Tales de Mileto e a filosofia – do mito ao logos





Por Felipe Lustosa - graduado em história e filosofia pela UFF.


O fenício Tales de Mileto nascido no Século VII a.C, foi o primeiro a fazer filosofia. Segundo Aristóteles; o estagirita afirma que Tales fora o primeiro filósofo porque foi aquele que com maestria rompeu radicalmente em sua forma de conceber a natureza, a totalidade do ser e seus nexos constitutivos com a concepção mito-poética, muito arraigada e presente nas narrativas épicas de Homero e de Hesíodo e de muitos outros aedos (poetas), outrossim, muito em voga naquele estilo que ficaria conhecido como narrativa de estilo trágico, expressada em larga escala nos clássicos da literatura grega anteriores ao Milagre Grego e ao aparecimento da escola de Mileto, como a Odisseia, a Ilíada, O Trabalho e os Dias e a Teogonia.

Tales de Mileto é considerado o primeiro filósofo e, embora conheçamos muito pouco sobre ele e não subsista nenhum fragmento seu, foi desde a Antiguidade visto como o iniciador da visão de mundo e do estilo de pensamento que passamos a entender como filosofia. Duas características são fundamentais nesse sentido; em primeiro lugar, seu modo de explicar a realidade natural a partir dela mesma, sem nenhuma referência ao sobrenatural ou ao misterioso, formulando a doutrina da água como elemento primordial, princípio explicativo de todo o processo natural; e, em segundo lugar, o caráter crítico de sua doutrina, admitindo e talvez mesmo estimulando que seus discípulos desenvolvessem outros pontos de vista e adotassem outros princípios explicativos. (MARCONDES, 2008, pp -28)


No caso desta forma de narrativa épica o que se diferenciava dentre os aedos como Hesíodo de Homero --em seu estilo de poesia gnômica -- era o fato de Homero ter inaugurado uma forma original e mais refinada [que a de Hesíodo] para narrar os fatos por intermédio de feitos heroicos. Tal estilo ficou denominado como "Epopéia". No modelo de Epopéia, a aretê (virtude) do homem grego devia-se ao ímpeto agonístico, aos combates épicos, às grandes expedições marítimas [muito em voga nas Talassocracias deste período] e, outrossim, às fainas mitológicas como as de Aquiles ao derrotar Heitor e como os feitos de Odisseu ao cegar o Ciclope Polífemo, salvando sua tripulação de ser devorada na gruta do filho de Poseidon.


Homero exorta o cidadão aqueu [pela guerra e pela invasão], isto é, ele exalta o homem que defende a pólis em tempos de guerra e expande seus domínios para além das ilhas do Mediterrâneo e costa da Ásia Menor, trazendo a honra do combate e honrando aos deuses. Já Hesíodo difere-se de Homero em seu estilo de narrativa, pois que em sua forma de escrever, como aquele presente em sua "a Teogonia", discorre-se sobre a conformação dos deuses e do cosmos. Nela há dois momentos primordiais: 1) onde ocorre a "animização do cosmos" com os deuses primevos gerando a Physis e corporificando sua magnanimidade de demiurgo na natureza animada & na coisa que ela é. Estes demiurgos de forma natural se auto-replicam ora por reprodução sexuada, ora por cissiparidade. Exemplos de deuses primevos são Uranós (o Céu), Tártaro (o o submundo), Nix (a Noite), Gaia (a Terra), Óreas (as montanhas), Chaos (o absurdo cósmico), Ponto (o mar), etc.

E 2) onde subjaz uma viragem do universo anímico à "antropomorfização" de um cosmos ainda "deificado", donde os deuses deixam de assumir somente a forma natural e passam a ganhar atributos humanos, personalidades humanas, forma anatômica do homem e Etc. Tal viragem é explicitada tanto no caso dos titãs a exemplo de Crhonos e de sua megalomania após depor seu pai (Uranós) e conquistar o trono, como no caso dos deuses olímpicos como Zeus, em um segundo momento.

Entre a forma Animista e a Antropomórfica, subjaz a forma Antropozoomorfica, sendo Quimera, Ortos, Hidra, Cérberus e Tifão subprodutos desta fase medianeira onde os deuses representam elementos humanos e animalescos em sua representação a qual se dá inerente ao surgimento dos deuses Olímpicos e à geração que derribaria a hegemonia dos Titãs (com a Titanomaquia), acabando Zeus e Seus Irmãos por aprisionar Chronos no Tártaro e por repartir entre si os seus domínios.

As vigorosas mãos desse gigante trabalhavam sem descanso, e os seus pés eram infatigáveis; sobre os ombros, erguiam-se cem cabeças de um medonho dragão, e de cada uma, se projetava uma língua negra; dos olhos das monstruosas cabeças, jorrava uma chama brilhante; espantosas de ver, proferiam mil sons inexplicáveis e, por vezes, tão agudos que os próprios deuses não conseguiam ouvi-los; ora o poderoso mugido de um touro selvagem, ora o rugido de um leão feroz ; muitas vezes - ó prodígio! - o ladrar de um cão, ou os clamores penetrantes de que ressoavam as altas montanhas. Tifão é uma besta horripilante, nascida para acabar com Zeus e com o Olimpo. Filho da vingativa Gaia e do sinistro Tártaro, um deus primordial que vive enclausurado nas profundezas. Foi responsável pela fuga em massa dos deuses olimpianos, porque é capaz de incutir grande pavor. Venceu a primeira luta contra Zeus, mas foi derrotado na segunda. (HESÍODO, A Teogonia, pp- 45)

Num segundo momento, o astro solar passa a ser representado por Hélio (e depois, por Apolo), a beleza e o amor ganham equivalentes humanos (Afrodite e Eros), os rios passam a corporificar o demiurgo Alfeu, os prazeres manifestam-se por intermédio de Dionísio, as obras feitas de ferro, os trabalhos arquitetônicos e os vulcões passam a ganhar representação no Deus da forja Hefestos, o Mar passa a ser representado por Poseidon (na fase primeva o mar explicitava-se por Ponto), Zeus comanda os céus e Hades o submundo.


Já em o Trabalho e os Dias, Hesíodo ao contrário de Homero exorta o homem por seus feitos cívicos e corriqueiros, ao invés de exortá-lo por seus feitos belicosos (como faz Homero em suas Ilíada e Odisseia)Hesíodo está preocupado com a Ética, não com a virtude que o combate ocasiona, seu objeto de analise recai em si mesmo e na sua relação desgastada com seu irmão, Perses, as quais desabrocham em um semi-tratado de ética em tempos monótonos (e não nos de guerra), como dá a entender a passagem onde em discordância com seu irmão Perses e se sentindo lesado por sua desonestidade, diferencia e discorre acerca da Hýbris (ὕϐρις) da Sofrósina (Σωφροσύνη) [1].

O poeta narra, como para ilustrar o discurso proferido sobre a Justiça, uma disputa judicial com seu irmão Perses pela herança paterna, onde se desenha o cenário de um julgamento arcaico: a ágora enquanto espaço de disputa de discursos, e a decisão soberana do rei-juiz (basileús), que após ouvir ambas as partes litigantes profere a sentença-justiça (díkē). Hesíodo, no entanto, se considera lesado pelo seu irmão, que através de juízes comedores-de presentes (dōrophágos) ganhara a disputa. Partindo desta situação, o poeta faz um intrincado e complexo discurso sobre a Justiça, que comporta fábulas, exemplos e admoestações não somente a Perses, como também para os reis-juízes em geral. (CORRÊA, 2009)

Já em Tales denota-se uma ruptura abrupta com os dois estilos de narrativas mito-poéticas anteriores, ele resolve-se por discorrer sobre a física e sobre os astros cientificamente. Para Tales o elemento fundante da physis (φύσις) expressado em sua Arché era a Água. Esta era a substância terraformadora primeira do cosmos e dos demais seres nele adstritos os quais ganhariam corporatura qualitativa e quantitativa em seu eterno rearranjo mutatis-mutandis. A água para Tales fora racionalizada e o fenício, segundo Danilo Marcondes[2], ainda que de uma forma muito rudimentar e incipiente, acaba por elaborar uma concepção de filosofia do cosmos calcada na empiria e na ontognoseologia e municiada de uma forma originária de episteme em suas formulações acerca da Arché[3].

Ainda que Tales concebesse (segundo os doxógrafos que comentaram sobre sua obra não mais existente), que esta água fosse dotada de daimonia (δαίμων)[4], Tales inaugura o pensamento científico pari passu que faz filosofia. Com tal formulação de matriz epistêmica, Tales logo se inscreve nos anais da história como o primeiro sábio a fazer filosofia e se diferenciando de Hesíodo, ao invés de Tales fazer Teogonia, Tales fizera Cosmologia [5].


A água era um ser em eterno movimento e em constante mutação no seu estado natural; Tales afirmava que através da transsubstanciação das partículas da água[6] derivavam-se e consubstanciava-se os demais elementos e seres os quais dela provinham e assimilavam em sua matéria reagrupada e recomposta --segundo a análise de Aristóteles sobre os escritos de Tales-- a umidade do elemento primordial.

A maior parte dos primeiros filósofos considerava como os únicos princípios de todas as coisas os que são da natureza da matéria. Aquilo de que todos os seres são constituídos, e de que primeiro são gerados e em que por fim se dissolvem, enquanto a substância subsiste mudando-se apenas as afecções, tal é, para eles, o elemento (stokheion), tal é o princípio dos seres; e por isso julgam que nada se gera nem se destrói, como se tal natureza subsistisse sempre... Pois deve haver uma natureza qualquer, ou mais do que uma, donde as outras coisas se engendram, mas continuando ela a mesma. Quanto ao número e à natureza destes princípios, nem todos dizem o mesmo. Tales, o fundador de tal filosofia, diz ser água [o princípio] (é por este motivo também que ele declarou que a terra está sobre água), levado sem dúvida a esta concepção por ver que o alimento de todas as coisas é úmido, e que o próprio quente dele procede e dele vive (ora, aquilo de que as coisas vêm é, para todos, o seu princípio). Por tal observar adotou esta concepção, e pelo fato de as sementes de todas as coisas terem a natureza úmida; e a água é o princípio da natureza para as coisas úmidas. Alguns há que pensam que também os mais antigos, bem anteriores à nossa geração, e os primeiros a tratar dos deuses, teriam a respeito da natureza formado a mesma concepção. Pois consideram Oceano e Tétis os pais da geração e o juramento dos deuses a água, chamada pelos poetas de Estige; pois o mais venerável é o mais antigo; ora, o juramento é o mais venerável. (ARISTÓTELES, Metafísica, I, 3. 983 b 6, DK 11, A 12)


Tales ainda que influenciado pelos princípios religiosos da Póleis (portanto, com elementos ainda mitológicos, presentes no culto cívico dos demiurgos olímpicos), doxógrafos --a exemplo de Simplício-- chegam a afirmar em sua "Física" que algumas autoridades o acusaram de Ateísmo. Mas Aristóteles e Platão demonstram outro itinerário; escrevendo acerca de sua obra destruída "Sobre a Natureza" que a água e os objetos formados por ela possuíam para Tales, uma "alma movente". É Platão, no Timeu, aquele que chamaria tal substância anímica de Anima Mundi ou ψυχή τοῦ παντός [7] a qual resfriava e pondo-se sempre a se movimentar, aquecia-se, pulverizava -se e reagrupava-se na matéria de-si, originando novos seres, diziam também que o fim último das divindades que habitavam a ânima deste ser, era a unidade dos contrários e a geração de novos seres.

E afirmam alguns que ela (a alma) está misturada com o todo. É por isso que, talvez, também Tales pensou que todas as coisas estão cheias de deuses. Cf. Platão Leis, X, 899 B) Parece também que Tales, pelo que se conta, supôs que a alma é algo que se move, se é que disse que a pedra (ímã) tem alma, porque move o ferro.(ARISTÓTELES, Da Alma, 5, 422 a 7,DK 11, A 22)

Tales com sua filosofia do cosmos tornara-se o primeiro a fazer teoria da ciência [episteme] e ao inaugurar uma forma de relato ancorado nas transformações da physis, consignaria a filosofia da Arché edificando os alicerces da escola milésia e influenciando a toda uma geração, a começar por seu discípulo Anaximandro. Em seus escritos estão presentes, ainda que de forma embrionária, o Salto Ontológico[8] qualitativo de um ser inorgânico à formas de seres orgânicos, outrossim, sua concepção filosófica denota a suprassunção do mithós (μυθος) pelo lógos (λόγος), explicitando-se em sua teoria sobre a Arché (ἀρχή) a gênese e a transformação dos entes e do cosmos.

Entretanto, apesar das analogias e das reminiscências, não há realmente continuidade entre o mito e a filosofia. O filósofo grego não se contenta em repetir em termos de physis o que o poeta primeiramente e depois o teólogo haviam expressado em termos de mito e em termos de "logos divino". À mudança de registro e perspectiva filosófica, à utilização de um vocabulário profano, correspondem uma nova atitude imanente de espírito e a todo um clima intelectual diferente: Com os milésios da safra de Tales, pela primeira vez, a origem e a ordem do ser no mundo tomam a forma de um problema profano, explicitamente colocado de forma concreta, o qual se deve dar uma resposta sem mistérios ao nível da inteligência cognoscente humana, suscetível de ser exposta e debatida publicamente na Ágora, diante do conjunto dos concidadãos, como as outras questões da vida corrente na pólis. Assim se afirma uma função de conhecimento, livre de toda preocupação de ordem ritual e metafísica. Os 'físicos', deliberadamente, ignoram o mundo da religião. Sua pesquisa nada mais tem a ver com esses processos místicos do culto aos heróis e deuses, os quais o mito, apesar de sua relativa autonomia, permanecia sempre mais ou menos ligado. - (VERNANT, 1986, pp -76)

Para a escola de Mileto, Hesíodo e Homero escreviam estórias porque sua narrativa (Mito-Poética) era demasiadamente metafísica e abstrata, seu estilo literário estava magnificamente permeado por um conteúdo mítológico e por uma ode fictícia aos heróis míticos. Tales foi então eleito por seus compatriotas "um dos sete sábios da Grécia" por analisar cientificamente a origem dos elementos fundantes da physis, assim, ele próprio se intitulou e sacramentou como sendo o filósofo de Mileto e primeiro filósofo da Hélade, assim como o fizera Heródoto --continuador de Hecateu--, o qual também fora sacramentado como "o primeiro a fazer história" e "primeiro historiador da Hélade", porque sua narrativa, ainda que permeada por algumas reminiscências de verve mítica, apresentavam (a verossimilhança das de Hecateu) uma cosmovisão profundamente lógica, imanentista e racionalizante, tal como era enciclopédica e historicizante em todas suas minucias. Para os filósofos pré-socráticos, Hesíodo --assim como Homero-- fazia "nada mais que uma bela cosmogonia".


E Zeus pariu a terceira outra raça de homens mortais, a raça brônzea, ele criou-a e esta em nada se assemelhava à raça anterior argêntea; a raça brônzea era também a raça do freixo com temíveis lanças, era terrivelmente forte e bélica e lhe importavam de Ares obras gementes, guerra e violências; nenhum trigo eles comiam e de bronze tinham resistente o coração; que era ao Deus padroeiro inacessível e impenetrável: grande era a sua força, seus braços eram invencíveis e dos ombros nasciam sobre as robustas espáduas. Deles eram brônzeas as armas que empunhavam e brônzeas também eram as suas casas, com bronze trabalhavam e dele erguiam suas torres: de negro ferro em suas cidades, nada havia. E por suas próprias mãos sucumbiram, descendo ao úmido palácio de Hades; sendo então relegados ao anonimato; a morte, por assombrosa que fosse, pegou-os de forma inesperada tingindo-os de negro, no tártaro. Deixaram então, de ser como o sol, como a luz brilhante da manhã. (HESÍODO, O Trabalho e os Dias, pp- 87)

Tal embate ilustra na ontologia do ser natural (portanto, na gênese da physis e reordenamento dos elementos nela adstritos) a também origem da ontognoseologia, tal como ilustra a suprassunção do mito pelo lógos no que concerne ao maturamento do legado ontológico que, cronologicamente analisado, fornece as pistas para a consignação de uma Arché (ἀρχή) historicizada do cosmos e de explicações científicas para o ser no cosmos as quais passam a ter seu centro de gravitação e substrato físico e cosmológico calcado na relação homem imanente com a natureza durante a redução de seus entraves naturais por intermédio do Trabalho. Tal teorização acerca do cosmos munida de maiores elementos, viria a vicejar de forma mais madura do que no ínterim de Tales, por volta do ano 470 a.C com o advento do Milagre Grego, expressado na pena e concepção filosófica denominada de Atomismo (naquilo que viria a ficar conhecido como tradição materialista), em voga e consignada com Leucipo e Demócrito, como analisa Vitrúviu.

Sobre os fenômenos da natureza, Tales de Mileto, Anaxágoras de Clazômena, Pitágoras de Samos, Xenófanes de Colofão, Leucipo, Demócrito de Abdera descobriram as regras geométricas que segundo os quais são governadas pela natureza das coisas e pelo modo no qual vêm a existir. Tendo prosseguido as descobertas deles, Eudoxo, Euctemon, Calipo, Meton, Filipe, Hiparco, Arato e outros descobriram o nascimento e ocaso dos astros e das matérias, a composição dos corpos e o significado das tempestades, a partir da astronomia, com o método dos calendários, deixaram estes, mãos do explicado aos pósteros. Descrevi, de acordo com Demócrito, as figuras que no mundo dos astros são modeladas e formadas pela natureza e pelas moléculas, e cheguei a conclusão, que como num edifício, na natureza as coisas se dão por partes diminutas dela mesma que a formam em grandes  obras. (VITRÚVIU, De Architectura Libri Decem , pp - 72)
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[1] -O Trabalho e os dias fornece uma noção rudimentar de politéia a qual remonta aos tempos das invasões Dórias e da colonização da Ásia Menor, pelos Aqueus, assim como faz jus à suas instituições políticas e formas administrativas , Hesíodo explora tais categorias ao retratar a si dando uma lição de moral e ética em seu irmão desonesto, Perses, mostrando-o o que de fato é a virtude; que o trabalho e o diálogo civilizado edificam o caráter e a cidadania e não, o suborno, a usura e a mesquinhez (empregada por Perses, ao tentar ficar com 2/3 da herança de seu finado pai, deixando Hesíodo com somente 1/3 e subornando o juiz de bens).
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[2] - Danilo Marcondes, in: Iniciação à história da Filosofia - Dos Pré Socráticos a Wittgeinstein, 13° Edição, Zahar; Noções fundamentais do pensamento filosófico-científico, 22-24.

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[3] - Diógenes de Apolônio em "Sobre a Ciência Natural" identifica o conceito de Arché como: "[..] Todas as coisas são diferenciações de uma mesma coisa e são a mesma coisa. E isto é evidente. Porque se as coisas que são agora neste mundo - terra, água, ar e fogo e as outras coisas que se manifestam neste mundo -, se alguma destas coisas fosse diferente de qualquer outra, ele seria diferente e diferenciava sua natureza própria e se não permanecesse, então não permaneceria puro, e através disso descobriu que ocorreu muitas mudanças e diferenciações, então as coisas não poderiam, de nenhuma maneira, misturar-se umas as outras, nem fazer bem ou mal umas as outras, nem a planta poderia brotar da terra, nem um animal ou qualquer outra coisa vir a existência, se todas as coisas não fossem compostas de modo a serem as mesmas. Todas as coisas nascem, através de diferenciações, de uma mesma coisa, ora em uma forma, ora em outra, retomando sempre a mesma coisa."

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[4] - A Daimonia estava atribuída à deuses e determinadas entidades apregoados à "subjetividade humana", tal como a Loucura, a Paixão, a Sensualidade, a Ira, a Tristeza, etc. Estes deuses e daimons inseriam o caráter humano nas forças da physis. Foi Xenócrates o primeiro que associou os deuses ao triângulo equilátero, enquanto os homens estavam associados ao escaleno (por sua imperfeição), os daimons, entes medianeiros, seriam transitórios e teriam mais lados iguais do que o triângulo dos homens (escalenos), mas seriam inferiores aos deuses (e aos equiláteros), portanto estariam associados aos ao isósceles
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[5] - Não é como parece sugerir "a Teogonia" um texto que trate somente acerca da origem dos Deuses olímpicos e dos Titãs, ou que se limite somente à "origem do cosmos pelo mito", mas é, antes disso, "a Teogonia", uma obra que traz em seu imo uma forma mui peculiar de ontologia. Nesta forma de ontologia-mítica, o parto da natureza ocorre de maneira ineliminável do parto dos deuses sendo ela uma concepção primeva de paideia do cosmos explicitada pelo animismo e pelo antropormofismo (ambos teogônicos), ademais, é uma concepção de bios-logon (de compreensão astrofísica e biológica do ser natural no cosmos). "A Teogonia" é, antes de tudo, uma "ontologia primordial" do ser-natural [orgânico e inorgânico] interpretada pelas lupas do mito emanado dos aedos. Tal como na alegoria de Platão; a caverna é útero terrestre da Teogonia Hesiódica: um lugar para onde Urano bania seus filhos, os hekatônquiros. As cavernas que desembocavam do ventre de Gaia nas entranhas de Tártaro, eram os lugares em que se acomodavam (no conforto das trevas) seres obscuros e temerosos de se enfrentar, como os Cíclopes, Hekatonquiros e onde cresceu a besta-deus Tifão.
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[6] - Segundo Hegel: "A proposição de Tales de que a água é o absoluto ou, como diziam os antigos, o princípio, é filosófica; com ela, a Filosofia começa, porque através dela chega à consciência de que o um é a essência, o verdadeiro, o único que é em si e para si. Começa aqui um distanciar-se daquilo que é em nossa percepção sensível; um afastar-se deste ente imediato - um recuar diante dele. Os gregos consideram o sol, as montanhas, os rios, etc. como forças autônomas, honrando-os como deuses, elevados pela fantasia a seres ativos, móveis, conscientes, dotados de vontade. Isto gera em nós a representação da pura criação pela fantasia - animação infinita e universal, figuração, sem unidade simples. Com esta proposição está aquietada a imaginação selvagem, infinitamente colorida, de Homero; este dissociar-se de uma infinidade de princípios, toda esta representação de que um objeto singular é algo que verdadeiramente subsiste para si, que é uma força para si, autônoma e acima das outras, é sobressumida e assim está posto que só há um universal, o universal ser em si e para si, a intuição simples e sem fantasia, o pensamento de que apenas um é. Este universal está, ao mesmo tempo, em relação com o singular, com a aparição, com a existência do mundo. O primeiro estado de coisas que reside no que foi dito é o fato de que a existência singular não possui autonomia alguma, não é nada de verdadeiro em si e para si, apenas algo acidental, uma modificação. Mas o estado de coisas afirmativo é aquele do qual emerge todo o resto, que o um permanece nisto a substância de todo o resto, sendo unicamente uma determinação casual e exterior pela qual a existência singular se torna; também a situação de que toda existência singular é passageira, isto é, que perde a forma do singular e novamente torna-se universal, água. Isto é o elemento filosófico, que o um seja o verdadeiro. Aquela separação do absoluto do finito é, portanto, enfrentada: mas ela não deve ser tomada assim que o um se situe do lado de lá e aqui o mundo finito - como ocorre muitas vezes na representação comum de Deus, representação em que se atribui ao mundo uma constância, em que muitas vezes se representem dois tipos de uma realidade, um mundo sensível e um supra-sensível da mesma dignidade. O ponto de vista filosófico é que somente o um é a realidade verdadeiramente efetiva: real deve ser tomado aqui em sua alta significação - na vida cotidiana chamamos tudo de real. O segundo aspecto a considerar é que o princípio entre os filósofos antigos possui, primeiro, uma forma física determinada. Vê-se certamente que a água é um elemento, um momento no todo em geral, uma força física universal; mas outra coisa é que a água seja uma existência singular como todas as outras coisas naturais. Temos esta consciência - a necessidade da unidade nos impele para isso - de reconhecer algo universal para as coisas singulares; mas a água também é uma coisa singular. Aqui está a falha; aquilo que deve ser verdadeiro princípio não precisa ter uma forma unilateral e singular, mas a diferença mesma deve ser de natureza universal. A forma deve ser totalidade da forma; isto é a atividade e a autoconsciência mais alta do princípio espiritual, que a forma se tenha elevado pelo esforço para a forma absoluta - o princípio do espiritual. Isto é o mais profundo e, assim, o que vem por último. Aqueles princípios são figuras singulares, e isto é, por conseguinte, o aspecto falho. A passagem do universal para o singular é, portanto, um ponto essencial e ele entra na determinação da atividade: para isto existe então a necessidade" (HEGEL, Preleções sobre a História da Filosofia, pp - 203-205)

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[7] - Platão, in: A República,Timeu (34 b 3-37 c 5):.ψυχή τοῦ παντός:. "Alma do cosmos"
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[8] O Salto Ontológico é uma concepção materialista contemporânea desenvolvida por György Lukács, em seus "Prolegômenos: Por Uma Ontologia do Ser Social" e em "Para uma Ontologia do Ser Social". Para Lukács tal categoria significa que o Ser tal como se explicita no cosmos é matéria em movimento perpétuo. Ele se divide e, tres formas:1) Inorgânico, 2) Orgânico, 3) Social. Nestes termos o homem é (em sua forma) ser orgânico e um conjunto de átomos, mas devido ao desenvolvimento do agir-télico manifesta-se também sob a forma social (diferentemente do Bovino). É, portanto um ser orgânico dotado de teleológia e de prévia-ideação (ao contrário do Tungstênio, que é somente um ser inorgânico) mas acima disto, é o homem, um ser que para além do atributo da reprodução orgânica da vida, ele auto-reproduz sua socialidade pelo trabalho quando reduz as barreiras naturais e edifica valores de uso. Ele possui uma ancestralidade que se desprendeu do ser inorgânico em uma era remota, se desdobrando, após intenso prélio deste ente gregário com a natureza em um animal social, este ser gregário ancestral transpassou a animalidade ao ponto que se manteve na esfera orgânica dando um salto ontológico qualitativo ao manifestar-se em sua conformação social e consignando, por conseguinte, uma nova instância do ser: o ser social. O homem, diferentemente dos demais primatas, tornou-se ontologicamente um ser social, mantendo-se um primata somente em sua fisiologia e anatomia: o homem é um animal que edifica seus complexos -relativos às necessidades impostas pela natureza à sua própria manifestação existencial e social no devir-, por meio do trabalho, isto é, por meio da alteração qualitativa da matéria no seu câmbio metabólico que cultiva com a natureza. Por isso, para um iluminista com Benjamin Franklin "o homem é um animal produtor de ferramentas" [toolmaker animal]. O homem que não explora sua potencialidade humana, que não coloca suas forças próprias sob o imperioso escrutínio da razão, que não utiliza sua extensão orgânica como terminação da mente durante o rearranjo da Physis pelo trabalho, seria menos que um besta de carga. O homem que não usa o torque, a força centrífuga, o princípio de Arquimedes e as alavancas em seu dia-dia, estaria tolhido de ser um humano, i.e, de sua faceta hominizada, ele só reproduziria sua animalidade e sua fisiologia, tal como os bovinos.


Bibliografia:

A.C.MAZZEO, O Voo de Minerva: A construção da Política, do igualitarismo e da Democracia no Ocidente, 1° Edição, Boitempo.

ARISTÓTELIS, Metafísica.

ARISTÓTELES, Da Alma.

D.MARCONDES, Iniciação à história da Filosofia - Dos Pré Socráticos a Wittgeinstein, 13° Edição, Zahar.


D.CORRÊA, O Conceito de Justiça em "Os Trabalhos e os Dias" de Hesíodo, in: https://www.pucrs.br/edipucrs/XSalaoIC/Ciencias_Humanas/Hist%C3%B3ria/70287-DENISRENANCORREA.pdf  

D.APOLÔNIO, Sobre a ciência natural.


F.G.W. HEGEL, Preleções sobre a História da Filosofia.


J.P.VERNANT, O Universo, os Deuses e os Homens.


J.P.VERNANT, As Origens do Pensamento Grego


G.LUKÁCS, Prologômenos: Para uma ontologia do Ser Social


G.LUKÁCS, Para uma Ontologia do Ser Social I


G.LUKÁCS, Para uma Ontologia do Ser Social II


 HESÍODO, O Trabalho e os Dias


HOMERO, A Ilíada.


HOMERO, A Odisseia.

K.MARX, A Diferença entre as Filosofias da Natureza de Demócrito e Epicuro.

PLATÃO, A República (Timeu e Crítias)

VITRÚVIU, Da Arquitetura.

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Wesley Sousa

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