![]() |
Imagem de um periódico francês, que mostra Republica Francesa a "levar a civilização" para Marrocos |
Artigo de João Freitas, estudante de História na Universidade do Porto – Portugal
Data 15 de Julho de 2017
Em 1899, a propósito do início da
Guerra Filipino-Americana (1899-1902), era publicado na revista nova-iorquina
Mclure´s um poema da autoria de Rudyard Kypling. Esse poema intitulava-se “O Fardo
do Homem Branco: Os Estados Unidos e as Ilhas das Filipinas”. Kypling narrava
as “amarguras” do branco europeu desta forma: “Tomai o fardo do Homem Branco/
Enviai os vossos melhores filhos/ Ide, condenai seus filhos ao exílio/ Para
servirem aos vossos cativos;/ Para esperar, com chicotes pesados/ O povo
agitado e selvagem/ Vossos cativos, tristes povos,/ Metade demónio, metade
criança” (Kypling; 1899).
Este
poema de Kypling, embora seja a sua obra mais curta, é aquela em que é mais
explicitamente visível a ideologia dominante da época, que procurava justificar
as conquistas imperiais europeias como se de um esforço civilizacional se
tratassem.
O
Racismo é um fenómeno moderno e está longe de ser um “produto de mentes
desequilibradas, como ingenuamente se poderia supor” (SANTOS: 35). Muitas vezes
ouvimos explicações para o Racismo apontando a “Natureza Humana” – numa tese
neo-lombrosiana – como a sua origem; podendo a sua eliminação ser tratada
através de um processo behaviourista de educação. Mas, um olhar atento sobre a
história permite-nos perceber que o Racismo, assim como o conhecemos, tem a sua
origem no século XVII/XVIII, na operação ideológica de naturalização do uso de
trabalho escravo nas grandes plantações do “Novo Mundo”.
Este
fenómeno é uma novidade histórica ligada a um momento-chave no desenvolvimento
do capitalismo, caracterizado pela expansão europeia para territórios
ultramarinos, tendo este período ficado conhecido como Colonialismo – a
escravatura é anterior ao racismo, só podemos falar de racismo após a criação
do conceito de raça, que apenas acontece no séc. XVIII. Essa expansão visava
ocupar territórios e capitalizar ao máximo as suas produções de tabaco,
cana-de-açúcar e algodão para o recém surgido mercado mundial. As recém surgidas
companhias comerciais – como a holandesa Companhia das Indias Ocidentais (WIC),
ou a Companhia Londrina da Virgínia, que mais tarde seria uma das 13 colónias a
rebelar-se contra a Coroa Britânica na Guerra da Independência Americana –
encontraram como solução para os problemas da oferta de mão-de-obra “a
importação, a partir dos anos 1680, de “trabalhadores africanos em número cada
vez maior”, que tornou possível manter grupos de trabalhadores suficientes nas plantations,
sem criar uma carga explosiva de ingleses armados ressentidos por lhes serem
negados os direitos de todos os ingleses e dispondo de recursos políticos e
materiais para fazer sentir esse ressentimento” (CALLINICOS: 16).
É
neste contexto que se desenvolveu o Racismo como uma operação ideológica para
justificar o uso extensivo de trabalho escravo. Aqui, podemos ver uma
contradição no pensamento liberal: ao mesmo tempo em que na Europa muitos dos
teóricos liberais formulavam sobre a liberdade e os direitos do homem, não os
reconheciam para grande parte da humanidade que se encontrava em África, Ásia e
no continente Americano. A exemplo, David Hume e John Locke, principais
filósofos do liberalismo, eram donos de escravos ou detinham ações em
sociedades esclavagistas. (LOSURDO).
Com
o avanço do sistema capitalista e a sua expansão para “novos” territórios –
facilitada pelas revoluções tecnológicas do século XIX do vapor e eletricidade
– assistiu-se a um desenvolvimento das ciências naturais, especialmente da
biologia e da história natural. Muitos cientistas começam a indagar sobre a
origens das espécies e surgem os primeiros tratados sobre o assunto, com
especial destaque para os tratados de Jean Baptiste Lamarck – primeiro a romper
com o criacionismo – e Carl von Linee –
que inventa a classificação taxonómica, um sistema que agrupava os diferentes
organismos biológicos com base nas suas características comuns, por assim dizer
“Raças”.
Como
destaca Hobsbawm, “a sociedade burguesa do terceiro quartel do século XIX tinha
confiança em si mesma e orgulhava-se dos seus êxitos. E tinha um orgulho
particular no campo do avanço do conhecimento, na «ciência». (…) e estavam
prontos a subordinar a ela todas as outras formas de atividade intelectual.”
(HOBSBAWM; 335). E o Racismo não seria exceção.
Por
essa altura, pensadores como Herbert Spencer e o Conde Gobineau procuraram aliar às suas teorias sociais uma
comprovação científica.
Herbert
Spencer desenvolveu aquela teoria que ficará conhecida como Darwinsimo
Social. Spencer inclusivamente criou a expressão “a sobrevivência dos mais
aptos”. Mas em que premissas assentava a sua teoria social? Primeiro, “que os
seres humanos são por natureza desiguais, ou seja, dotados de diversas aptidões
inatas, algumas superiores, outras inferiores” (BOLSANELLO:154). A vida social seria uma luta, na qual os mais
aptos seriam aqueles que triunfariam e teriam poder económico, social e
político. Os mais fracos, por seu turno, estariam condenados à condição de subalternos.
A argumentação de Spencer além de recorrer à biologia, servia-se da psicologia,
frenologia, sociologia e genética. Para além de questões como a cor e outras
características físicas, questões como a inteligência – a ideia de testes de
Q.I. vem desta escola de pensamento –
serviam para normalizar as relações de opressão existentes na sociedade.
Podemos ver aqui como o Darwinismo Social fazia uma apologia indireta ao
laissez-faire económico e social típico do liberalismo.
Mas
o primeiro grande teórico do Racismo seria o conde de Gobineau. Na sua obra Ensaio
sobre a Desigualdade da Raças Humanas, publicada em 1853, Gobineau tenta,
através do uso da História e da Frenologia, demonstrar como as relações de
poder existentes na sociedade estavam assentes em características biológicas,
fossem elas de classe ou de raça – por exemplo, Britânico superior a Irlandês,
Europeu superior a Africano. Para Gobineau a pior coisa que poderia acontecer a
uma Raça era a sua miscigenação, pois constituía uma degeneração.
Estas
teorias racistas, como anteriormente foi referido, não nasceram da cabeça de
indivíduos, mas sim devido a condições concretas existentes na sociedade. Como
constata Hobsbawm sobre a situação económica mundial do séc. XIX, “uma economia
mundial cujo ritmo está definido pelo seu coração capitalista desenvolvido ou
em desenvolvimento transformar-se-a muito provavelmente num mundo em que os
«avançados» dominam os «atrasados»” (HOBSBAWM: 77).
O
rápido desenvolvimento vivido com a revolução industrial conduziu a uma
concentração de capitais naquilo que ficou conhecido como Cartel. Lenin,
na sua obra Imperialismo, fase superior do capitalismo, constata
precisamente isso. Nas suas palavras, “o enorme incremento da indústria e o
processo notavelmente rápido da concentração da produção em empresas cada vez
maiores constituem uma das particularidades mais características do
capitalismo” (LENIN: 29). E essa cartelização da economia aliada ao
aumento da competitividade entre capitalistas propiciou as condições para a
formação de monopólios. De tal forma que, neste período da história da
emergência do imperialismo, se assiste a um abandono do capitalismo de livre
mercado para um capitalismo de monopólios. Um certo número de economias
desenvolvidas sentia simultaneamente a necessidade de novos mercados. Se estas
fossem “fortes”, podiam jogar o jogo do livre mercado no mundo subdesenvolvido;
mas caso não o fossem, esperavam obter para si próprias territórios que
oferecessem ao negócio nacional uma posição de monopólio, ou, no mínimo, de
vantagem face à concorrência.
A
supremacia económica e militar dos países capitalistas permitiu que estes
elaborassem entre si uma partição das principais regiões do mundo: a Ásia e o
Pacífico. E essa partição do mundo pelas potências nada mais era do que a
expressão visível da divisão do globo entre os “fortes” e os “fracos”, os
“avançados” e os “atrasados”. Este novo sistema, o imperialismo, assentava na
premissa de que as colónias ou outras dependências informais deveriam
complementar as economias da metrópole e nunca competir com estas. Seriam um
local de extração de matéria-prima e um reservatório de mão-de-obra barata –
que para além de custar pouco e poder ser mantida a baixo custo, não se
encontrava (ainda) organizada nos emergentes movimentos sociais – era um
escoador de excedentes de produção. A conferência de Berlim (1884-1885) – onde
as potências europeias organizam a partição de África – nada mais era do que a
manifestação política da conjuntura económica.
Mas
a “Era do Império (…) não era um fenómeno unicamente económico e político, mas
também cultural” (HOBSBAWM: 102). E a grande novidade desta nova fase do
capitalismo era em geral tratar os não-europeus como inferiores, indesejáveis,
fracos, atrasado e mesmo infantis. Tudo justificado pelo darwinismo social e
pelo racismo de Gobineau: o triunfo político, militar e económico dos europeus
e norte-americanos sobre os “outros” nada mais era do que o confirmar destas
teses.
Notamos
aqui mais uma contradição liberal. Vemos o aumento de políticas sociais e do
sufrágio universal nas metrópoles – aqui
será importante ver a definição de social imperialismo –, mas em
contra-mão no interior das colónias a barbárie e a autocracia assente na
repressão física grassavam.
A
política imperial levantava incertezas e medos. Primeiro, uma pequena minoria
de brancos era confrontado com “massas de negros, pardos e amarelos” (é nesta
altura que surgem expressões como o “perigo amarelo”, que foi a base de
argumentação do Chinese Exclusion Act de 1882, que proibia a migração Chineses
para os EUA). Isto teve uma repercussão cientifica, filosófica e literária na
sociedade da belle epoque.
A
“ciência” da eugenia é reforçada com os medos da burguesia europeia, obcecada
com as ideias de degeneração da raça e de miscigenação – o francês Galton cunha
o termo Eugenie em 1883, e a primeira sociedade eugenista surge na
Alemanha em 1905 (Sociedade pela Higiene Racial), seguindo-se a sua
congénere britânica em 1907, que em 1912 já organizava a Primeira Conferência
Internacional da Ciência da Eugenia. A vontade de poder de Nietzsche aliada aos
super-homens (europeus, claro está) nada mais era do que a “óbvia” constatação
do que se via nas colónias e mesmo nas metrópoles onde a burguesia seria
superior ao proletariado. A literatura colonial abunda em histórias sobre o
mundo colonial, desde mais sombrias como O Coração das Trevas de Joseph
Conrad, à aventura no desconhecido de O Homem que queria ser Rei de
Rudyard Kypling e fantásticas como Miguel Strogoff de Jules Vernes –
aqui na versão do imperialismo russo espalhando-se pela estepe mongol, indo até
Vlodivostok e ao Japão. Ao mesmo tempo, surgiam nos países capitalistas
diversos Zoológicos Humanos e Exposições Coloniais, onde os
“selvagens” eram exibidos nas metrópoles – o último Zoo Humano foi apresentado
na Feira Mundial de Bruxelas de 1958, no qual era retratada uma aldeia
congolesa.
Em
conclusão, podemos aqui ver aquilo a que o ativista antiapartheid Steve Biko
nos alertava, de que o “Racismo e Capitalismo são duas faces da mesma moeda”,
significando isto que as operações ideológicas elaboradas por Spencer, Gobineau
e outros visavam naturalizar e legitimar a opressão que uma burguesia
triunfante fazia sobre as classes “inferiores” e os demais povos do mundo,
assentando a sua mundividência na ideia de que o eurocentrismo, a
ocidentalidade e o capitalismo eram os parâmetros da história universal.
Bibliografia:
BOLSANELLO, Maria Augusta – Darwinismo
social, eugenia, racismo “científico”: sua repercussão na sociedade e na
educação brasileiras. Educar, nº12, p.153-165,1996.
CALLINICOS, Alex – Racism and
Capitalism. International Socialism 2 : 55,
Summer 1992, pp. 3–39, 1992.
LENIN, Vladimir – O Imperialismo, Fase
Superior do Capitalismo, Lisboa: Avante, 1975.
LOSURDO, Domenico – Liberalism: a
Counter-History, London: Verso Books, 2011.
HOBSBAWM, E. J. – A Era do Capital,
Lisboa: Presença, 1988.
HOBSBAWM, E. J. – A Era do Império
1875-1914, Lisboa: Presença, 1990.
SANTOS, Joel Rufino dos – O que é o
Racismo?, São Paulo: Editora Brasiliense, 1984.
WILLIAMS, Eric – Capitalismo e
Escravidao. São Paulo: Editora Schwarckz, 2012.
A Acervo Crítico sempre abre espaços para colunas de Opinião para nossos seguidores e leitores. Caso queiram contribuir, entrem em contato conosco!