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Glauber Ataíde é mestre em Filosofia pela UFMG, na linha de Filosofia Contemporânea, com pesquisa no pensamento do jovem Georg Lukács. Possui bacharelado em Filosofia (2011-2015) pela UFMG e bacharelado em Sistemas de Informação (2006-2010) pela Faculdade Pitágoras. Principais áreas de interesse: marxismo, psicanálise, idealismo alemão. E também possui um podcast e um canal no Youtube, ambos chamados “Filosofia Vermelha”.
AC – Glauber, para iniciar, conte-nos brevemente como
chegou ao marxismo e na graduação em filosofia, bem como sua atuação no
movimento sindical. Como foi tudo isso até chegar à pós-graduação?
Minha primeira experiência com o marxismo foi ainda no
ensino médio. Um belo dia, ao perceber meu interesse pelas questões discutidas
em sala de aula, uma professora de história me deu uma cópia do Manifesto do partido comunista que
estava em sua bolsa e me disse: “leia isso”. Na época eu trabalhava durante o
dia e estudava à noite, e por isso tive que ler grande parte do livro a caminho
do trabalho, dentro do ônibus. A partir deste período comecei a compreender as
razões das desigualdades sociais e senti a necessidade de me organizar
politicamente, mas isso só aconteceria quase dez anos depois.
Meu caminho para a filosofia foi através da teologia. Fui
cristão evangélico em minha adolescência, e sempre buscava compreender as
razões da fé cristã, ao invés de aceitar passivamente tudo o que os líderes
ensinavam. A questão, para mim, não era apenas acreditar em Deus, mas de fato saber que ele existe e sustentar esta
posição de maneira racional. Isso me levou para a apologética, uma área da
teologia que trata da defesa da fé, e passei a ter contato direto com autores
clássicos como Santo Agostinho e Tomás de Aquino. Em discussões com colegas ou
familiares, conseguia apresentar com desenvoltura as “cinco vias” de Tomás de
Aquino ou a aposta de Pascal, mostrando que minhas teses eram mais racionais
que o ateísmo. Ainda hoje, mesmo não acreditando mais em Deus, às vezes apresento
estes argumentos quando quero mostrar a alguém que é errado pensar que todo
cristão é ignorante. Também lia vários autores contemporâneos, tais como
William Lane Craig, J. P. Moreland, Roy Clouser e Alvin Plantinga. Não demorou
muito e cheguei aos filósofos ateus clássicos que eu deveria “conhecer para refutar”,
tais como Nietzsche. Conhecer a filosofia foi um caminho sem volta, e aos
poucos descobri que era isso o que eu queria estudar na faculdade.
Mas filosofia ainda não foi minha primeira graduação. Decidi
cursar primeiro Sistemas de Informação, o que oferecia muito mais perspectivas
profissionais. Desde meus doze anos de idade eu já possuía um computador, o que
não era muito comum na década de 1990 no Brasil. Tive um 286, sem Windows,
apenas com o MS-DOS. O contato com linhas de comando desde a adolescência me
fez pensar que eu poderia me tornar um bom programador, e então optei por esta
área. Hoje moro na Alemanha graças a esta profissão.
Certo dia, durante o curso de Sistemas de Informação,
conheci alguns militantes comunistas fazendo agitação na porta da faculdade. Foi
então que tive a oportunidade de fazer aquilo que eu planejava desde a época do
ensino médio: me organizar politicamente. Como já era casado, já tinha uma
filha e era trabalhador, não fui fazer movimento estudantil. Minha tarefa
prática no partido era a atuação entre os trabalhadores da minha categoria
profissional, e por isso fui para a diretoria do sindicato, da qual fui membro
por três gestões consecutivas, quase por uma década.
Quando terminei o curso de Sistemas de Informação, me vi
então livre para estudar filosofia. Freud afirma que nosso Es (Id) quer sempre prazer imediato, no aqui e agora, mas que é
demonstração de maturidade saber adiar o momento de gratificação. No meu caso, foram
quatro anos de espera para estudar de fato o que queria, aquilo que realmente
me dava prazer. Não foi fácil enquanto durou, mas examinando hoje a questão,
foi uma boa escolha.
Concluí o bacharelado em filosofia em cinco anos e passei
no concurso para o mestrado logo na primeira tentativa. Nos últimos semestres da
graduação eu já havia tido contato com a obra de Georg Lukács, gostei de sua interpretação
hegeliana de Marx em História e
consciência de classe e achei que o tema era rico e relevante o suficiente
para minha dissertação de mestrado. Iniciei a pesquisa no Brasil e só concluí
quando já estava morando na Alemanha.
AC – Seguindo o mote: sua dissertação é sobre o pensamento
de Georg Lukács, em específico sobre o “conceito de reificação”. Poderia nos
contar sobre sua pesquisa e seu desenvolvimento?
Minha pesquisa foi de tipo analítica, ou seja, escolhi um
tema (a reificação), em uma obra (História e consciência de classe) de um autor
(Georg Lukács). Este tipo de recorte faz com que tenhamos que decompor o objeto
de estudo em outros conceitos, estabelecendo relações entre estes e tentando
refazer o percurso do filósofo na elaboração de sua reflexão. O que mais gostei
neste trajeto foi o fato de que eu tive que olhar tanto para trás, investigando
Hegel e Marx, quanto para frente, compreendendo melhor o que veio depois, como
a escola de Frankfurt, por exemplo. Sem esta obra de Lukács, pensadores como
Adorno, Horkheimer e Marcuse, por exemplo, não seriam possíveis.
Quanto à reificação em si, ela pode ser descrita como uma
máscara conceitual que faz com que as relações entre os homens sejam percebidas
como relações entre coisas. A reflexão de Lukács tem como ponto de partida as
observações que Marx faz sobre o fetiche da mercadoria ao final do primeiro
capítulo de O capital. Quando dizemos
que a reificação é uma máscara conceitual isso significa que, enquanto
estrutura de consciência, ela molda a forma como enxergamos absolutamente tudo
na sociedade, e isso vai desde a investigação cientifica mais profunda, até as
coisas mais banais do cotidiano. Ela não é, contudo, apenas um fenômeno
psicológico, um estado de consciência, mas uma situação real, concreta.
AC – Você escreveu um artigo falando da relação entre Hegel
e Freud. Porém, a questão aqui vai um pouco adiante: é possível pensar o
marxismo com “auxílio” da psicanálise? Por que?
É possível relacionar o marxismo à psicanálise através da
dialética hegeliana. Algumas das primeiras tentativas foram feitas desde muito
cedo, com Freud ainda em vida, como nos escritos de Wilhelm Reich, por exemplo.
A primeira incompreensão que é preciso desfazer é a de que a psicanálise
pretende concorrer com o marxismo na explicação da realidade social. Freud fez,
de fato, incursões em questões históricas e sociais, mas a psicanálise não
surgiu para isso: ela é, antes de tudo, um método de tratamento das neuroses, e
só aos poucos foi se estabelecendo como um método geral de investigação dos
processos psíquicos. Desde seus primeiros escritos Freud já extrapolava, é
verdade, os limites da mera aplicação clínica de suas descobertas, mas isso só se
solidificou ao longo dos anos. A questão é que, mesmo que o marxismo seja o
método correto de investigação da realidade, isso não significa que só nele
podemos encontrar verdades. Lukács inclusive faz a observação de que é possível
chegar a um conhecimento correto mesmo fazendo uso de um método incorreto. Isso
não quer dizer que o marxismo tenha deficiências e que precisa ser
complementado com fontes externas, mas apenas que, mesmo que ele seja o método
correto, ele não esgota a investigação da realidade, ele não explica tudo o que
existe ou que já existiu. É neste sentido que um diálogo entre a psicanálise e
o marxismo é possível: temos que nos perguntar o que há de verdade na
psicanálise. Mesmo que seu método seja, por vezes, incorreto, não é sempre este
o caso, e o artigo que publicamos sobre Hegel e Freud, mostrando a relação
entre a denegação freudiana e a Aufhebung
hegeliana, vai neste sentido.
AC – Acerca das críticas de Lukács às filosofias
existencialistas e também o que denominou de “irracionalismo”, quais seriam
suas observações, em especial sobre Heidegger e Nietzsche?
Em sua obra Princípios
da filosofia do direito, Hegel afirma que é muito fácil descartar as
questões religiosas como sendo meras superstições. O difícil, no entanto, é
conseguir enxergar o que há de verdade nelas. Este é um princípio dialético
importante não só no que diz respeito à religião, mas a todo e qualquer campo
de investigação da realidade. Quando falamos então sobre Heidegger, Nietzsche e
Sartre, a questão mais uma vez a ser colocada é: o que há de verdade nestes
pensadores? Eles podem contribuir, em alguma medida, para nossa compreensão do
mundo, do homem e da realidade social? Ou absolutamente tudo o que disseram era
falso? Adorno, por exemplo, afirmava que a filosofia de Nietzsche era uma reação
ao mesmo fenômeno da reificação sobre o qual Lukács tão bem escreveu, e que o irracionalismo
que possibilitou a ascensão do nazismo não foi uma negação do iluminismo, mas
uma consequência deste. Lukács e Adorno, grandes pensadores do século XX, têm
posições divergentes quanto à questão do irracionalismo, de suas causas e de
seu lugar na totalidade.
AC – Camarada, como produzir ciência da história buscando
as causas das determinações do atual momento sem correr o risco de constituir
um discurso teleológico? Em outras palavras, como tratar do passado sem cair no
risco de tratar a história sabendo onde “vai dar” – sabendo o fim –, não
produzir uma história baseada em finalidade?
Em primeiro lugar teríamos que investigar se é mesmo
possível uma ciência universal da história. Lukács chama o materialismo
histórico de “autoconsciência da sociedade capitalista”, definição que ressalta
o fato de que a doutrina de Marx é, antes de tudo, para o tempo presente. O
materialismo histórico até pode ser utilizado para explicar outros períodos e
formações sociais, mas sempre com muita cautela.
Quando à tentativa de previsão do futuro, encontramos esta
tendência já na época de Marx, com Moses Hess. Se a dialética podia explicar o
movimento do Espírito do passado ao
presente, por que não dar sequência e seguir agora do presente para o futuro?
Esta é uma das questões que Lukács responde em seu mais brilhante ensaio
filosófico, Moses Hess e os problemas da
dialética idealista. O antídoto para a tentação de antecipar o futuro está no
próprio Hegel e foi herdado por Marx. O filósofo de Jena, ao contrário do que
muitos pensam, tinha um grande senso de realidade, a ponto inclusive de
abandonar a própria dialética, segundo Lukács, para se fixar no presente.
Podemos nos lembrar também que colocar finalidade no mundo e
em todas as coisas é simplesmente o modo de operar de nossa razão, como Kant
bem o demonstrou. O fato de nossa razão operar assim não significa, no entanto,
que de fato exista uma finalidade, um télos
no mundo e na história.
AC – Uma questão que muita gente tem dúvidas e é, no campo
da filosofia marxista, delicado, por assim dizer, remete-se à questão do
marxismo e “direitos humanos”. Como você pensa essa complexa relação de
Marx/Engels e os “direitos humanos”?
Marx foi um crítico dos direitos humanos. Não porque ele
fosse contra a liberdade de imprensa, de consciência, de livre associação, de reunião,
etc. Ele sempre se posicionou a favor destas questões. O ponto é que o homem
que aparece abstratamente representado sob o manto do "homem
universal" na declaração dos direitos do homem e do cidadão é um homem de
uma classe social específica: o homem burguês. A luta pela universalização dos
direitos humanos é justamente uma tentativa de forçar um conteúdo concreto a
uma determinada forma abstrata: é o esforço de fazer com que o homem pobre,
proletário e assalariado tenha, na prática, os mesmos direitos e garantias que
aquele homem burguês representado nos direitos humanos como se fosse o
"homem universal". Conceitos como "liberdade" e
"igualdade" exigem uma base material concreta para que se tornem
efetivos. A justiça e a polícia se comportam de maneira distinta para o pobre e
para o rico, mostrando que o homem universal e abstrato não existe na
efetividade, mas apenas homens burgueses, homens assalariados, lumpens, etc.
Ao mesmo tempo em que reconhece que os direitos humanos
constituíram um avanço em relação ao feudalismo, Marx também aponta seus vícios
genéticos e suas decorrentes limitações. Ter direitos declarados é seguramente
melhor que não os ter, mas sua efetivação concreta encontra barreiras
estruturais intransponíveis. Marx afirma que entre direitos iguais decide a
força, a violência. A duração do dia de trabalho se apresenta, na história da
produção capitalista, como uma luta entre a classe dos capitalistas e a classe
dos trabalhadores. Se o que está colocado é direito contra direito, no sentido
de que tanto o trabalhador quanto o capitalista são "livres" para
negociar "igualmente" a duração da jornada, vence o mais forte. A
exploração do trabalhador não pode ser abolida – e nem mesmo regulada –
invocando-se os "direitos do homem". Estes, ao contrário, justificam,
explicam, fornecem uma razão à exploração devido ao princípio do uso livre da
propriedade e da igualdade das partes contratantes. É neste sentido que Marx
critica os direitos humanos.
AC – Para finalizar nossa entrevista, você escreveu textos
de jornais e artigos acadêmicos sobre as “Jornadas de Junho”. Em linhas gerais,
qual é a tese central do seu argumento diante dos protestos de 2013?
Nossa tese é basicamente a de que as jornadas de junho, no Brasil, se relacionam a um momento mais geral de lutas que podem ser encontradas também em outros países, como Espanha, Grécia e os países do norte da África, para citar apenas alguns. Nosso principal aporte teórico foi Engels, o qual afirmou que os homens nem sempre estão conscientes das forças motrizes, dos motivos pelos quais os indivíduos agem na história. Nos artigos que publicamos sobre o tema, traçamos inclusive uma relação com a psicanálise, pois Engels está dizendo, com outras palavras, que há forças das quais não temos consciência, mas que mesmo assim determinam nossas ações. É exatamente isso o que Freud mostrou com a descoberta do inconsciente. No caso das jornadas de junho isso é muito claro: várias pessoas saíram às ruas pedindo por mais educação e saúde, por exemplo. A questão é que estes dois problemas existem desde sempre no Brasil, e não foi isso o que, de repente, levou milhões de pessoas às ruas. Elas poderiam ter saído de casa a qualquer momento para protestar, antes ou depois, mas foi exatamente em junho de 2013. Não havia um problema concreto para justificar as mobilizações. Quando nos lembramos, todavia, das observações de Lênin de que as greves são contagiantes, compreendemos a sucessão dos protestos em escala internacional, tendo como pano de fundo o aprofundamento da crise do capital iniciada em 2008. Para resumir, vejo as jornadas de junho como tendo essas duas principais causas: os primeiros sintomas da crise do capital iniciada em 2008, e que já se faziam sentir no Brasil, e o efeito contagiante dos protestos que já vinham se desenrolando em escala internacional. As jornadas de junho não foram, de fato, apenas por “vinte centavos”, mas tampouco foram exatamente por saúde, educação ou contra a corrupção, como se esses fossem problemas novos no Brasil.