais radical do mundo existente. Este fundamenta uma concepção de realidade em que não estão presentes os conceitos de quantidade nem de devir. Essa concepção tem que se amparar em uma forma deturpada de desantropomorfização. Não apenas porque quantidade e devir são decisivas para a desantropomorfização, mas que essa não é possível sem o controle de uma subjetividade que se limpe ao máximo para a apreensão do em-si dos fenômenos.

A dualidade dessa forma é que ela produz uma pseudo superação do pensamento cotidiano, pois ela própria é ao mesmo tempo filha do subjetivismo e mantêm a relação entre prática e teoria da própria cotidianidade e de outro lado postula um abandono dessa relação, ao pôr o mundo inteligível como o verdadeiro. A contraposição entre desantropomorfização e antropomorfização aparecem aqui no fato de que a doutrina das ideias (Neoplatonismo e Platão) e a religião coincidem ao pôr que a alma humana só consegue encontrar-se ao se elevar para um mundo ideal, essencial. E que a ciência seria onde o homem se violenta, se esvazia. Façamos a ressalva que ainda em Platão, a geometria e a matemática são formas de iniciação ao mundo ideal.

Essa tendência aparece mais fortemente nos neoplatônicos e continua na idade moderna. Pascal é um exemplo, quando pensa a desdivinização do mundo como uma ameaça a integralidade do homem. No entanto, o que ocorre é justamente o oposto, o homem se integraliza. A desantropomorfização que leva a cabo a ciência é um instrumento de domínio do homem sobre a natureza. Nasce do trabalho e é a forma de comportamento mais alta nascida deste, não apenas auxilia na autoprodução do homem com o seu necessário controle da natureza, mas também enriquece e faz mais humano esse mesmo homem com o aprofundamento do conhecimento sobre o mundo real.

Ao contrário, a intuição religiosa que se alça sobre a cotidianidade o faz pondo o homem como produto de uma essência, um mundo transcendente que se põe em oposição hostil ao mundo real. Esse mundo transcendente faz com que o que ocorra seja uma pseudodesantropomorfização, objetiva e subjetivamente. Objetiva, pois cria um mundo sobrehumano que independe desse e está além das possibilidades de ação desse. Subjetivamente porque esse sujeito tem que romper com o seu concreto ser homem, inclusive moralmente para atingir esse mundo projetado.

A pseudodesantropomorfização ocorre ao se ir além da cotidianidade, colocando o encontro do homem em um espaço transcendente a sua própria realidade. Opostamente, as concepções que tomam o caminho de uma ética podem se voltar a forma concreta dos homens, enquanto o caminho abstrato de uma transcendência do ser do homem em uma idealidade leva a uma aproximação mítica, religiosa. Essa transcendência que se realiza assim também possui rebatimentos na própria estética, já que aqui esse mundo ideal é demiurgo do conceito de perfeição, belo e etc, tem que ele mesmo como “sujeito” ser um “super artista”. 

O que foi visto é que a involução da tendência desantropomorfizadora provêm não da concepção místico-religiosa superada em certo momento pela filosofia grega, mas sim da própria filosofia.  Depois do visto fica claro que a questão da luta entre as tendências se coloca a partir do desenvolvimento da teoria do reflexo. Não se trata mais de uma nascente desantropomorfização contra a antropomorfização existente, mas sim o desenvolvimento dessa luta.

El contradictorio florecimiento de la desantropomorfizácion en la Edad Moderna

A tendência a antropomorfização é dominante até o fim da Idade Média, só encontrando resistência no Renascimento. Mas essa resistência se desenvolve através de duas correntes de causas principais. Em primeiro lugar, a amplitude, profundidade, intensidade de penetração desantropomorfizadora depende em que medida o trabalho e a ciência conseguem dominar a realidade objetiva em um momento determinado. Aqui lembramos novamente as limitações da economia escravista que impediam que as geniais generalizações da filosofia pudessem se conectar a fatos, conexões e relações particulares alçando o patamar de universalidade concreta. Esse caminho só começa se abrir no fim da idade média.

Em segundo, não é apenas esse desenvolvimento do trabalho, que dá uma grande quantidade de material para a filosofia e a ciência, mas a capacidade que uma sociedade tem de ideologicamente suportar aquelas generalizações, aquelas verdades obtidas do âmbito material. A questão é: por que sociedades que desenvolvem suas forças produtivas podem não suportar o reflexo da realidade objetiva que tornam possível? Esse é, segundo Lukács, um problema do materialismo dialético que desemboca no materialismo histórico, nas formas concretas de uma sociedade e suas leis gerais. Portanto, se trata de “descer” até a formação concreta para conseguir avançar na tarefa de apreender o processo de desenvolvimento do reflexo da realidade objetiva, a desantropomorfização. Se passará a análise do período moderno em seus traços mais gerais, principalmente a reorientação do processo do reflexo científico da realidade.

O primeiro é o aparecimento do modo de produção capitalista. (Última sociedade de classes possível pela sua formação histórico-concreta). O capitalismo cria tanto as condições materiais de sua superação quanto os seus próprios coveiros, o proletariado. Disto nasce, muito antes que essa contradição se manifeste, a sua diferença de princípio de todas as sociedades anteriores. Todas as outras sociedades tiveram suas superações a partir de uma contradição entre suas forças produtivas e as relações sociais de produção que geraram outras relações a partir de sua crise, isso não é o mesmo que ocorre com o capitalismo.

Sobre essa questão, dois momentos são importantes. Primeiro que diferente de todos os outros modos de produção, o desenvolvimento das forças produtivas no capitalismo não conhece fronteiras sagradas. Segundo que esse desenvolvimento ilimitado das forças produtivas tenha lugar junto a um também ilimitado desenvolvimento do método científico. Derrubada a barreira limitadora do desenvolvimento das forças produtivas a ciência pode adentrar a esfera do trabalho e mesmo sem alterar a sua estrutura penetrar com seus resultados à vida cotidiana.

Essa situação nova põe o segundo motivo inibidor do desenvolvimento do espírito científico. Isto é, a contradição entre o método científico levado até as últimas consequências, incluindo sua universalização à concepção de mundo e a concepção de mundo da classe dominante que expressa a sua necessidade social.

O problema se exprime da seguinte forma, a classe dominante (burguesia) não pode tolerar brechas na sua concepção de mundo (provindas dos resultados da ciência) e ao mesmo tempo tem que continuar desenvolvendo as forças produtivas (e a ciência como força produtiva) para se manter enquanto classe dominante. (Caráter novo da involução ideológica, dupla função histórico-social da classe dominante).

Aqui há uma reação da classe dominante de modo que pudesse acomodar o método científico e suas consequências as aplicações práticas do trabalho, mas impedindo de tirar consequências de longo alcance, elevar à concepção de mundo. A reação brutal quanto à concepção de mundo, pensemos em Galileo Galilei ou no acordo do Cardeal Bellarmino.

Mas disso, sempre segundo Lukács, não se segue que seja possível que o método científico e o resultado da ciência (cada vez mais radicalmente desantropomorfizador) seja ideologicamente suportável pela classe dominante. A luta contra essas tendências é cada vez maior e tem de servir sempre de novos meios, isso porque precisa manter ao mesmo tempo a marcha do desenvolvimento das forças produtivas, o que ocorre impedindo a generalização dos resultados da ciência. O principal artifício é o idealismo subjetivo de orientação epistemológica. Assim como na antiguidade, interiorizar o método científico em uma concepção antropomorfizadora.

Como não se pode contrapor uma imagem antropomorfizadora do mundo contra a desantropomorfizadora da ciência sob pena de pôr em perigo o ulterior desenvolvimento da ciência, o idealismo subjetivo consegue manter a imagem desantropomorfizadora ao nível dos fenômenos, ao mesmo tempo interdita o em-si, e com isso a possibilidade humana do acesso ao real. Assim conserva a ciência e impede seu alçamento a concepção de mundo. Apesar das diferenças entre as tendências internas ao idealismo subjetivo (positivismo, neopositivismo et ali) aqui todas são consideradas a partir de sua característica comum: antropomorfismo.

Quando as tendências desantropomorfizadoras ameaçam a ideologia dominante, a religião e a fé tendem a radicalizar a luta (incluso a difamação do método da ciência, a captura do em-si) que é “substituído” por um método antropomorfizador.

O subjetivismo nesse processo tem que se acentuar nas tendências antropomorfizadoras. Isso é mais visível nas filosofias puras que na religião propriamente, pois aqui essa filosofia tem que se apresentar com pretensão de objetividade. O exemplo dado por Lukács são as tendências a subjetivação do tempo (Bergson, Heidegger) ou do espaço (Scheler, Ortega), essas filosofias modernas contrapõe o vivido, o captado imediatamente pelo sujeito como a autêntica realidade em contraposição com a morta realidade do conhecimento científico. Apesar dos movimentos antropomorfizadores da decadente filosofia burguesa, a desantropomorfização conseguiu uma vitória definitiva com o reflexo científico da realidade.

No capitalismo, pela sua intima conexão com o necessário desenvolvimento das forças produtivas, o reflexo desantropomorfizador não pode sofrer um refluxo tão acentuado quanto na antiguidade, em oposição, tem uma tendência de intensificar e expandir seu âmbito. De um lado, o crescente âmbito da prática humana tem que trabalhar cada vez mais com categorias desantropomorfizadoras, neste terreno as concepções de mundo dos ideólogos não adentram, visto que é a base do poder da classe dominante e se mantêm apenas na batalha da concepção de mundo mais geral. Desantropomorfização nos problemas da prática, antropomorfização na concepção de mundo, eis o resumo. Essa contradição deriva da crise da existência burguesa. Isso leva ao fato da matemática e física serem objeto de estudo de um sujeito, sem que ele leve isso as últimas consequências na sua concepção de mundo.

O esvaziamento de representações religiosas (antropomorfizadoras) pode ter efeitos devastadores, quanto estusiasmantes a depender do indivíduo em questão. O que deriva da situação concreta do desenvolvimento dessa sociabilidade, o nível de opacidade dessa objetividade determinante da individualidade e etc.

A opacidade da vida social objetiva, torna possível a dualidade contraditória entre a radical desatropomorfização da prática com a antropomorfização da concepção de mundo, de modo a que possam conviver pacificamente religião e ciência. Dessa forma, os eventos, o sentido da vida que se plasma na cotidianidade não pode ser compreendido a partir de um reflexo cientifico, mas de uma posição religiosa. O exemplo citado por Lukács é de Planck, justamente por ponderar o mais alto grau de desantropomorfização, e manter o estatuto da religião como momento necessário da vida dos homens, da ação. Diferentemente dos gregos, e dos renascentistas, o que falta a Planck é a segurança da concepção de mundo.

Essa perspectiva da segurança, Lukács utiliza os exemplos de Hobbes e Spinoza para demonstra-los. Segundo ele, o ponto de vista científico-desantropomorfizador com um acento filosófico se expressa com toda claridade nesses dois autores. Ambos tentam aplicar o modelo geométrico na antropologia, psicologia e na ética. Não interessa, o equívoco que constitui esse programa metodológico, mas sim os fundamentos sociais que determinam o pensamento dos autores.

Ambos recusam o princípio de qualquer força transcendente no domínio do homem para com seus afetos, que é o conceito de liberdade em ambos os autores. Spinoza utiliza a protoforma do trabalho para a explicação de outros complexos da vida social, mesmo que não tenha clareza disso. É assim que ele postula a causalidade como fruto de uma teleologia. É por aqui que Spinoza introduz a ideia de leis independentes da consciência dos homens que precisam de um conhecimento objetivo, no que tange a natureza prioritariamente, para a realização das finalidades.

As duas questões tratadas até o momento, a saber, a ação do princípio desantropomorfizador desde o ponto de vista da imagem cósmica (concepção de mundo) tanto quanto da racionalização da sua prática. Esse ponto de vista segundo Lukács é adequando, mas não suficiente, não se pode descuidar do reflexo científico nas concepções pessoais e em complexos como a ética, p. ex. Principalmente porque geralmente a resistência contra o princípio desantropomorfizador deriva deste ponto, a ideia de inumanidade, desumanização e etc.

Contrariamente a isso, Lukács traça uma linha entre o princípio da ética e do pensamento desantropomorfizador. Enquanto a ética é o complexo que a cada momento histórico tem que expressar os interesses mais genéricos do gênero humano, o pensamento desantropomorfizador é a base dessa possibilidade, efetivamente porque é através dele que os homens podem ver a si mesmos como começo e fim, como autoprodução humana. Por isso, a ética, que precisa que o mundo externo seja considerado de modo desantropomorfizador tem como base esse princípio.

Segundo Lukács, algo que distingue a orientação a desantropomorfização em sua relação com a ética compreende duas questões fundamentais. A primeira é que o conhecimento correto é uma condição para a vinculação da ética e da liberdade. A dependência do comportamento ético daí derivada. E a segunda é o indivíduo mesmo, considerado em sua imanência, segundo suas leis próprias, sem “mitologizar” suas forças e debilidades derivando-as do transcendental.

Lukács tem claro – contra aqueles que ponderam a inumanidade do reflexo científico – que o reflexo desantropomorfizador é um instrumento de apropriação da realidade com que conta o gênero humano para se desenvolver, e que esse próprio desenvolvimento é o processo de ampliação e de aprofundamento das capacidades humanas, o que significa que tal pensamento se relaciona também ao desenvolvimento da personalidade. Esses sistemas de objetivação superiores, primariamente a arte e a ciência, desprendem-se da vida cotidiana. O homem inteiro da cotidianidade se converte no homem inteiramente, isto é, inteiramente voltado aos sistemas de objetivação, segundo Lukács.

Essas objetivações superiores, só podem vir-a-ser quando os objetos adquiridos, elaborados pelo reflexo e suas relações adquirem um meio homogêneo. A diferentes formas de objetivação superior correspondem meios homogêneos distintos. Essa homogeneização, que ocorre, p. ex., entre conteúdo e forma, o exemplo citado por Lukács é a matemática, corresponde a uma transformação subjetiva, que se volta ao em-si da coisa. Contudo, não apenas a matemática, mas todas as ciências, incluso as sociais, lançam mão do meio homogêneo para a captura do real, suas leis, relações e etc.

Essa desantropomorfização da ciência, distintamente da ciência, tem um caráter infinito-total que não se fecha em si mesmo, esse caráter deriva diretamente da própria realidade, isso se mantêm mesmo quando esse objeto da ciência é tão somente parte do real.  O reflexo científico não se converte nunca em um mundo fechado, não possui uma autonomia absoluta do real, é sempre parcial, objetivamente, porque o real é um processo inesgotável, quanto metodologicamente, pelas limitações da sua própria apreensão subjetiva – o que não significa impossibilidade de conhecer o mundo.

Deste fato, deriva a forma peculiar da ciência, a acumulação de conhecimentos, do qual sempre tem que se lançar mão para um novo reflexo. O meio homogêneo na ciência tem um caráter unitário para o conjunto das ciências, pois estas têm como objeto a mesma realidade objetiva que buscam apreender, assim o meio homogêneo da ciência possui um caráter universal, justamente porque, como diz Lukács, só há uma ciência no fim, uma aproximação ao unitário do mundo dos objetos. Em oposição, o meio homogêneo na arte é sempre singular, já que aqui a obra de arte representa um mundo particular, fechado em si mesmo e autossuficiente internamente.  Essa diferença estrutural do mundo refletido na consciência pela ciência com suas diferenças da arte, são fundamentais para compreender a peculiaridade do “homem inteiramente”, como um modo subjetivo de comportamento.


[1] Raymond Williams dá um exemplo que ilustra bem essa situação. No livro “O povo das montanhas negras” ele descreve uma situação em que na época da comunidade primitiva, idade dos metais, os indivíduos criavam carneiros. Esses indivíduos viviam ao lado de uma floresta, e começaram a cortas as árvores para a construção de abrigos, cercas para os carneiros. A área de pasto aumentou após o corte das árvores, eles construíram abrigos e cercas e a população de carneiros começou a aumentar, tanto porque agora tinham mais pasto e isso possibilitava uma saúde melhor do rebanho, quanto porque as cercas preveniam que alguns fugissem ou se perdessem, ou mesmo dificultavam o ataque de animais selvagens. Com isso, eles foram aumentando a área de pasto cortando cada vez mais árvores, até o ponto em que isso alterou o clima e trouxe uma grande seca. Os carneiros começaram a morrer em bandos, a alimentação dos indivíduos piorou e também morreram vários. A explicação dada pelo grupo foi que eles teriam cortado a árvore em que ficava a casa do deus da chuva, e ele irritado, seria o responsável pelas tragédias. O que essa história sinaliza, é justamente a possibilidade e realidade histórica do que Lukács sinaliza acima, como em meio a necessários atos de trabalho em que o pensamento desantropomorfizador (mais tarde, na ontologia intentio recta) precisa se fazer presente mesmo que conviva com uma concepção de mundo antropomorfizadora (intentio obliqua), a explicação de mundo mais geral se deve aos deuses.

[2] Abstraindo-se das formas distintas de organização política, discutidas por exemplo por Aristóteles.

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Wesley Sousa

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