As reformas, os direitos e a economia: o que sobrará depois?

Crédito da Imagem: charge: Der neue Postillon (New Messenger), in 1896

Data 23 de Maio de 2017

Por Isabela Prado Calegari, Queren Rodrigues, Beatriz Passarelli Gomes

Publicado originalmente no site Le Monde Diplomatique Brasil 


Com a possibilidade de eleições indiretas em uma sucessão que provavelmente seguirá a mesma linha de Temer, as medidas que estão sendo impostas são sistematicamente rejeitadas pela ampla maioria da sociedade e derivam do acordo explícito entre um Executivo ilegítimo, um Legislativo não representativo e confederações patronais.


A despeito dos acontecimentos recentes implicando a presidência, as reformas e medidas econômicas ainda seguem vivas e a elas que devemos atentar, independente do que venha a acontecer no Executivo daqui pra frente. Carmen Lúcia, presidente do Supremo, que eventualmente pode assumir o país, já vinha se reunindo com grandes empresários nas últimas semanas[1], e Henrique Meirelles, principal articulador da política econômica com os bancos, já afirmou que seguirá a mesma linha com ou sem Temer na presidência[2]. As medidas que seguem sendo impostas são rejeitadas pela ampla maioria da sociedade e derivam do acordo explícito entre um Executivo ilegítimo, um Legislativo não representativo[3] e confederações patronais[4]. Medidas como PEC do Teto[5], Reforma do Ensino Médio[6], Reformas Previdenciária[7] e Trabalhista[8], MP da Regularização Fundiária[9], desmonte do BNDES[10], aparelhamento e sucateamento da Funai[11], precarização do licenciamento ambiental[12], cerceamento dos direitos indígenas e sua criminalização[13], têm a característica comum de não serem medidas conjunturais, mas de modificarem o pacto constitucional firmado em 1988[14], e a possibilidade de atuação do Estado, com impactos estruturais, de curto, médio e longo prazo. O fato de medidas estruturais tão profundas estarem sendo implementadas de forma impositiva e sem diálogo nenhum já seria razão suficiente para invalidá-las no que concerne uma democracia. No entanto, analisaremos aqui algumas das falácias e dos possíveis desdobramentos econômicos e sociais do cenário que vem se desenhando.
Economistas ortodoxos aplaudem as medidas do governo e nunca se furtam em repetir o argumento irremediavelmente arrogante de que os defensores da regulação governamental possuem propósitos nobres de proteção e preocupação com o trabalhador, mas que infelizmente, propósitos bem-intencionados servem apenas para minar a autorregulação do mercado, resultando em um cenário pior para os próprios trabalhadores. Propõem que não tratemos o trabalhador como “coitadinho”, pois a livre negociação será benéfica para todos. Dizem que o patrão e trabalhador não devem ser vistos como antagônicos, pois estão do mesmo lado, e que as leis atuais protegem apenas a parcela da população que está formalizada e cria incentivos para a informalidade. Dizem ainda que a reforma trabalhista aumentará a produtividade do país. Quanto a esses argumentos, é necessário fazer alguns comentários.


1) Os defensores das propostas dizem da datação da CLT, mas não mencionam que 923 dos seus artigos iniciais já foram alterados e que a reforma em questão regride a legislação ao que ela era antes de 1943[15]. 2) Diversas propostas atuais apenas criam um cenário no qual a lei é totalmente favorável ao empregador, como o aumento da jornada de trabalho, relativização do que é insalubridade e trabalho escravo. Desse modo, a retórica “menos Estado, mais mercado” não passa de uma frase de impacto, que na verdade significa o mesmo Estado, servindo menos a um lado e mais a outro. 3) Todas as medidas beneficiam no texto da lei os empregadores, mas, curiosamente, seria só por um mecanismo mais complexo e etéreo de ajuste de mercado que elas beneficiariam também o trabalhador. 4) Todas as medidas transferem o risco do patrão para o trabalhador, como, por exemplo, flexibilização da jornada, onde o empregador define os horários e o salário a posteriori e o empregado tem que adequar sua rotina e sua renda[16]. De acordo com a própria teoria ortodoxa, na qual o lucro do empresário é uma recompensa pelo seu risco, seria então esperado que os lucros caíssem consideravelmente daqui pra frente. 5) Se trabalhador e patrão estão “do mesmo lado”, então por que o que beneficia o trabalhador é sempre ruim para todos, mas o que beneficia o patrão é sempre bom para todos? 6) Se a reforma acaba com qualquer tipo de proteção que existe atualmente[17], qual é a vantagem de um informalizado se formalizar sob as novas regras? Por outro lado, os trabalhadores formais, que representavam um contingente crescente nos últimos 10 anos[18], terão seus direitos extorquidos. 7) É irônico que zelar pelo respeito mínimo às condições de vida seja coitadismo, enquanto tratar os trabalhadores como ignorantes econômicos, que não enxergam as benesses da reforma e necessitam de economistas, que exerçam a tutela do incapaz sobre eles, seja entendido como dignificante. 8) É curioso que os defensores de tais medidas acreditem que elas são fruto de planos econômicos refinados e não de um deprimente balcão de negócios, no qual o trabalhador não está presente. Basta ver que a reforma trabalhista se iniciou com uma proposta de 9 páginas (apresentada às pressas, logo após a menção de Temer na Lava Jato), e no período de dois meses se transformou em um desmonte amplo da CLT com 132 páginas[19], escritas por parlamentares tão ou mais ignorantes em economia do que qualquer outro cidadão, mas que, no entanto, padecem de conflitos de interesse explícitos. 9) Por fim, é totalmente absurda a afirmação de que a reforma trabalhista aumentará a produtividade. Se a produtividade é o valor produzido por hora, é muito mais provável que o valor produzido por hora diminua, uma vez que os trabalhadores certamente estarão mais exauridos. O que irá acontecer é o aumento do lucro por hora e o aumento das horas trabalhadas. Isso não significa que o país estará produzindo valor agregado de forma mais eficiente, significa apenas que os trabalhadores estarão mais explorados, produzindo mais lucro, que pode ser apenas retido e não reinvestido.
Feitas essas considerações, sabemos que a tese central dos defensores das reformas é de que tudo isso irá beneficiar o “ambiente de negócios”, trazer “segurança jurídica”, “solvência”, “aumentar a confiança” e aumentar o crescimento. Esse é o mecanismo pelo qual os trabalhadores seriam finalmente beneficiados, ainda que tenham perdido seu direito à mínima dignidade. O governo se ancora nessa base teórica e se orgulha em não se importar com a popularidade abissal, pela suposta coragem de dar o remédio amargo e necessário à população[20]. Realmente, tirar todo o risco do capital e diminuir o custo do trabalho faz com que o patrão tenha incentivos para expandir a produção. No entanto, o desejo do empresário é o único fator determinante em uma economia? Se estamos em um sistema capitalista, mesmo que você seja a favor do capitalista, o sistema não deixa de existir. E um sistema, por definição, é um mecanismo onde as partes são interdependentes. Assim, os incentivos somente a um lado são suficientes para realizar a produção e vendê-la? Para quem seria vendido um aumento da produção, se 97% da população ativa que não é empregadora estiver com seu salário diminuído e maior instabilidade financeira? Expandir para o mercado externo, por sua vez, depende apenas do custo do trabalho e não do câmbio? Por outro lado, a contratação de mão de obra por empresas estrangeiras que se instalarem aqui irá compensar a quebra de outras empresas que não suportarem a competição? Além disso, com supressão de intervalos e férias, trabalho intermitente infinito, aumento da jornada e horas extras não remuneradas, é muito mais plausível que o empregador diminua a mão de obra contratada, aumente as horas e a contratação de terceirizados com salários mais baixos.
Todas essas questões não têm resposta única, enquanto a única certeza é a precarização do trabalho e perda de direitos adquiridos. Além de todas as possibilidades que ficam no ar, frente às afirmações simplistas neoliberais, é preciso entender que nunca existe apenas uma resposta possível a uma crise e nem uma fórmula pronta para realizar qualquer política econômica. Na verdade, existem sempre diversas combinações e escolhas possíveis, que irão variar de acordo com os valores que escolhemos privilegiar enquanto sociedade, acarretando em mais ou menos injustiça social, degradação ambiental, concentração de renda etc. Para citar três exemplos: 1) a tão falada “responsabilidade fiscal” poderia ser adotada por meio de reforma tributária progressiva, diminuindo impostos sobre consumo, taxando mais os ricos e restabelecendo o imposto sobre lucros e dividendos, no entanto preferiu-se fazer uma PEC, que congela gastos sociais, já exíguos, frente a uma população crescente, pobre e dependente de programas assistenciais, como farmácia popular, para sobreviver[21]. A isso o governo chama de “cortar na carne”. 2) A sustentabilidade da previdência poderia ser atingida acabando com as desvinculações de receita da união, com a revisão de aposentadorias desproporcionalmente onerosas como a dos militares, com a extinção de isenções que o agronegócio usufrui desde 1990, e com o aumento do controle sobre a sonegação. Ao invés disso, prefere-se renovar sucessivos pacotes de refinanciamento que dificultam a cobrança de dívidas bilionárias, manter aposentadorias privilegiadas, e inserir novas injustiças, como aumento da idade mínima, exigência de contribuição para a aposentadoria rural, e redução das pensões por morte e invalidez. Ao mesmo tempo em que a reforma trabalhista esvazia a arrecadação ao INSS de uma hora para outra, auto-realizando a sua alardeada “quebra”, e satisfazendo os donos de previdências privadas. 3) Quanto à produtividade, é crescente o número de estudos que apontam para a complexidade produtiva, alcançada por meio da indústria, como o fator primordial para o aumento da produtividade[22]. No entanto, o governo, seguindo a política ortodoxa, é explicitamente favorável ao câmbio valorizado, que está altamente correlacionado à desindustrialização à expansão do agronegócio[23]. Além disso, incentivam ainda mais o agronegócio, e a baixa produtividade, por meio diversas outras medidas, que são também uma sentença para o meio ambiente e os povos tradicionais, como facilitação de venda de terras para estrangeiros, facilitação de regularização das terras griladas, diminuição dos parques nacionais e restrição às demarcações de terras indígenas, para a expansão da fronteira agrícola. De quebra, a reforma do Ensino Médio ainda diminui a qualificação da população economicamente ativa (da parcela já empobrecida).
Fica claro que as escolhas feitas pelo atual governo, com requintes de crueldade na maioria das vezes, e a despeito da opinião popular, dizem muito mais sobre valores implícitos e a quem o governo pretende agradar, do que qualquer coisa sobre expertise econômica e enfrentamento da crise. Obviamente, o governo precisava aproveitar a crise para empurrar o pacote de maldades à população e eventualmente dizer, com a ajuda da grande mídia, que a economia se recuperou por causa de tais reformas, e que elas eram inevitáveis. Depois das reformas já feitas, qualquer argumento contrário será contrafactual, ou seja, versará sobre algo que poderia ter sido e não foi. A visão do governo será então a história como ela é, e a eventual recuperação econômica terá se dado por causa das reformas, e não apesar delas. Cedo ou tarde, a economia voltará a crescer, tanto porque ela é reflexo conjuntural de uma crise internacional, como porque as economias capitalistas tendem a movimentos cíclicos. A esse ponto, qualquer estímulo anti-cíclico terá o efeito desejado de crescimento, e uma resposta anticíclica é de interesse também do governo, não só pela possível candidatura de alguém da sua base, se houverem eleições, mas também e principalmente, porque o golpe tem que se pagar para além da perda de direitos. Seria ingenuidade pensarmos que o governo deixaria a crise seguir se aprofundando, afetando o lucro dos empresários que o apoiam. Vários motivos levam a crer que a crise econômica foi utilizada para inflamar a instabilidade política, que por sua vez, serve para viabilizar o acordo classista acima mencionado, que exclui os trabalhadores.
Um breve preâmbulo sobre a situação dos estados nos fornece ainda mais evidências nesse sentido. Há meses, os estados governados pelo PMDB, notadamente, RJ e RS, vêm sofrendo privatizações[24], extinção de fundações públicas[25], e parcelamento ou não pagamento de milhares de seus servidores, pensionistas e aposentados[26], supostamente por falta de dinheiro e necessidade de renegociação da dívida com a União. No entanto, outros gastos, como consultorias, cargos comissionados e salários dos próprios governadores e parlamentares, continuam em dia e até mesmo recebendo aumentos[27][28][29]. Ao mesmo tempo, o estado de Minas Gerais, também em calamidade financeira mas não governado pelo PMDB, não aceitou as imposições do governo federal e contestou a dívida, resultando em ganho de causa no STF para o estado, invertendo a situação, e colocando a União como credora[30]. Tais fatos denotam como a crise e a dívida podem ser usadas politicamente de forma orquestrada para privatizações e justificativa para as reformas. Assim, acreditamos que o Executivo, tanto a nível federal como nos estados pertencentes à base, e em aliança com as Confederações, está cultivando a sensação generalizada de terra arrasada, para aprovar as medidas, e aguardando o momento preciso para fazer uso de alguns elementos chave, impulsionando a economia e, ao mesmo tempo, celebrando o suposto sucesso das reformas. Tais elementos seriam: (i) a liberação em dia do pagamento dos servidores, pensionistas e aposentados nos estados; (ii) a implementação do pacote de investimentos anunciado por Michel Temer[31]; (iii) o “retorno da confiança” alardeado pelas agências de rating, economistas e mídia, que já começa a acontecer, mesmo com base em crescimento ilusório, que deriva de uma mudança metodológica do IBGE[32]; (iv) a consequente retomada de contratações e de utilização da capacidade ociosa das empresas, por expectativas auto-realizáveis e por coordenação com o grande empresariado; (v) a taxa de juros, que vem sendo baixada, também pela coordenação de Meirelles com o grande capital, que investe nas reformas como benéficas para o maior acúmulo financeiro, independente do efeito social delas; e (vi) a série de privatizações ocorrida, que criará uma ilusão imediata nas contas públicas, decorrente da venda de patrimônio.
Assim, tentamos aqui contrapor algumas das diversas falácias que surgem em meio aos argumentos simplistas e desonestos de defesa das reformas. Buscamos também evidenciar que o impacto de longo prazo, tanto na estrutura produtiva brasileira, como na construção da cidadania e equidade, é trágico. A despeito de tudo isso, temos ouvido os analistas de mercado e da grande mídia satisfeitos e otimistas, pois para esses atores não importa o longo prazo, muito menos os direitos sociais, e o seu otimismo costuma ser auto-realizável. Daqui para frente, caso as reformas passem, é necessário ainda lembrar que níveis de emprego futuros não serão comparáveis aos que temos hoje, pois os trabalhadores estarão formalmente empregados sem ter um salário certo ao fim do mês. A inflação também tende a cair pelo populismo da apreciação cambial, no entanto, se os salários caírem, o real poder de compra da população poderá cair, a despeito da queda da tão temida inflação. Desse modo, as reformas mudam os indicadores e criam ilusões que poderão ser vendidas como melhorias, enquanto a população é cada vez mais explorada, empobrecida e desprovida de bens e serviços públicos. Cabe a nós não permitirmos tamanhas ofensivas sem oferecer nossa mais profunda resistência.
Isabela Prado Calegari, Queren Rodrigues, Beatriz Passarelli Gomes são Mestrandas em Economia pela Unicamp



































Wesley Sousa

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