Acervo Crítico Entrevista: com Elcemir Paço Cunha




Elcemir Paço Cunha possui graduação em Administração de empresas pela Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ); Mestrado pela mesma área na Universidade Federal de Lavras (UFLA); Doutorado em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil (UFMG) – 2010. É professor adjunto IV da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Tem dedicado esforços para estudar acumulação de capital, tecnologia e organização do trabalho, além da administração como ideologia



AC – Muito tem se falado sobre como a gestão de Lula e Dilma teria gerado uma crise política, e esta, por sua vez, teria desencadeado a atual crise econômica. Você concorda com isto: a crise política é a causa da crise econômica brasileira?

EPC: Embora exista, de longa data, registros de "crises políticas" e quem, como se sabe, enfatizasse a chamada "crise de hegemonia", e ainda que o efeito de uma "crise política" sobre a economia não possa ser descartado de princípio, não me parece que seja o caso explicativo dos processos que marcam época na história recente da particularidade brasileira. Não me parece, entretanto, que se possa também ignorar a movimentação política de 2002 em diante selada numa "pactuação funcional", ao menos até a data em que sua validade foi ultrapassada.

A questão é apreender as condições objetivas que garantiram a durabilidade dessa "pactuação" entre setores do grande ao pequeno capital e demandas populares ministradas a conta gotas, tudo isso sob a tutela dos segmentos financeirizados. Uma economia subordinada como a brasileira tem uma grande dependência do mercado internacional de commodities. Um boom dos preços nesse mercado foi uma alavanca poderosa para o contraste entre o final dos anos de 1990, marcado pelas políticas internas privatistas e pelos efeitos da crise do leste asiático - e um pouco depois pela bolha das chamadas dotcom -, e os anos seguintes de ascenso da economia mundial. O enfraquecimento desse episódio do mercado de commodities já a partir do segundo mandato do governo petista redundou na aposta de expansão do consumo do mercado interno de bens como automóveis e eletrodomésticos em geral dominados, como se sabe, pelo capital produtivo internacional. Endividamento familiar e desonerações fiscais como linha geral tomam direção nesse período e sofre intensificação durante o primeiro mandato de Dilma Rousseff. Sobretudo as desonerações e outras medidas do mesmo calibre, parcimoniosas com o grande capital, não cessaram após o impedimento. É a linha mestra suprapartidária que todos os grupos no poder político no capitalismo precisam assumir para prestar contas ao único patrão que conhecem.

Junto ao enfraquecimento do mercado de commodities sobrevém um processo de amplo endividamento das empresas que se explicita ainda mais pela virada na tendência das taxas médias de lucro a partir dos anos de 2007, como chama a atenção do trabalho de Marquetti e colaboradores. De 2010 em diante, é constante o alerta nos principais jornais brasileiros - sobretudo nos que os proprietários e seus gestores dialogam - sobre o recuo dos lucros, acusando o nível dos salários como principal fator negativo à rentabilidade e que afetava não apenas o setor produtivo, mas também a bancocracia. Em suma, atingia todo o capitalista coletivo, todas as suas frações associadas. Isso é que explica, de fato, a contestação que daí em diante se fortalece, faz surgir "patos amarelos gigantes" e esfacela a "pactuação" que, não mais funcional, demandou subterfúgios políticos como meio de garantir expediente que revertesse a tendência. Não é que não se vinha sinalizando tal expediente marcadamente expresso nas possibilidades das reformas, mas o juízo prevalecente, me parece, foi de que o tempo necessário para tais expedientes era infinitamente menor do que a capacidade política então posta. Era preciso uma mudança rápida, iniciando uma nova aventura das elites...

Uma análise de realidade de qualquer indivíduo portador de uma relativa isenção subjetiva não poderia apontar para uma suposta "crise fabricada" ou mera manobra política, nem que as condições econômicas foram revertidas inteiramente pela simples mudança política. O politicismo é, como se vê a olhos nus, suprapartidário. Houve, de fato, manobra política, mas o gatilho foi a virada nas tendências gerais a partir de 2007, não por acaso período da bolha das subprimes que afetou todo o globo, inclusive os maiores importadores das commodities brasileiras. E, adicionalmente, os sinais de reconversão após a mudança política não parecem tão animadores quanto membros do governo e seus adjuntos midiáticos fazem crer.

Fosse um problema meramente político, a simples mudança ocorrida teria tornado relativamente desnecessárias medidas mais agressivas por parte da coligação - mais sem disfarces do que a anterior - que agora domina. A prova cabal de que o problema causal passa pelas condições econômicas do período é que o expediente intensificado com a reforma trabalhista não visa outra coisa senão criar condições para uma maior exploração econômica do trabalho por via da redução dos níveis de salário que eram então crescentes, pelo menos desde o início dos anos 2000 (acompanhada inclusive de tendências de redução da jornada de trabalho que remonta a 1988). O desemprego já é uma alavanca poderosa para rebaixar salários, mas a "modernização trabalhista" acelera esse rebaixamento que supostamente permitirá uma guinada na tendência declinante da taxa de lucro.

Em suma, as condições objetivas que permitiram a duração que teve a pactuação funcional não poderiam continuar para sempre, e não continuaram mesmo. É isso que explica porque os aliados foram engrossando a campanha anti-petista. Existem outros elementos, sem dúvidas, mas este é essencial.

De toda forma, é preciso registrar que reconhecer o gatilho econômico não é sinônimo de economicismo, assim como reconhecer o peso político não é sinônimo de politicismo. Como irmãos gêmeos, economicismo e politicismo são mancos. O território político é heterogêneo ao econômico, mas não é autônomo e nem pode simplesmente ignorar as condições objetivas pela força da vontade. Ao mesmo tempo, não é um reflexo imediato e direto exatamente porque é heterogêneo e responde contingencialmente e com tempo variado às condições reais que formam sua base. Esse é um alerta importante porque muitos podem ser constrangidos em apontar o lugar prioritário das condições objetivas em razão da pecha de economicista que os politólogos profissionais e de ocasião possam atribuir. A palavra final, no entanto, é da própria realidade material.


AC – Um importante intelectual da tradição marxista, István Mészáros, afirma que o capitalismo entrou numa “crise estrutural” a partir da década de 1970. Você concorda com esse diagnóstico?

EPC - Esse é um tema muito difícil. Mészáros teve boas razões para afirmar o que afirmou durante praticamente todo o período de grande atividade intelectual. No final dos anos de 1960, grande parte da intelectualidade particularmente europeia (Lucien Goldman, Herbert Marcuse etc.) se viu condicionada a afirmar que a era das crises do capitalismo havia terminado. No lugar de capitalismo marcado por crises, teria surgido depois da Segunda Guerra Mundial um “capitalismo organizado” que integrou a classe trabalhadora por meio do consumo principalmente e que criou mecanismos anticíclicos os quais garantiriam desenvolvimento sem precedentes. Germinava aí um grande pessimismo dessa intelectualidade com respeito às possibilidades de transformação social… Não é por menos que Mészáros insistiu durante toda a vida que uma coisa é integrar indivíduos contingencialmente e outra é a relação estrutural de dependência entre as classes que fórmula econômico-social alguma é capaz de eliminar sobre uma base capitalista de produção. Nessa mesma toada e contra o ambiente intelectual de então, afirmou que a ideia de um capitalismo sem crises perdia qualquer sentido com uma análise mais apurada (pois havia sinais a partir do início dos anos de 1960) e que as medidas de administração das crises e do próprio sistema tinham limites os quais já estavam em acionamento no início da década de 1970. Mészáros já sustentava nessa época uma “novidade histórica”, algo que só passou a existir a partir daquele momento, segundo ele. Diferentemente do período histórico anterior, no qual prevaleceu crises recorrentemente cíclicas e até com certa periodicidade, insistia Mészáros, a crise que se armou a partir de meados dos anos de 1960 é “estrutural” e “permanente”, em seus próprios termos, por acionar os limites absolutos do sistema. As alternativas de deslocamento das contradições estavam bastante limitadas, assim como o subterfúgio estatal para encetar processo de acumulação de capital. A crise é “estrutural”, portanto, em sua amplitude e profundidade, marcando dali em diante um caráter “rastejante” e cada vez mais potencialmente explosiva precisamente porque os limites absolutos do sistema já estavam estrangulados.

Para ser justo, o aspecto catastrófico frequentemente aludido como parte integrante das ideias do autor é componente de seu modo expositivo que nutria intento exortativo da prática política. Isso explica grande parte da adjetivação “destrutiva” que seus lineamentos mantinham a respeito do assunto. Para ser justo ainda, a soma dos textos de Mészáros revela certa ambivalência com respeito à capacidade ou não do capital de se expandir a ponto de o autor classificar a “crise estrutural” de “mais ou menos permanente”. Em 1971 atribuía a “crise estrutural” a uma decadência radical das taxas de lucro. Anos mais tarde o autor modificou sua proposição básica denunciando o que chamou de “taxa decrescente de utilização”. Adicionou posteriormente outros elementos (como a tendência de nivelamento das “taxas diferenciais de exploração”), sugerindo em entrevistas posteriores uma articulação orgânica entre todos esses elementos explicativos das condições do capitalismo típico de “crise rastejante”, embora não tenha podido retomar essas questões de modo mais sistemático, optando por tratar da questão do Estado nos últimos anos de vida.

Esse comentário é importante para dar conta em linhas muito gerais da propositura básica do autor e para evitar mal-entendidos. E a pertinência da questão sobre a “crise estrutural” está em determinar se existem crises permanentes. É uma questão muito difícil. Ela só pode ser respondida positivamente ante festum. Engels por volta do ano de 1886, se não me engano, quando Marx já havia falecido, afirmou que estavam entrando em uma crise permanente. Mas veio a Belle Époque depois da transição para o século XX e que mudou as tendências de baixa, inclusive na lucratividade, das últimas décadas do século XIX. Grossman viu uma crise permanente após o longo período iniciado em 1929 e que culminou na Segunda Guerra Mundial. Então o pós-guerra produziu um período de grande desenvolvimento, pelo menos até o final dos anos de 1960 quando, novamente, surge a perspectiva de uma nova crise permanente, dessa vez a verdadeira “crise mais ou menos permanente”. Não estou dizendo que as circunstâncias de 1970 para cá não sejam de fato “rastejantes” em vários aspectos, produzindo curtos surtos de desenvolvimento, seguidos de bolhas financeiras. Quero dizer que só é possível afirmar uma crise permanente enquanto sua permanência dure, por assim dizer. Acredito que no caso prevalece a ponderação de que apenas post festum se tem a posição objetiva mais adequada ao entendimento do movimento embora seja sempre possível apreender as grandes tendências. Por isso, ainda prefiro a colocação de Marx nas Teorias da mais-valia (Tomo II. São Paulo: Difel, 1980). Ele foi bastante enfático ao dizer que “não há crises permanentes” (p. 932) e que as crises gerais são possibilidades inscritas nas próprias contradições por meio das quais o capital se movimenta, superando e criando novos empecilhos de modo que o próprio capital vai se consolidando como um obstáculo à produção. As crises se manifestam como “ajuste à força” do ciclo unitário entre produção (criação do mais-valor) e realização (circulação e consumo). Esse é, portando, seu funcionamento normal e não explicita uma fase terminal ou coisa assemelhada. Por isso não podemos tomar a forma expositiva de Mészáros por seu conteúdo. Ainda que ambivalente quanto às possibilidades de um novo ciclo de acumulação, o aspecto catastrófico pertence ao tom exortativo do autor e não ao conteúdo objetivo dos processos que foi capaz de apontar contra o ambiente intelectual, como eu disse, do final dos anos de 1960.

Então, assumindo o lado da ponderação, parece mais correspondente a abertura ao exame dos processos correntes. O próprio Mészáros, por mais que seja monumental o esforço em escrever Para além do capital - texto, aliás, de compilação de materiais de diferentes períodos intelectuais do autor, o que ajuda a explicar certa ambivalência -, manteve-se num nível de abstração que deixava em segundo plano as exigências de uma rigorosa investigação probante. O caráter “rastejante” não me parece ter sido satisfatoriamente explicado pela simples afirmação de que as diferentes taxas e tendências se articulam sem efetivamente demonstrar tal articulação e os resultados que produz.

Ainda do lado da ponderação, devemos investigar as condições não atingidas para reversão das tendências declinantes das taxas médias de lucro como um dos indicativos mais fortes do conteúdo “rastejante” que Mészáros pretendia apontar. Ao investigar tais condições, devemos igualmente perguntar pelas possibilidades postas ou em vias de se efetivarem para um “escape relativo”, como dizia Chasin, frente à lógica do valor de reduzir ao máximo, sem eliminar, o tempo de trabalho necessário. Temos que perguntar pela função dos setores financeiros e das novas tecnologias dos variados tipos nesse processo. Precisamos desenvolver pesquisa concreta, matrizada na realidade sem recuar frente a necessidade de elementos probantes. São questões do nosso tempo...


AC – Quais são as principais estratégias que a burguesia tem adotado, visando a retirada da economia mundial da longa estagnação de 1970 em diante? Como a burguesia brasileira está se posicionando nesse processo?

EPC - Penso que podemos estabelecer três ordens de coisas no geral, mas é sempre difícil permanecer nesse nível porque as particularidades podem inclusive contradizer variados aspectos. Então o que vou dizer são coisas que não refletem inteiramente aspectos específicos.

Como dito antes, um dos indicativos de peso para a análise do processo de crise e que permite apontar para uma longa estagnação é a taxa média de lucro. É algo, no entanto, que exige prudência. Sou adepto da posição de que não existe uma “teoria das crises” em Marx. Por um lado, como Marx mesmo dizia (Teorias da mais-valia, Tomo II), as crises são o “fenômeno mais intrincado da produção capitalista” (Marx, 1980, p. 937). Essas “crises do mercado mundial têm de ser concebidas como a convergência real e o ajuste à força de todas as contradições da economia burguesa” e é preciso destacar os “diversos fatores que convergem nessas crises” (Marx, 1980, p. 945). Destaco o “fenômeno mais intrincado” e os “diversos fatores que convergem” quando a possibilidade se converte em efetividade. Seria mais simples atribuir à taxa declinante de lucro. Há, no entanto, “diversos fatores que convergem” e não há razões para supor que em todos os casos sejam sempre os mesmos fatores. Este é o ângulo que, claro, não tira o peso da taxa declinante uma vez que ela condiciona a direção e o nível do investimento produtivo, que por sua vez afeta a acumulação de capital e assim por diante. Por outro lado, é sempre importante dizer que a taxa declinante é uma tendência que se efetiva ou não dado o jogo de forças e fatores que convergem ou não para o resultado. Já foram utilizadas muitas metáforas e analogias para lidar com isso, mas todas são, por natureza, insatisfatórias. Não há outra maneira de apreender a coisa senão por aquilo que ela é: um complexo de determinações, isto é, nexos objetivos acionados pela ação dos homens no interior e por meio de suas relações com resultados adversos, dada a lógica fundamental que os domina e cujo modo de manifestação mais geral é o embate de tendências e contratendências em que o efeito é contingente e afeta todo o movimento, modificando em graus variados as próprias determinações.

Feita a ressalva, mais importante do que teorizar a esse respeito é o conteúdo dos materiais que confirmam uma declinante taxa de lucratividade a partir de 1965, cujo patamar nunca mais fora alcançado nas décadas seguintes. Enquanto os ideólogos internacionais estão mais preocupados em rebater os dados de Piketty (O capital no século XXI), digamos, num novo episódio das aventuras da apologética sem disfarce (porque convenhamos, o economista francês usa disfarces), há pouca resposta quanto ao problema da lucratividade. O apelo geral com respeito à desigualdade é certamente mais forte, mas pouco explicativo porquanto seja efeito, com impactos importantes, mas efeito. A taxa média de lucro explicita aspectos ligados às contradições por quais se move o capital. E é relativamente difícil para a imaginação dos ideólogos a possibilidade de que a perseguição dos interesses dos capitais particulares poderia produzir efeito contrário ao pretendido. Quero dizer que todos os capitais individuais concorrem para ampliar o lucro singular e, ao mesmo tempo, pode resultar num nivelamento para baixo das taxas médias de lucro. Não vou abrir aqui esse problema, pois nos levaria muito longe e existem materiais suficientemente claros sobre esse problema em autores como Kliman, Roberts, Maito, Duménil, Lévy, para citar alguns. O que quero é apenas ressaltar que de fato há elementos suficientemente probantes (assim como Piketty sobre a desigualdade) para determinar a efetivação da tendência da taxa que se recupera em espasmos curtos apenas, e sempre abaixo dos níveis anteriores a 1970, para terminar em bolhas financeiras já citadas en passant. E que a desigualdade é a outra face de uma mesma moeda, porque, assim como a taxa média de lucro, resulta do processo de acumulação do capital.

Para efeito de clareza, permita-me ficar com a seguinte síntese. Acumulação não é entesouramento, mas volume crescente da massa de valor do capital constante (maquinaria, instrumentos etc.) e do capital variável (força de trabalho). Para aumentar a produtividade e reter um volume maior do mais-valor produzido do que seus concorrentes, cada capital individual, visando ampliar o retorno sobre o capital total investido, incrementa cada vez mais a parte do capital constante uma vez que produtividade é resultante do quantum maior dos meios de produção movimentado por um quantum menor de força de trabalho. Há, aí, os dois efeitos ligados em condições de impedimento da capacidade de ampliação da exploração econômica do trabalho. De um lado, com o aumento do valor do capital constante requer-se cada vez maior volume de capital em capital constante para ampliar a produtividade e isso pressiona as taxas de lucro por conta da simples relação:

p = S/c+v; S = m/v; p = m/c+1
onde:
p, taxa de lucro
S, taxa de exploração do trabalho ou taxa de mais-valor
C, capital constante
V, capital variável ou trabalho pago
c +v, capital total
m, trabalho excedente ou trabalho não pago

Vê-se que nas circunstâncias de estagnação ou baixa aceleração do crescimento de S, a taxa de lucro tende a cair com a ampliação do valor da massa de capital constante. Então não é que a exploração não possa aumentar por via, por exemplo, da intensificação do processo de trabalho repercutindo em melhor relação entre volume de produção e força de trabalho. Basta que ela não cresça na mesma velocidade da acumulação de capital constante para que a taxa de lucratividade tenha tendência negativa, considerando que existem as contratendências que minoram ou mesmo eliminam seus efeitos. Na lógica interna, a alavanca principal de uma contratendência, como se vê, é a própria tendência e velocidade de crescimento da taxa de exploração (os capítulos 13, 14 e 15 do livro III de O capital têm detalhes sobre essa e outras contratendências).

Do outro lado, a expansão da acumulação tem o sentido de diminuir sempre mais e ao limite a participação do trabalho vivo embora ele permaneça necessário. Seja em tempo de prosperidade ou de crise, a produção aumenta relativamente menos a massa de capital variável e essa diferença é suficiente para pressionar ou ao menos sempre manter existente uma superpopulação relativa que transita para “dentro” e para “fora” da produção. Em períodos de prosperidade essa massa diminui, os salários são pressionados para cima. Em períodos de declínio essa massa aumenta e os salários são pressionados para baixo. Os salários oscilam nesse limite de reprodução do capital e nunca a ameaça seriamente porque conta com o próprio mecanismo das crises para rebaixar salários antes ou depois de uma resposta política no plano jurídico da regulação do mercado de trabalho.

É preciso que fique claro como a circunstância do comportamento da taxa pesa muito mais nas decisões dos gestores do capital sobre o investimento de parte dos lucros retidos do que os níveis de desigualdade embora não se discuta tão acaloradamente a primeira como a segunda variável. Ao menos o problema da desigualdade não surge no primeiro plano das preocupações dos gestores econômicos do capital. Essa tarefa é comumente atribuição dos gestores políticos do capital nessa divisão de trabalho: produção e administração da pobreza.

Então é possível condensar as respostas (“as principais estratégias que a burguesia tem adotado, visando a retirada da economia mundial da longa estagnação de 1970”) tanto no plano imediatamente econômico quanto mediatamente no político, pressupondo sempre existentes as reciprocidades: 1. inovação tecnológica; 2. renda/serviço universal; 3. desregulamentação do mercado de trabalho. Digo isso a partir dos debates que são possíveis de acompanhar nos diferentes pontos em que proprietários, gestores do capital e seus ideólogos dialogam. Isso vale também para institutos como FMI e igualmente para os mais localizados como a Confederação Nacional da Indústria (CNI) no Brasil. Claro que isso varia, como já alertei. No Brasil, por exemplo, o assunto de renda universal não surge no horizonte de qualquer discussão atual embora Suplicy tenha defendido o expediente pelo menos desde a década de 1990, se não me falha a memória. A mídia nacional também é blindada para essa discussão, diferentemente da inglesa, por exemplo. Mas isso porque o horizonte no Brasil é o da espoliação mais rápida possível por via da desregulamentação do mercado de trabalho uma vez que os efeitos do salto tecnológico entrevistos estão mais distantes do que nas economias centrais nas quais a aplicação de robôs, por exemplo, excede em muito o realizado nos países economicamente subordinados (de maneira que nos países centrais, fala-se também em imposto sobre emprego de robôs, para se ter uma ideia). Então, para responder aos imperativos postos, convergem os maciços investimentos públicos e privados na assim chamada quarta revolução industrial. Se esse movimento de capitais redundará num “escape relativo” da lei do valor ao encetar um novo ciclo de acumulação, se haverá chance de bolhas em razão de valorização súbita das empresas dos setores de robótica, computação e inteligência artificial ou se fará despencar ainda mais as taxas de lucro só o tempo poderá dizer. Aqui, como antes, a prudência do post festum é a melhor posição. Mas há rixa entre os apologéticos e os alarmistas (os segundos assim designados pelos primeiros). Os primeiros, apologéticos sem disfarce, apostam na solução de todos os problemas pelo simples avanço tecnológico; nada aprenderam com a história e continuam, por herança do marginalismo, na cantilena de que o progresso técnico visa a ampliação da satisfação das necessidades. Os segundos, mais cautelosos (e não por isso menos apologético porque indiretos; alguns quase abraçam o irracionalismo), antecipam um contexto de grande desemprego mundial, agravando as circunstâncias da desigualdade social já posta. Esse debate circula inclusive nos jornais de grande audiência, principalmente europeus. Frente a esse alarme é que se fala em renda universal ou serviço universal, numa tentativa de ressuscitar as já conhecidas formas de administração da pobreza. Há inclusive “testes” em processo no Canadá, Estados Unidos, Finlândia e em outros países que fazem lembrar o detestado “Bolsa Família”. Nesse sentido, como medidas casadas, o forte investimento nas principais economias mundiais (Alemanha, China, Estados Unidos e Japão) na chamada quarta revolução industrial e as experiências para determinar um modelo prevalecente de resposta para o problema social atacam nas duas frentes, na produção e na realização do valor. Por fim, mas não menos importante, a recente desregulamentação do mercado de trabalho na Alemanha, Brasil, Espanha, França etc., sobretudo depois de 2008, demonstra a volúpia para pressionar para baixo os ganhos do trabalho. Nos países centrais a participação do trabalho na renda nacional mostra forte tendência de queda a partir dos anos 2001 e despenca depois da crise dos subprimes de 2007 (https://www.bloomberg.com/view/articles/2017-09-20/why-workers-are-losing-to-capitalists). É um expediente levado adiante por meios políticos, mas que respondem aos anseios dos proprietários, gestores e ideólogos em geral. Um mercado desregulamentado ou “modernizado” permite inclusive uma acomodação mais rápida aos postos de trabalho sobrantes e cada vez mais precarizados. Nos Estados Unidos os dados não mentem e deixam os analistas sem respostas, pois o desemprego caiu para abaixo de 5% embora não se tenha notícia de níveis salariais tão baixos. É o mesmo tipo de embaraço quando precisam assumir que ninguém tem uma boa explicação para o fato de que a partir de 1960 só aumentou sem nunca recuar a diferença entre a produtividade do trabalho e seu pagamento (https://www.bloomberg.com/view/articles/2017-12-04/workers-get-nothing-when-they-produce-more-wrong); o fato de os analistas não terem boas explicações não significa que elas não existam... E das circunstâncias problemáticas do mercado de trabalho, nem mesmo a “aristocracia operária”, para usar uma expressão de Lênin, escapa. Mas mesmo essa “aristocracia” é menor do que se supunha, pois a sindicalização em progresso no Vale do Silício, por exemplo, e as inúmeras denúncias trabalhistas no setor de alta tecnologia (Google, Uber, Tesla etc.) demonstram que abundou “ficção sem fantasia”, arrastando considerável parte da juventude instruída atrás das falsas promessas de trabalho autodeterminado e emancipado simplesmente porque está ligado a alta tecnologia. E as promessas continuam com outra roupagem: empreendedorismo e startups. Dão nomes à geração (y, millennials), o que facilita em muito o diálogo para sua manipulação gerencial.

No Brasil em particular, existem elementos na direção da chamada quarta revolução industrial. Mas o nível é, evidentemente, muito aquém do que se passa no quadrúpede tecnológico do mundo (Alemanha, China, Estados Unidos e Japão, seguidos não de muito longe pela Índia). Enquanto jorra dinheiro público e privado para esse poço nos países centrais, o empresariado nacional vem sendo organizado pela CNI em excursões para os Estados Unidos, tentando projetar no Brasil, a partir da experiência norte-americana, um ambiente institucional para ingressar na quarta revolução industrial. Convidado atrasado para as festas ressente-se da baixa “cultura da inovação” e promove eventos de conscientização. É a velha miséria reposta em patamares diferenciados de associação ao capital internacional, pois nem de “burguesia nacional” poderia ser chamada. As tendências que chegam mais rapidamente estão embutidas em algumas multinacionais, como o caso da Siemens e sua produção “digitalizada”. Outras, como as do setor automobilístico, mantém laboratórios dedicados à inovação que parecem muito mais atender a exigências legais do que a uma estratégia efetiva. De toda forma, são expressões do capital internacional. Nesse sentido, o expediente corrente no Brasil como resposta à queda drástica da taxa de lucro a partir de 2007 e agravada muitíssimo a partir de 2010 (junto ao endividamento crescente, mesmo diante das extraordinárias desonerações fiscais que ultrapassaram a soma dos trilhões de reais) é a destruição dos entraves que limitam de certa forma a exploração econômica do trabalho, seja por intensificação por ampliação da jornada de trabalho indiretamente ou por rebaixamento direto dos salários (terceirizações, trabalho intermitente etc.). As consequências econômicas de curto prazo já aparecem em uma reconversão ainda modesta das empresas, acompanhada por taxas mais altas de desemprego que, como vimos, engrossam a superpopulação e pressiona os salários para baixo.


AC – Muitos teóricos, inclusive ligados à tradição anarquista e marxista, afirmam que, desde os tempos de Marx, uma nova classe social teria se formado: a classe dos gestores. Essa classe, além de responsável pela condução direta dos negócios da burguesia, estaria também intimamente ligada com a formação da burocracia estatal contemporânea. Em sua opinião, o surgimento da classe dos gestores é uma invenção do capitalismo no século XX e que, portanto, não havia sido prevista por Marx?

EPC - Sem entrar nos registros históricos mais longínquos (como Saint-Simon e Alfred Marshall), há uma linha que vai de Berle e Means da década de 1930 à “mão visível” de Chandler durante as últimas décadas do século XX, enfatizando o “administrador profissional”, o “gerente assalariado”, em razão das modificações das relações de propriedade e controle dos grandes negócios. Há muitos outros autores no meio disso, como o sociólogo Mills e o economista Galbraith, por exemplo, e muitas ramificações, algumas mais explícitas do que outras em apontar o surgimento de uma assim chamada “nova classe dirigente” (há o ideólogo Drucker que só não é explícito porque se recusa a reconhecer que existam classes nos Estados Unidos por ser, segundo ele e a enquete de opinião da Forbes na qual se baseia - feita com um punhado de transeuntes -, uma “sociedade de classe média”. As exigências da lógica elementar são ignoradas no caso, pois a existência do termo médio torna necessária a presença dos demais termos polares. É uma exigência básica que o apologista precisa recusar a qualquer custo para defender sua frágil proposição). Há uma outra linha que se desenvolve com a crítica ao regime soviético de partido único burocratizado, para usar o diapasão frequente, e que também ganha muitas ramificações. Uma delas começa com Rizzi e a tese de que a burocracia de Estado do tipo soviético dominaria o mundo, passa pela revolução gerencial de Burnham (acusado confesso de plagiar seu camarada Rizzi) e pelos desvarios de Milovan Djilas (em A nova classe e Além da nova classe, livros amplamente financiados por interesses ocidentais), alcança Rudolf Bahro e os teóricos da tecnocracia dos anos de 1970 em diante. Ambas as vias alcançam países lusófonos, como Portugal e Brasil, e encontram força em nomes como Carlos Estevam Martins, Fernando Prestes Motta, João Bernardo, Luiz Carlos Bresser-Pereira, Maurício Tragtenberg para citar alguns. Há ramificações, como dito, e muitos outros autores. O mote não é tanto a separação entre propriedade e controle, como na primeira linha, mas a dominância do aparato “técnico-burocrático”, como classe, sobre a “sociedade”. Houve quem sustentasse o fim do capitalismo e a constituição de um modo de produção tecnocrático, como os citados Martins e Bresser-Pereira, no qual regia uma “nova classe” dos gestores.

Há nomes mais contemporâneos que sustentam essa tese em um tipo de mistura de elementos dessas linhas e com diálogo com a tradição marxista. Duménil e Lévy merecem atenção precisamente por se ligarem às discussões candentes da longa estagnação desde os anos de 1970. Reverberam certa matriz francesa ocupada com o processo de financeirização e tendem a identificar inadvertidamente capital com finanças (assim como Piketty que identifica capital com patrimônio), deixando um pouco de lado o capital produtivo e o problema do valor. Não obstante, Duménil e Lévy - em A crise do neoliberalismo - consideram que os processos do início do século XX produziram, entre outras coisas, uma nova divisão de classes sociais. Eles chamam essa configuração de modelo tripolar que se sustenta na descrição de três classes essenciais: os proprietários, os gestores e os populares. Os primeiros, como o nome diz, são proprietários de ativos patrimoniais e financeiros, formando, com este último aspecto, os grandes blocos controladores de participações acionárias. Mas a ênfase da dupla é sobre os recursos patrimoniais quando toca diretamente nessa descrição. Os últimos se constituem de trabalhadores em geral, parte da classe média e da pequena burguesia. O destaque fica com a classe dos gestores da esfera pública e da esfera privada, sobretudo os gestores das grandes corporações produtivas, bancos e fundos de pensão, com ênfase para os dois últimos. A partir dessa configuração, os autores franceses estabelecem análises das alianças históricas e contemporâneas, sugerindo que uma determinada forma de articulação proporciona uma direção específica com efeitos claros sobre a dinâmica econômica. Enquanto, por exemplo, o período do pós-guerra foi dominado por uma articulação entre os gestores e as classes populares, sob-regência dos primeiros, que redundou no estado de bem-estar social, a partir de 1970 os gestores penderam, em razão de ganhos de renda, para os proprietários, sob a regência dos últimos, resultando no neoliberalismo. Eles têm dados bastante convincentes para todo o período dos últimos 40 anos acerca da ampliação dos gastos das famílias mais ricas e dos ganhos dos gestores em detrimento da participação dos ganhos dos trabalhadores na riqueza produzida nos Estados Unidos, principalmente. Não é muito diferente da tese que sustenta Piketty (sempre mais ocupado com as questões patrimoniais e que invariavelmente o condiciona apenas para o aspecto distributivo), de que os ganhos dos “supergestores”, como ele os chama, é que sugaram as rendas dos trabalhadores, produzindo uma desigualdade abissal. Existe, como de praxe, polêmica sobre a qualidade dos dados que sustentam isso (Kliman questiona essa tese aqui https://www.truthdig.com/articles/were-top-corporate-executives-really-hogging-workers-wages/ e aqui <https://www.truthdig.com/articles/are-corporations-really-hogging-workers-wages/>) além de outras questões.

Embora a propositura se angule precisamente pelo aspecto dos ganhos e isso explicite questões importantes do modo como grupos sociais se apropriam de parte da riqueza total, há um problema de fundo que precisa ser considerado. Com relação à “classe” propriamente dos gestores, estudos ainda precisam ser mais aprofundados em diversas direções. Uma delas é a gênese. Há um problema aqui que Marx entreviu muito bem já na década de 1860. A questão vai bem mais longe (cf. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/cadernosebape/article/view/38853/37598) e carece ainda de maior esforço científico. Então vou chamar a atenção apenas para questões fundamentais ainda que de modo superficial.

Quando falamos em capital e força de trabalho como categorias econômicas é preciso levar em conta as suas personificações portadoras e as funções que desempenham. Dado o caráter antagônico da produção de mercadorias, é função das personificações do capital a maior extração possível de valor. Se essa função é desempenhada pelos capitalistas individuais ou por diretores assalariados só prova que o capitalista individual é dispensável no reino da produção. O processo de acumulação de capital torna cada vez mais difícil a direção dos negócios que se complexificam. Assim, conforme cresce o capital, inclusive em seu aspecto variável, problemas de coordenação precisam de atenção dedicada. Os managers crescem por duas vias: pela contratação de gestores (gerentes intermediários, supervisores etc.) pelos capitalistas que gradativamente se afastam da produção à medida que seu capital aumenta e pela contratação dos antigos proprietários (agora como diretores de cúpula) das fábricas falidas que caem nas mãos dos credores da bancocracia. Marx chegou a dizer que, por essa última via, chegou a se formar um mercado de gestores na Inglaterra do século XIX os quais recebiam salários modestos… Conforme cresce ainda mais a acumulação, mais importante se torna essa nova configuração do trabalhador coletivo assalariado e suas diferentes subdivisões, aumentando o quantitativo dos trabalhos improdutivos frente aos produtivos. O apologético David Ure disse, e Marx endossou, que “os gerentes industriais, e não os capitalistas industriais, são a “alma do nosso sistema industrial” (O capital, livro III). Nessa linha de desenvolvimento, vê-se que a função do capital pode ser repartida entre frações do próprio trabalhador coletivo assalariado. E essa via foi a que Marx pôde acompanhar mais de perto e lhe serviu de fundamento para o debate sobre a típica confusão entre lucro e salário de superintendência na economia política de então.

Outra via, no entanto, dependia do desenvolvimento da primeira, do crescimento ainda maior da acumulação de capital e da maturação do sistema de sociedades anônimas, do crédito e do mercado de capitais, culminando em “remunerações” não tão modestas. Se a primeira caracterizou-se por uma nova configuração do trabalhador coletivo, a segunda expõe uma nova configuração do capitalista coletivo. Parte das funções permanecem com os proprietários e o mercado de ações desenvolvido permite com que surjam personificações do capital que não se identificam como proprietário típico dos meios de produção, percebem altas remunerações e alta participação acionária. (É até curioso como homens do tipo de um Schumpeter possam ter teorizado sobre essas funções e mesmo as ocupado, de modo que seu patrimônio pessoal se vinculava ao destino do banco que dirigia quando este veio à falência). Esses novos diretores que não se constituem pela via anterior estão ligados à trustificação e à bancocracia que a acompanha já no século XX e a separação entre propriedade e controle é apenas uma expressão superficial do processo ao fundo, isto é, a novidade histórica não é o controle cindido da propriedade (coisa já posta, como vimos, na década de 1860), mas um tipo novo de proprietário que também controla. Como fração do capitalista coletivo (e arrisco a dizer que surge como vanguarda em variados momentos), a despossessão direta de meios de produção permite uma dinâmica diferenciada, uma circulação dos gestores na direção de diferentes empresas, sua circulação entre diferentes conselhos administrativos, entre os diferentes setores econômicos e também sua rotação para a estrutura do Estado e dela para os setores produtivo e, sobretudo financeiro.

O que esse processo de gênese e desenvolvimento revelam (embora existam outros elementos importantes a serem considerados com os desdobramentos posteriores durante o século XX) é que a realidade objetiva não permite a confusão entre a alteração das personificações e de suas funções com o surgimento de uma nova classe. A função do capital pode ser repartida entre frações do trabalhador coletivo e do capitalista coletivo sem que, com isso, forme-se uma nova classe fundamental ao lado do capital e do trabalho. Por isso, chamo de gestores do capital essa fração de vanguarda do capitalista coletivo e que ocupa as posições estratégicas na produção e na realização do valor (grande capital produtivo, bancos e empresas de ativos financeiros, fundos de pensão, grandes firmas ligadas à distribuição de mercadorias e setores dominados por bigtechs). Eles rotacionam para a estrutura do Estado e afetam decisões importantes sem deixar de ser “vanguarda dos proprietários” (como disseram Baran e Sweezy). E quando deixam a estrutura do Estado, migram para as empresas financeiras e produtivas quando não fundam suas “consultorias”. Pode-se imaginar as profusas consequências desse movimento, considerando que se trata de uma ampla articulação entre essas posições estratégicas. Uma rápida olhada nos agentes da Goldman Sachs em postos-chave nos governos norte-americanos e indivíduos também do mercado financeiro nos governos petista e pmdbista depois do impedimento é suficiente para identificar a manifestação disso. Esses são os gestores econômicos do capital que rotacionam entre o Estado e setores privados, mas há também os gestores políticos do capital que ocupam posições estratégicas na burocracia estatal sem ser diretamente aquele tipo especial de proprietário no sentido que estamos dando. Mas esse assunto pertence a um momento posterior quando a pesquisa puder avançar.


AC – Pode-se dizer que muitos dos administradores (pessoas graduadas em Administração), embora pertencentes à classe trabalhadora, não só atuam cotidianamente contra os interesses da sua classe, mas também concebem o mundo a partir dos referenciais antagônicos à sua classe? O que você poderia nos dizer dessa relação entre classe e consciência de classe?

EPC - Acho a distinção entre gestores do capital e administradores importante. Os administradores se constituíram por aquela via do crescimento do capital e do afastamento dos capitalistas da atividade direta de gestão de certos aspectos. No geral, são trabalhadores assalariados clivados pela diferenciação entre trabalho produtivo e improdutivo (com dominância do segundo) e fazem parte do trabalhador coletivo. Mas existem variados aspectos outros que afetam o modo como esses homens e mulheres pensam.

Se fosse separar aqui as duas questões fundamentais, diria que a primeira é a prática efetiva que desempenham como personificações do trabalho e que realizam a função do capital. Cria-se a condição de ambiguidades dada a subjetivação daquilo que fazem. No geral, entretanto, me parece que a prática diária que medeia e plasma a objetividade em subjetividade, para usar um modo de expressão de Chasin, lhes diz que não são da classe trabalhadora. A subjetivação primeira tende a ser a de uma posição intermediária entre o trabalho e as “necessidades da empresa” (ou da “organização”, conforme caso), assim mesmo, nessa forma mistificada. Com isso quero dizer que sobre a subjetivação a função do capital convertida em prática prepondera em relação ao pertencimento estrutural de classe. A segunda questão é o ideário circulante, historicamente derivado dessa prática e que também a “contamina”. O imenso volume de ideias que trafegam pelos artigos, livros escolares e mídia especializada já acumulou um leque de tecnologias que condicionam, como momento ideal, a prática efetiva. O próprio caráter tecnológico e apologético lastreado por um utilitarismo atroz e vulgar, portanto, não científico e acrítico, ajuda a constituir uma subjetividade empobrecida em termos de compreensão de realidade, embora compartilhe do destino fático da classe trabalhadora. Agora mesmo, por exemplo, as ameaças com o avanço da inteligência artificial não recaem apenas ao trabalho tipicamente manual, mas também sobre as atividades gerenciais. O rebaixamento de salários é outro exemplo, e se aplica extensivamente embora possa ser sentido de modos diferenciados.

Mas aqui vai um alerta: a questão não se limita a uma identificação de pertencimento de classe. Isso não basta porque não engendra necessariamente uma programática correspondente. Indivíduos comumente se identificam como trabalhadores, mas a expressão diária e no horizonte frequentemente contradiz essa identificação. A consciência de classe, isto é, o reconhecimento da existência estrutural das classes e sua necessária superação, é um produto muito raro e a história tem mostrado isso, de maneira cada vez mais agudizada.


AC – Há um intenso debate, dentro da esquerda, sobre o papel do Estado: enquanto uma fração bem representativa pensa que a tomada do Estado deve ser o grande objetivo da esquerda contemporânea, outra fração vê na tomada do Estado, um desvio em relação aos seus reais objetivos: a tomada dos meios de produção. Qual a sua posição quanto a esse debate?

EPC - Essa é uma questão eminentemente prática. Está embutido um o que fazer mais fácil de programar do que efetivamente realizar dadas as complexas ligações e também os distanciamentos entre territórios da realidade objetiva, sem falar das insuficiências ideológicas e organizativas do contemporâneo. Mas um movimento que se preze revolucionário em nome de uma humanidade emancipada tem a tarefa de atuar precisamente nos pontos nodais, acionando a complexa rede de relações. O que é fácil de dizer, mas difícil de fazer é a integração entre as lutas econômica e política, uma mediando e destravando os obstáculos da outra. Um exemplo é aquela distinção e, ao mesmo tempo, integração, que Marx fez em Salário, Preço e Lucro muito importante entre a “luta de guerrilha”, diária, com relação às condições de trabalho e salários e a luta para a abolição da sociedade baseada no trabalho assalariado, que são de raízes econômicas, mas que podem e devem ganhar expressão política, inclusive porque este último plano possui uma potência de generalização que o plano econômico por si só não tem. Que fique claro: política como forma de dominação e força dissolutora. É uma questão da natureza das coisas e não de mera vontade. Movido por vontade, pode-se gastar muita energia apenas no território econômico ou apenas no político, as conexões ficam sem respostas e os resultados dificilmente corresponderão ao programa. Embora seja difícil de realizar, e o momento histórico coloca ainda mais obstáculos, o resultado deve ser mais promissor pela integração do que pelas opções excludentes que cortam as ligações entre os territórios. A propriedade dos meios de produção e o poder político devem perecer juntos e é difícil imaginar como realizar isso por apenas um dos lados da unidade.


AC – Na sua linha de pesquisa você aborda a questão tecnológica. No que a tecnologia entra como fator preponderante na luta de classes e para a superação do capitalismo?

EPC - Tecnologia é apenas uma expressão das forças produtivas da humanidade. Força produtiva tem a ver com a capacidade materializada na atividade humana e que varia, evidentemente, na história. Tecnologia é, pois, um desses elementos da atividade humana, como meio. Acho que o século XX (e talvez o XXI, mas com especificidades) testemunhou a rixa entre a condenação irracionalista da ordem técnica e a apologética desvairada que supunha a resolução de todos os problemas postos pelo simples avanço técnico. Essas posições, romântica e apologética, sempre andaram lado a lado e assim continuarão até uma mudança significativa das relações sociais. Por que? Porque a mesma sociedade que engendra os aparatos técnicos em meio às contradições historicamente determinadas também engendra essas formas de consciência. Porque a tecnologia tem sua funcionalidade e, portanto, carrega a matriz das relações sociais das quais resulta e no interior das quais opera. A despeito de muita confusão, a tecnologia em seu sentido produtivo - que é o sentido da pesquisa em andamento - não é nem “neutra” nem casulo no qual se encarna um “gênio”. Ela carrega as contraditoriedades das relações sociais, mas não pode ser condenada per si. Para dar um exemplo, houve máquinas que eram projetadas para serem operadas por crianças de 8 anos de idade. É óbvio que, por isso, não são “neutras”; carregam certas marcas de seu tempo e das relações dominantes. Mas ao mesmo tempo as máquinas são meios, expressão da capacidade humana em um ponto bastante superior do desenvolvimento e responde aos imperativos postos em determinado momento; quer dizer, não são os meios em si o problema. Marx já tinha resolvido essa questão em 1848, no texto Trabalho assalariado e capital, e repete depois nos textos econômicos a partir de 1857. A síntese da resolução dele, e é espantoso como somos obrigados a repetir no século XXI, é que uma máquina, por exemplo, só se torna capital no interior de relações capitalistas de produção. Por quê? Porque cumpre uma função específica no interior dessa relação. À medida que os meios passados são alterados pelas novas relações de produção e como estas criam novos meios e são afetadas por eles é uma discussão da maior importância.

Essa é uma discussão de longe dominada pelos “evolucionistas” por derivação das ideias de Schumpeter, pois é nessa tradição que há uma marcante tendência em apreender a preponderância do que chamam de mudança do “paradigma tecnológico” e a “crise de adaptação” decorrente dos grandes saltos tecnológicos. A literatura marxista trata disso com a importância que tem e sem dedicar um foco especial pela razão de que não há, pelo menos no melhor dessa literatura, uma mistificação da tecnologia como em outras tradições. Por exemplo, quando digo que o avanço técnico pode engendrar desemprego estou falando de um nível da realidade que não é ilusório, mas é um nível mais superficial em que a tecnologia aparece mistificada. Não é o avanço técnico que resulta em desemprego, mas a funcionalidade da tecnologia no interior das relações capitalistas de produção. Os marginalistas nunca poderão entender isso. Estão sempre com a palavra pronta para lançar que se o fim da produção é a satisfação de necessidades, logo esse também é o fim do avanço tecnológico ou da inovação, como preferem. Podem e estão enganados duplamente. Mills ficou surpreso no século XIX com o fato de que a maquinaria empregada não tornou melhores as condições de trabalho do operariado. Marx mesmo já tinha corrigido o mal-entendido: a introdução da maquinaria não visa a melhoria das condições dos operários, menos ainda a satisfação de necessidades humanas. Como capital, sua função é tornar o trabalho socialmente necessário cada vez mais desnecessário, não apenas quantitativamente, mas também no sentido da desvalorização da mercadoria força de trabalho (forçando seu preço para baixo). Já apontamos antes isso aqui na entrevista, a respeito da acumulação e dos investimentos em capital constante e não precisamos voltar a isso.

A questão é que o avanço que marca os grandes saltos tem potência para criar efeitos sociais ainda não totalmente revelados. Essa é uma fonte de preocupação inclusive, como já vimos, entre as personificações diretas do capital e seus ideólogos. Mas eu não diria que a tecnologia tem preponderância na luta de classes. Há sempre uma relação histórica em que o acirramento dessa luta pressiona na direção da introdução de novos meios de produção que diminuam a dependência de trabalho e novos modos de organizar a produção como resposta social ao ciclo de acumulação e aos conflitos provenientes que, por sua vez, também afetam esse acirramento por mediação dos efeitos que ocasionam. Então ela mesma não é mediação de superação do capital. Há razões para considerar a hipótese, aparentemente paradoxal e que contradiz o senso comum, de que a velocidade efetiva desses avanços poderia ser aumentada se não fosse o próprio capital. É possível que um avanço efetivo no sentido das necessidades humanas encontre barreiras no próprio capital, mas não significa que não se possa encetar, como parece estar ocorrendo agora em esboço, um movimento promotor de um novo salto tecnológico. O capital perdeu há muito sua força civilizadora, mas a alta tecnologia não parece ter encontrado beco sem saída. É uma das contradições fundamentais do capitalismo que ainda é surpreendente: produzir maravilhas e barbárie ao mesmo tempo. Tomar consciência dessa contradição e resolvê-la, como disse Marx, é o que prepondera. Afinal, quem faz a história?



Agradecemos o professor Dr. Elcemir Paço Cunha pela gentil entrevista e disposição para esta plataforma de crítica e reflexão!

Wesley Sousa

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