A natureza nos processos e através dos processos


A natureza nos processos e através dos processos: aproximações marxistas ao problema da natureza humana





Por Vítor Paixão – graduando em Filosofia pela UNIFESP.

O problema da natureza humana pode ser entendido de forma geral como a tentativa de determinar de forma racional aquilo que faria uma entidade ser reconhecida como pertencente a classe de entidades reconhecidas como “seres humanos”. É um problema de "natureza", como o nome já diz. Mais que permitir identificar um ser humano dentre um grupo de objetos selecionados, como por exemplo, diferenciar um ser humano de uma árvore ou de um carro, uma concepção de natureza humana permitiria predizer que tipo de qualidades um ser humano deveria expressar uma vez identificado como "ser humano". Uma concepção de natureza humana nos diz como um ser humano se comporta, ou ao menos, como é esperado que ele se comporte.

Qualquer um ocupado com a natureza humana deveria trabalhar, então, em duas frentes:

1.    definir o que se espera que essa natureza seja;
2.    quais as consequências dessa natureza;

Essas “frentes” são, na verdade, atalhos. As preocupações de alguém ocupado com a natureza humana se voltam aos mecanismos causais determinando as qualidades que implicam nas consequências comportamentais da “natureza humana”. Dessa forma, trabalhar na primeira frente implica em trabalhar também na segunda frente, a divisão entre natureza e comportamento natural não é uma escolha ontológica, mas de necessidade metodológica, uma vez que o foco em uma outra frente de forma única poderia implicar em erro: um comportamento pode apelar a múltiplas causas e uma causa pode resultar em múltiplos comportamentos.

Na atualidade, o problema tomou certo enfoque no que foi citado aqui como “primeira frente”. Os debates atuais focam no que ficou conhecido como a dicotomia nature/nurture, onde a preocupação com os determinantes do comportamento recai hora sob a biologia, hora sobre a cultura. Os marxistas no debate atual, por outro lado, se encontram num espaço alheio. Os marxistas não se encontram em qualquer dos lados da dicotomia, nem se encontram no centro dela. Para ser mais claro, de alguma forma, os marxistas se encontram "através" da dicotomia.

De que forma seria possível estar “através” da dicotomia? Na sexta tese sobre Feuerbach, Marx diz que “a essência humana não é algo abstrato, interior a cada indivíduo isolado. É, em sua realidade, o conjunto das relações sociais”. Seria fácil, para um leitor desacostumado com o pensamento marxista e marxiano pensar que as posições marxistas deveriam ter algum comprometimento com a posição culturalista, mas a passagem acima demonstra apenas um compromisso próprio do método marxista: o compromisso com a totalidade dos fenômenos, em oposição a uma visão metodologicamente individualista, comprometida com as unidades individuais que compõem esse todo.

O filósofo da biologia John Dupré, em seu artigo “Human nature: A process perspective” assevera que “um ser humano não é uma coisa, com um conjunto fixo de propriedades, mas um ciclo de vida”; com essa asserção, Dupré pretende estabelecer um ponto do qual os marxistas não são alheios, um ser humano é um conjunto de processos, que interagindo entre si dão vazão a um conjunto de propriedades que se expressam nas situações de vida onde esse ser humano está localizado. Antes de um indivíduo-tipo, um ser humano é produto dos processos que nele estão contidos num dado momento. A quinquagésima nota do capítulo vinte e quatro do Capital deixa essa posição clara quando diz que primeiro se deveria criticar “a natureza humana em geral, e depois a natureza humana modificada por cada evento histórico”. Para o marxista, algo como a natureza humana deveria ser produto de todos os processos cujo ser humano é objeto, não apenas seus processos biológicos, mas os processos sociais que nele atuam nas situações históricas onde ele se encontra.

Como Lewontin e Levins deixaram claro em seu artigo “What is human nature?”, para Marx, os seres humanos se constituem em uma relação com a natureza. A história humana é para Marx, parte da história natural. Síntese essa, entre as ciências naturais e sociais, que se constitui de forma muito mais orgânica que a tentada por Wilson, com a sociobiologia humana, pois pressupõe continuidade ontológica entre os processos sociais e naturais. Mas Lewontin e Levins são mais enfáticos, para ambos, a própria separação entre o social e o biológico não faz sentido. Os processos sociais, ambientais e biológicos se moldam de tal maneira que a própria divisão entre quanto de uma propriedade que um indivíduo dispõe poderia ser atribuído a cada um desses fatores é impossível. A relação entre esses fatores causais é dialética, não discreta. A ideia de que existe uma distância, ou discrição entre os fatores ambientais/ sociais que influenciam um comportamento é ilusória. A filósofa da ciência Evelyn Fox-Keller faz um ponto semelhante em seu “The mirage of a space between nature and nurture” fora do tratamento dialético.

Mas voltando a minha divisão entre duas frentes de tratamento da questão da natureza humana, como a posição marxista rascunhada aqui se colocaria?

  1.   Se algo pode ser considerado responsável pela “natureza humana”, este algo seria a soma dos processos, biológicos, ambientais, desenvolvimentais e sociais que são contidos e atuam nos sujeitos históricos. O ser humano é uma entidade processual cuja natureza é um ciclo vital localizado num espaço histórico.
Dessa forma, faria sentido fazer como Lewontin e Levins e dizer que a natureza humana é a de uma "biologia socializada" onde os processos biológicos são ressignificadas por processos ambientais e sociais.

  1.   A causa de um certo comportamento deve ser procurada não numa propriedade fixa, mas no conjunto de processos responsáveis por esse comportamento. Isso significa que todo comportamento é de origem multicausal. Essas influências, no entanto, não são discretas. Processos que se influenciam mutuamente não são separáveis entre si, são uma soma não-linear de fatores contribuindo para emergência de um resultado final.
A visão marxista não é, então, nem um determinismo biológico, nem o historicismo vulgar, que tem sido creditado aos marxistas por seus críticos. A visão marxista enfatiza que um dado comportamento tem um conjunto, uma miríade, de componentes causais, sendo eles processos internos e externos ao indivíduo. O marxista, no entanto, se opõe a visão biologicista ao se apegar a asserções semelhantes às de Dupré: um homem não é algo que contenha um conjunto fixo de propriedades, mas sim um ente natural, contendo processos naturais, localizado num espaço de relações históricas que contém em si processos sociais que atuam para ressignificar, “socializar” sua natureza. A natureza humana é então, como afirma a citação de Marx no começo desse texto, produto da "totalidade das relações sociais". A posição marxista é, dessa forma, transversal a dicotomia nature/nurture, é a dialética se exteriorizando entre eixos de determinismos social e biológico.

Como toda visão sobre a natureza humana, a visão marxista não está isenta de consequências. Um entendimento marxista do comportamento nos permitem também algumas previsões, embora menos específicas que as feitas por uma teoria sociodeterminista ou uma teoria biodeterminista da natureza humana. É uma consequência direta da visão marxista de natureza humana que uma mudança em um dos componentes da soma de processos agindo sobre um indivíduo resultará em um indivíduo diferente daquele conseguido nas condições iniciais. Um homem não é igualmente violento numa sociedade socialista e numa sociedade capitalista, os processos históricos condicionam um indivíduo ressignificando suas propriedades biológicas.

Isso significa que biologia é também um assunto de classe. Para ser mais específico, propriedades biológicas como altura, porte físico, sexualidade, gênero e até mesmo sexo são assuntos de classe. Elas vão se expressar de maneira diferente em diferentes estágios da luta de classes. Para ficar com um exemplo didático, já usado por Lewontin e Levins em seu “The dialectical biologist”, por mais que comer seja uma propriedade biológica básica, seres humanos comem de forma diferente entre si, desde que estejam localizados em partes diferentes do espaço das relações sociais onde ocorrem as lutas de classes. Não se pode esperar que pessoas de classe alta, pertencentes a classe burguesa, se alimentem da mesma maneira que trabalhadores fabris. O consumo de calorias é diferenciado, os alimentos são diferenciados, as ferramentas usadas para comer são diferenciadas, os motivos para comer ou não comer são diferenciados. Novamente, alimentação é menos uma necessidade biológica que uma expressão da luta de classes nos diferentes espaços de relações sociais.

Um outro exemplo de como essa relação se estabelece pode ser oferecido por Jablonka e Lamb, no capítulo dois de seu livro "evolução em 4 dimensões" ao relembrar a fala de Lewontin:

“A sugestão de que o conhecimento das sequências de DNA pode resolver nossos problemas de saúde e nossos problemas sociais é, numa escala global, ridícula, senão cínica e inescrupulosa. Como o geneticista americano Richard Lewontin nos lembra o tempo todo, a doutrina do DNA é politicamente carregada. Se quisermos resolver 95% dos problemas de saúde do mundo, o que precisamos fazer é dar às pessoas o que comer e garantir que possam beber água limpa e respirar ar puro. Mas ainda que nos preocupemos com os bem nutridos, que podem se beneficiar dos tratamentos baseados no sequenciamento de DNA, ainda estaremos sendo enganados. A visão tão propalada de que no futuro todo mundo vai carregar consigo um cartãozinho magnético contendo a própria sequência de DNA e de que os cientistas vão usar essa sequência para analisar suas qualidades individuais, descobrir suas fraquezas genéticas e resolver muitos dos seus problemas de saúde é irreal”.

Não existe, como demonstra a citação de Jablonka e Lamb, como falar de características biológicas, como doença ou saúde, sem colocá-las num espaço social, onde expressões das lutas de classe ficaram visíveis. As doenças são experenciadas de forma diferente pelo proletário, pelo campesino, pelo trabalhador do setor de serviços e pelo burguês. A biologia de cada um deles é atravessada, ressignificada e moldada pela sua situação social.

Dessa forma, retornamos uma segunda vez a citação da sexta tese para Feuerbach, dessa vez para encerrar o texto. Se para Marx, “A natureza é a totalidade das relações sociais”, seria muito próprio trazer para o chão essa universalidade, nossas propriedades biológicas como sexo, constituição, comportamento e consciência também são a totalidade das relações sociais em que elas se expressam. Se nossa natureza é a totalidade das relações sociais, nossa biologia é a totalidade da significação social. Se para Marx, toda história humana é história natural, nossa história natural é em si devolvida a história social.

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Wesley Sousa

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