Meritocracia no Brasil? Pense novamente.




O texto que se segue abaixo foi escrito e nos cedido por um de nossos leitores. Rennan Ramazini comenta de forma sucinta e didática do mito meritocrático



Existem diversos conservadores de esquerda que defendem igualdade para todos, mas ainda compactuam com regimes pouco democráticos e agem nos extremos da irracionalidade. Em contrapartida, existem conservadores de direita que apenas justificam sua posição ideológica pelas suas visões econômicas, negligenciando, na maioria das vezes, as questões sociais. Na posição dos mais liberais e da direita conservadora estão os que defendem a eugenia e a meritocracia.

A questão da meritocracia exige uma complexa rede de avaliações objetivas para distribuir e justificar as pessoas nas diferentes posições de autoridade e poder na sociedade. É uma forma de justificação das posições sociais de poder com base no merecimento, normalmente calcado em valências individuais, como inteligência, habilidade e esforço. Supostamente, portanto, uma sociedade meritocrática se sustentaria na ética do merecimento.

Porém, a meritocracia esconde, por trás de uma aparente e aceitável “ética do merecimento”, uma perversa “ética do desempenho”. Numa sociedade de condições desiguais, pautada por lógicas mercantis e formada por pessoas que tem não só características diferentes, mas também condições diversas, merecimento e desempenho podem tomar rumos muito distantes.

A meritocracia exacerba o individualismo, supervalorizando o sucesso e estigmatizando o fracasso, bem como atribuindo exclusivamente ao indivíduo e às suas valências as responsabilidades por seus sucessos e fracassos. A meritocracia propõe construir uma ordem social baseada nas diferenças de predicados pessoais (habilidade, conhecimento, competência, etc.) e não em valores sociais universais (direito à vida, justiça, liberdade, solidariedade, etc.). Então, uma sociedade meritocrática pode atentar contra estes valores, ou pode obstruir o acesso de muitos a direitos fundamentais”.

É uma ilusão de futuro possível para quem ainda o almeja. Quando berram que a meritocracia é o “sistema” ideal – o que querem na verdade é uma maneira de ao mesmo tempo justificar e defender os privilégios de quem já tem muito e de garantir que os que têm pouco não se revoltem. ‘Trabalhe e conseguirá o que quiser’, vendem numa estratégia publicitária.

Por isso grande parte dos argumentos meritocráticos são falaciosos. Principalmente os que defendem a meritocracia como fator determinante da posição social que o indivíduo ocupa na sociedade. Com um breve levantamento histórico-social percebemos facilmente que esse discurso não passa de mentira conveniente. Uma ideologia que institui a desigualdade social com fundamentos “racionais”, e legitima pela razão toda a forma de dominação (talvez a mais insidiosa forma de legitimação da modernidade). A dominação e o poder ganham roupagens racionais, fundamentos científicos e bases de conhecimento, o que dá a eles uma aparente naturalidade e inquestionabilidade: é como se dominados e dominadores concordassem racionalmente sobre os termos da dominação. Uma forma de se explorar a desigualdade com legitimidade, de invisibilizar a regra e visibilizar a exceção, de tentar fazer parecer justo aquilo que é injusto.

Não seja uma pessoa alienada que ignora a atualidade contemporânea como fruto de uma construção histórico-social; somos todos iguais, mas não estivemos e não estamos em situações iguais, tanto social como historicamente! A desigualdade, a pobreza, a miséria e a exclusão não é um problema genético ou de desempenho, mas sim histórico-social. Um exemplo é o fato de que a população negra foi escravizada até 1888, que foi marginalizada após o fim da escravidão, que leis foram criadas para limitar o acesso ao emprego, que a mecanização da agricultura e a falta de uma reforma agrária gerou o êxodo rural no século XX, e subsequentemente a urbanização desequilibrada e todos os problemas de superpopulação, desemprego, subemprego e criminalidade nas grandes cidades. 

Aglomerados em barracos, construíram as favelas e periferias urbanas, outros passaram a ocupar as ruas, sem emprego, moradia e qualquer perspectiva de vida. Foi nesse contexto, que milhões de famílias criaram seus filhos, na miséria urbana, à margem do capitalismo do Sudeste e expulsos da terra pelos latifundiários e suas máquinas nas regiões do Nordeste, norte e interior do Sul, sudeste e centro-oeste. O presente é consequência do passado. O Brasil ainda é o país das capitanias hereditárias, dos oligopólios seculares, da concentração de terra, e até hoje se manifestam as consequências sociais e culturais da longevidade e do alcance da escravatura no Brasil.

Os negros são descendentes de escravos que não tiveram direito a indenização! E os mesmos fatos históricos que fazem os negros herdarem as favelas, os presídios e os subempregos são os mesmos que fazem algumas pessoas serem multimilionárias sem nunca sequer terem trabalhado!

Porque a maioria dos moradores da favela são negros? Porque que os pobres acordam mais cedo, cumprem maiores cargas horárias, dormem menos e não saem da linha da pobreza? Porque os negros que lotam os subempregos? Quem ocupa os empregos que causam mais desgaste físico? Porque os pobres, muitas vezes sem escolha, se sujeitam a empregos degradantes? Porque os pobres que preenchem esses empregos degradantes, "suam" mais, se machucam mais, se desgastam mais e não ascendem socialmente e nem ficam ricos? Não é uma questão de esforço.

Também existem brancos pobres, claro. Porém, o branco já estava nas grandes cidades, ocupando as funções de operário na nascente indústria brasileira. Os negros saíram atrás dos brancos na história brasileira, os empregadores preferiam os brancos imigrantes. Diversas leis proibiram os negros de ocuparem algumas profissões no pós-abolição deixando-os sem meios de subsistência. Quase toda a população branca do Brasil é descendente de imigrantes Europeus, uma população que não foi escravizada e nem marginalizada, mas que logo ao chegar no Brasil, foi inserida na produção industrial e agrícola assalariada.

Acreditar que se o pobre trabalhasse mais ele deixaria de morar na favela, acreditar que carga horária e esforço braçal e pessoal está ligado com o salário justo recebido, acreditar que exista possibilidade de haver meritocracia em um país extremamente desigual, onde há exploração do homem pelo homem, privilégios e vantagens, não passa de analfabetismo histórico, político e social. E a ideia de que o sucesso pertence a quem tem pensamento positivo, é uma ideia infantil. O sucesso pertence a uma pessoa por uma série complexa de ações, de determinações sociais, de oportunidade, de inteligência, de sorte, de acidente, de herança, de acaso.

Vivemos uma realidade onde crianças trabalham desde os 7 anos e não saem da linha da pobreza e dificilmente sairão, os que saem, são minorias que não aparecem em gráficos. Se o sujeito diz que a criança deve se esforçar para ganhar o dinheiro dela e ajudar em sua sobrevivência, este sujeito está fazendo algo que é um termo muito comum na sociologia: naturalização da desigualdade. Como uma criança pobre vai ter mérito de alguma coisa se ela está sendo forçada a trabalhar por algum motivo? Normalmente, sobrevivência ou orfandade? A criança em vez de estudar ou estagiar em áreas que a qualifique, está sendo forçada a um trabalho indesejado onde ela trabalha apenas para não morrer de fome ou ajudar no pequeno orçamento da família. Programas assistencialistas diminuem essa tragédia social. Programas estes que além de movimentar a economia, aumentar o PIB, reduzir a mortalidade infantil, melhorar o desempenho escolar de crianças, organizar famílias e trazer melhorias para a produção no campo; tira as crianças da rua, tira as crianças do trabalho informal e as coloca na escola. E é na escola que elas “aprenderão a pescar”.

O Brasil vive sob uma colossal, desumana e degradante desigualdade social, não é novidade para ninguém. O fato mais intrigante disso, porém, é que possamos conviver com esse aspecto lastimável da sociedade brasileira sem nos importar muito, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Para expor as engrenagens ideológicas que legitimam e permitem esse tipo de comportamento conformista, bem como as consequências diretas para milhões de desclassificados da pobreza, o professor e sociólogo Jessé Souza escreveu o excelente livro “A Ralé Brasileira – Quem é e como vive”.

Os jornais, a TV, as mídias em geral, por fim, os pesquisadores e especialistas afirmam cotidianamente que “todos os problemas sociais e políticos brasileiros já foram devidamente mapeados”. Curioso que, apesar de conhecidos os problemas, não se perceba nenhuma grande e radical mudança nas últimas décadas na vida de milhões de pessoas condenadas a humilhações e privações diárias. Nossa desigualdade social tem sim uma ligação com o nosso passado colonial e escravocrata, mas o processo de legitimação e perpetuação dessa desigualdade não tem nada a ver com o chicote do senhor de escravos ou com o poder do dono de terras; ela é reproduzida, no dia a dia, por meios “modernos”, especificamente simbólicos.

Certamente os economistas tomaram dos bacharéis de direito do século XIX o prestígio perante as elites. E o resultado disso é que o economicismo extrapolou as barreiras da disciplina e tomou conta do senso comum. Agora só enxergamos nossos problemas, sejam eles tanto sociais quanto políticos, através de esquemas, equações, cálculos, numa confusão entre “quantificação” e “fetiche dos números” com “interpretação” e “explicação”. As palavras bonitas e rebuscadas dos doutores e intelectuais do passado agora dão lugar a estudos técnicos vazios e estatísticos que nada dizem ao cidadão comum.

Será mesmo que essas frases de autoajuda-liberal têm sentido? Será mesmo que esses “truísmos” tem sentido? O sucesso depende só de nós mesmos? Será que é real esse papo de que basta querer? A falácia do “trabalho dignifica o homem” é parte do dogma meritocrático dos mais aventurados financeiramente, um dogma dos mais idealistas e mentirosos por sinal. Competição no capitalismo não passa de discurso que explora a desigualdade. Mas de forma que impossibilita a busca por sistemas sociais mais inclusivos e abrangentes, por uma alternativa à economia de mercado. É um ideário conservador e retrógrado acima de tudo. Um dos fundamentos de ordenamento social mais reacionários e a-históricos que existe, com potencial para produzir verdadeiros abismos sociais e humanos.


Links e referencias complementares ao texto:


- Desvendando a espuma: o enigma da classe média brasileira, texto sobre meritocracia http://jornalggn.com.br/…/desvendando-a-espuma-o-enigma-da-…

- Pobreza infantil impacta desenvolvimento cerebral, diz estudo http://noticias.uol.com.br/…/pobreza-infantil-impacta-desen…

- Pobreza reduz as capacidades cognitivas http://www.publico.pt/…/pobreza-reduz-as-capacidades-cognit…

- Pobreza afeta gene e favorece depressão. "Adolescentes que crescem em casas com status socioeconômico menor mostraram maior acúmulo de uma certa “assinatura” química em um gene ligado à depressão, no curso de dois anos. http://www2.uol.com.br/…/pobreza_afeta_gene_e_favorece_depr…

- Fortuna da mais jovem bilionária do mundo foi conquistada através de trabalho infantil na África http://www.redetv.uol.com.br/…/fortuna-da-mais-jovem-bilion…

- As famílias mais ricas de Florença de 1427, continuam sendo as mais ricas de Florença de 2016 http://qz.com/…/the-richest-families-in-florence-in-1427-a…/

- Herança é origem da fortuna de 50% dos bilionários do Brasil http://crc-se.jusbrasil.com.br/…/heranca-e-origem-da-fortun… 

-Os miseráveis: retrato sem retoques de um Rio de excluídos http://oglobo.globo.com/…/os-miseraveis-retrato-sem-retoque…

-“Você acredita em meritocracia? Se sim, melhor pensar de novo. No Brasil, por exemplo, o salário dos 10% mais ricos é quase 30 vezes maior que o dos 10% mais pobres. A ciência mostra que o esforço é uma parte muito pequena de uma equação que envolve a família, o local de nascimento e até um pouco de sorte. Na edição de julho, GALILEU explica por que a cultura da meritocracia contribui para a desigualdade.” http://revistagalileu.globo.com/…/como-meritocracia-contrib…

- Os mitos da meritocracia e da brasilidade a serviço dos privilégios no Brasil http://www.panoramicasocial.com.br/…/o-mito-da-meritocracia…

“Para piorar ainda mais o nosso modelo no Brasil, o mito da brasilidade transmite duas ideias prejudiciais a qualquer tipo de mudança desse quadro: a de que somos todos iguais, brasileiros felizes e abençoados – o que ajuda a ocultar as enormes e indecentes desigualdades sociais – e outra, talvez bem pior: o “horror ao conflito”. Afinal, somos um povo pacato e cordial, cristãos que pregam o amor e a ordem, nada de reivindicações, porque isso não é coisa nossa... Quem quer que ouse lutar contra o Establishment, é logo tachado de desordeiro, terrorista, “vândalo”, ou algo que o valha (e tome senso comum). E isso teve como resultado séculos de conformismo e a ocultação de todos os conflitos sociais, seja de classe, de gênero ou de raça.

Não, não somos todos iguais, como quer fazer crer o mito da brasilidade. Nesse país, há privilegiados e abandonados, há poucos com muito e muitos com pouco. E não foi o mérito individual que determinou quem tem e quem não tem acesso aos bens culturais e materiais do país. Esse é um mito dos mais perversos e que precisa ser desconstruído o mais rápido possível, se quisermos atacar na raiz os verdadeiros problemas históricos do país. Poderíamos todos começar não dando crédito a tudo o que escutamos por aí. Existem interesses ocultos em cada discurso, e temos que aprender a desvendá-los. “

- Mito da brasilidade: ocultar as diferenças sob um falso senso de igualdade http://www.panoramicasocial.com.br/…/o-mito-da-meritocracia…

- “Meritocracia”:Filho de 7 anos de Michel Temer tem R$ 2 milhões em imóveis http://exame.abril.com.br/…/filho-de-7-anos-de-michel-temer…

- O maravilhoso mundo da meritocracia. Lista de bilionários do Brasil tem 25 mulheres; maioria herdou a fortuna. http://economia.uol.com.br/…/lista-de-bilionarios-do-brasil…


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Wesley Sousa

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