Elcemir Paço Cunha possui graduação em
Administração de empresas pela Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ);
Mestrado pela mesma área na Universidade Federal de Lavras (UFLA); Doutorado em
Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil (UFMG) – 2010.
É professor adjunto IV da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Tem
dedicado esforços para estudar acumulação de capital, tecnologia e organização
do trabalho, além da administração como ideologia
AC
– Muito tem se falado sobre como a
gestão de Lula e Dilma teria gerado uma crise política, e esta, por sua vez,
teria desencadeado a atual crise econômica. Você concorda com isto: a crise
política é a causa da crise econômica brasileira?
EPC:
Embora exista, de longa data, registros de "crises políticas" e quem,
como se sabe, enfatizasse a chamada "crise de hegemonia", e ainda que
o efeito de uma "crise política" sobre a economia não possa ser
descartado de princípio, não me parece que seja o caso explicativo dos
processos que marcam época na história recente da particularidade brasileira.
Não me parece, entretanto, que se possa também ignorar a movimentação política
de 2002 em diante selada numa "pactuação funcional", ao menos até a
data em que sua validade foi ultrapassada.
A
questão é apreender as condições objetivas que garantiram a durabilidade dessa
"pactuação" entre setores do grande ao pequeno capital e demandas
populares ministradas a conta gotas, tudo isso sob a tutela dos segmentos
financeirizados. Uma economia subordinada como a brasileira tem uma grande
dependência do mercado internacional de commodities. Um boom dos preços nesse mercado foi uma alavanca poderosa para o
contraste entre o final dos anos de 1990, marcado pelas políticas internas
privatistas e pelos efeitos da crise do leste asiático - e um pouco depois pela
bolha das chamadas dotcom -, e os
anos seguintes de ascenso da economia mundial. O enfraquecimento desse episódio
do mercado de commodities já a partir do segundo mandato do governo petista
redundou na aposta de expansão do consumo do mercado interno de bens como
automóveis e eletrodomésticos em geral dominados, como se sabe, pelo capital
produtivo internacional. Endividamento familiar e desonerações fiscais como
linha geral tomam direção nesse período e sofre intensificação durante o
primeiro mandato de Dilma Rousseff. Sobretudo as desonerações e outras medidas
do mesmo calibre, parcimoniosas com o grande capital, não cessaram após o
impedimento. É a linha mestra suprapartidária que todos os grupos no poder
político no capitalismo precisam assumir para prestar contas ao único patrão
que conhecem.
Junto
ao enfraquecimento do mercado de commodities sobrevém um processo de amplo
endividamento das empresas que se explicita ainda mais pela virada na tendência
das taxas médias de lucro a partir dos anos de 2007, como chama a atenção do
trabalho de Marquetti e colaboradores. De 2010 em diante, é constante o alerta
nos principais jornais brasileiros - sobretudo nos que os proprietários e seus
gestores dialogam - sobre o recuo dos lucros, acusando o nível dos salários
como principal fator negativo à rentabilidade e que afetava não apenas o setor
produtivo, mas também a bancocracia. Em suma, atingia todo o capitalista
coletivo, todas as suas frações associadas. Isso é que explica, de fato, a
contestação que daí em diante se fortalece, faz surgir "patos amarelos
gigantes" e esfacela a "pactuação" que, não mais funcional,
demandou subterfúgios políticos como meio de garantir expediente que revertesse
a tendência. Não é que não se vinha sinalizando tal expediente marcadamente
expresso nas possibilidades das reformas, mas o juízo prevalecente, me parece,
foi de que o tempo necessário para tais expedientes era infinitamente menor do
que a capacidade política então posta. Era preciso uma mudança rápida,
iniciando uma nova aventura das elites...
Uma
análise de realidade de qualquer indivíduo portador de uma relativa isenção
subjetiva não poderia apontar para uma suposta "crise fabricada" ou
mera manobra política, nem que as condições econômicas foram revertidas
inteiramente pela simples mudança política. O politicismo é, como se vê a olhos
nus, suprapartidário. Houve, de fato, manobra política, mas o gatilho foi a
virada nas tendências gerais a partir de 2007, não por acaso período da bolha
das subprimes que afetou todo o
globo, inclusive os maiores importadores das commodities brasileiras. E,
adicionalmente, os sinais de reconversão após a mudança política não parecem
tão animadores quanto membros do governo e seus adjuntos midiáticos fazem crer.
Fosse
um problema meramente político, a simples mudança ocorrida teria tornado relativamente
desnecessárias medidas mais agressivas por parte da coligação - mais sem
disfarces do que a anterior - que agora domina. A prova cabal de que o problema
causal passa pelas condições econômicas do período é que o expediente
intensificado com a reforma trabalhista não visa outra coisa senão criar
condições para uma maior exploração econômica do trabalho por via da redução
dos níveis de salário que eram então crescentes, pelo menos desde o início dos
anos 2000 (acompanhada inclusive de tendências de redução da jornada de
trabalho que remonta a 1988). O desemprego já é uma alavanca poderosa para
rebaixar salários, mas a "modernização trabalhista" acelera esse
rebaixamento que supostamente permitirá uma guinada na tendência declinante da
taxa de lucro.
Em
suma, as condições objetivas que permitiram a duração que teve a pactuação
funcional não poderiam continuar para sempre, e não continuaram mesmo. É isso
que explica porque os aliados foram engrossando a campanha anti-petista.
Existem outros elementos, sem dúvidas, mas este é essencial.
De
toda forma, é preciso registrar que reconhecer o gatilho econômico não é
sinônimo de economicismo, assim como reconhecer o peso político não é sinônimo
de politicismo. Como irmãos gêmeos, economicismo e politicismo são mancos. O
território político é heterogêneo ao econômico, mas não é autônomo e nem pode
simplesmente ignorar as condições objetivas pela força da vontade. Ao mesmo
tempo, não é um reflexo imediato e direto exatamente porque é heterogêneo e
responde contingencialmente e com tempo variado às condições reais que formam
sua base. Esse é um alerta importante porque muitos podem ser constrangidos em
apontar o lugar prioritário das condições objetivas em razão da pecha de
economicista que os politólogos profissionais e de ocasião possam atribuir. A
palavra final, no entanto, é da própria realidade material.
AC
– Um importante intelectual da tradição
marxista, István Mészáros, afirma que o capitalismo entrou numa “crise
estrutural” a partir da década de 1970. Você concorda com esse diagnóstico?
EPC
- Esse é um tema muito difícil. Mészáros teve boas razões para afirmar o que
afirmou durante praticamente todo o período de grande atividade intelectual. No
final dos anos de 1960, grande parte da intelectualidade particularmente europeia
(Lucien Goldman, Herbert Marcuse etc.) se viu condicionada a afirmar que a era
das crises do capitalismo havia terminado. No lugar de capitalismo marcado por
crises, teria surgido depois da Segunda Guerra Mundial um “capitalismo organizado”
que integrou a classe trabalhadora por meio do consumo principalmente e que
criou mecanismos anticíclicos os quais garantiriam desenvolvimento sem
precedentes. Germinava aí um grande pessimismo dessa intelectualidade com
respeito às possibilidades de transformação social… Não é por menos que
Mészáros insistiu durante toda a vida que uma coisa é integrar indivíduos
contingencialmente e outra é a relação estrutural de dependência entre as
classes que fórmula econômico-social alguma é capaz de eliminar sobre uma base
capitalista de produção. Nessa mesma toada e contra o ambiente intelectual de
então, afirmou que a ideia de um capitalismo sem crises perdia qualquer sentido
com uma análise mais apurada (pois havia sinais a partir do início dos anos de 1960)
e que as medidas de administração das crises e do próprio sistema tinham
limites os quais já estavam em acionamento no início da década de 1970.
Mészáros já sustentava nessa época uma “novidade histórica”, algo que só passou
a existir a partir daquele momento, segundo ele. Diferentemente do período
histórico anterior, no qual prevaleceu crises recorrentemente cíclicas e até
com certa periodicidade, insistia Mészáros, a crise que se armou a partir de
meados dos anos de 1960 é “estrutural” e “permanente”, em seus próprios termos,
por acionar os limites absolutos do sistema. As alternativas de deslocamento
das contradições estavam bastante limitadas, assim como o subterfúgio estatal
para encetar processo de acumulação de capital. A crise é “estrutural”, portanto,
em sua amplitude e profundidade, marcando dali em diante um caráter
“rastejante” e cada vez mais potencialmente explosiva precisamente porque os
limites absolutos do sistema já estavam estrangulados.
Para
ser justo, o aspecto catastrófico frequentemente aludido como parte integrante
das ideias do autor é componente de seu modo expositivo que nutria intento
exortativo da prática política. Isso explica grande parte da adjetivação
“destrutiva” que seus lineamentos mantinham a respeito do assunto. Para ser
justo ainda, a soma dos textos de Mészáros revela certa ambivalência com
respeito à capacidade ou não do capital de se expandir a ponto de o autor
classificar a “crise estrutural” de “mais ou menos permanente”. Em 1971
atribuía a “crise estrutural” a uma decadência radical das taxas de lucro. Anos
mais tarde o autor modificou sua proposição básica denunciando o que chamou de
“taxa decrescente de utilização”. Adicionou posteriormente outros elementos
(como a tendência de nivelamento das “taxas diferenciais de exploração”),
sugerindo em entrevistas posteriores uma articulação orgânica entre todos esses
elementos explicativos das condições do capitalismo típico de “crise
rastejante”, embora não tenha podido retomar essas questões de modo mais
sistemático, optando por tratar da questão do Estado nos últimos anos de vida.
Esse
comentário é importante para dar conta em linhas muito gerais da propositura
básica do autor e para evitar mal-entendidos. E a pertinência da questão sobre
a “crise estrutural” está em determinar se existem crises permanentes. É uma
questão muito difícil. Ela só pode ser respondida positivamente ante festum. Engels por volta do ano de
1886, se não me engano, quando Marx já havia falecido, afirmou que estavam
entrando em uma crise permanente. Mas veio a Belle Époque depois da transição para o século XX e que mudou as
tendências de baixa, inclusive na lucratividade, das últimas décadas do século
XIX. Grossman viu uma crise permanente após o longo período iniciado em 1929 e
que culminou na Segunda Guerra Mundial. Então o pós-guerra produziu um período
de grande desenvolvimento, pelo menos até o final dos anos de 1960 quando,
novamente, surge a perspectiva de uma nova crise permanente, dessa vez a verdadeira “crise mais ou menos
permanente”. Não estou dizendo que as circunstâncias de 1970 para cá não sejam
de fato “rastejantes” em vários aspectos, produzindo curtos surtos de
desenvolvimento, seguidos de bolhas financeiras. Quero dizer que só é possível
afirmar uma crise permanente enquanto sua permanência dure, por assim dizer.
Acredito que no caso prevalece a ponderação de que apenas post festum se tem a posição objetiva mais adequada ao entendimento
do movimento embora seja sempre possível apreender as grandes tendências. Por
isso, ainda prefiro a colocação de Marx nas Teorias
da mais-valia (Tomo II. São Paulo: Difel, 1980). Ele foi bastante enfático
ao dizer que “não há crises permanentes” (p. 932) e que as crises gerais são possibilidades inscritas nas próprias
contradições por meio das quais o capital se movimenta, superando e criando
novos empecilhos de modo que o próprio capital vai se consolidando como um
obstáculo à produção. As crises se manifestam como “ajuste à força” do ciclo
unitário entre produção (criação do mais-valor) e realização (circulação e
consumo). Esse é, portando, seu funcionamento normal e não explicita uma fase
terminal ou coisa assemelhada. Por isso não podemos tomar a forma expositiva de
Mészáros por seu conteúdo. Ainda que ambivalente quanto às possibilidades de um
novo ciclo de acumulação, o aspecto catastrófico pertence ao tom exortativo do
autor e não ao conteúdo objetivo dos processos que foi capaz de apontar contra
o ambiente intelectual, como eu disse, do final dos anos de 1960.
Então,
assumindo o lado da ponderação, parece mais correspondente a abertura ao exame
dos processos correntes. O próprio Mészáros, por mais que seja monumental o
esforço em escrever Para além do capital -
texto, aliás, de compilação de materiais de diferentes períodos intelectuais do
autor, o que ajuda a explicar certa ambivalência -, manteve-se num nível de
abstração que deixava em segundo plano as exigências de uma rigorosa
investigação probante. O caráter “rastejante” não me parece ter sido
satisfatoriamente explicado pela simples afirmação de que as diferentes taxas e
tendências se articulam sem efetivamente demonstrar tal articulação e os
resultados que produz.
Ainda
do lado da ponderação, devemos investigar as condições não atingidas para
reversão das tendências declinantes das taxas médias de lucro como um dos
indicativos mais fortes do conteúdo “rastejante” que Mészáros pretendia
apontar. Ao investigar tais condições, devemos igualmente perguntar pelas
possibilidades postas ou em vias de se efetivarem para um “escape relativo”,
como dizia Chasin, frente à lógica do valor de reduzir ao máximo, sem eliminar,
o tempo de trabalho necessário. Temos que perguntar pela função dos setores
financeiros e das novas tecnologias dos variados tipos nesse processo.
Precisamos desenvolver pesquisa concreta, matrizada na realidade sem recuar
frente a necessidade de elementos probantes. São questões do nosso tempo...
AC
– Quais são as principais estratégias
que a burguesia tem adotado, visando a retirada da economia mundial da longa
estagnação de 1970 em diante? Como a burguesia brasileira está se posicionando
nesse processo?
EPC
- Penso que podemos estabelecer três ordens de coisas no geral, mas é sempre
difícil permanecer nesse nível porque as particularidades podem inclusive
contradizer variados aspectos. Então o que vou dizer são coisas que não
refletem inteiramente aspectos específicos.
Como
dito antes, um dos indicativos de peso para a análise do processo de crise e
que permite apontar para uma longa estagnação é a taxa média de lucro. É algo,
no entanto, que exige prudência. Sou adepto da posição de que não existe uma
“teoria das crises” em Marx. Por um lado, como Marx mesmo dizia (Teorias da
mais-valia, Tomo II), as crises são o “fenômeno mais intrincado da produção
capitalista” (Marx, 1980, p. 937). Essas “crises do mercado mundial têm de ser
concebidas como a convergência real e o ajuste à força de todas as contradições
da economia burguesa” e é preciso destacar os “diversos fatores que convergem
nessas crises” (Marx, 1980, p. 945). Destaco o “fenômeno mais intrincado” e os
“diversos fatores que convergem” quando a possibilidade se converte em
efetividade. Seria mais simples atribuir à taxa declinante de lucro. Há, no
entanto, “diversos fatores que convergem” e não há razões para supor que em
todos os casos sejam sempre os mesmos fatores. Este é o ângulo que, claro, não
tira o peso da taxa declinante uma vez que ela condiciona a direção e o nível
do investimento produtivo, que por sua vez afeta a acumulação de capital e
assim por diante. Por outro lado, é sempre importante dizer que a taxa
declinante é uma tendência que se efetiva ou não dado o jogo de forças e fatores
que convergem ou não para o resultado. Já foram utilizadas muitas metáforas e
analogias para lidar com isso, mas todas são, por natureza, insatisfatórias.
Não há outra maneira de apreender a coisa senão por aquilo que ela é: um
complexo de determinações, isto é, nexos objetivos acionados pela ação dos
homens no interior e por meio de suas relações com resultados adversos, dada a
lógica fundamental que os domina e cujo modo de manifestação mais geral é o
embate de tendências e contratendências em que o efeito é contingente e afeta
todo o movimento, modificando em graus variados as próprias determinações.
Feita
a ressalva, mais importante do que teorizar a esse respeito é o conteúdo dos
materiais que confirmam uma declinante taxa de lucratividade a partir de 1965,
cujo patamar nunca mais fora alcançado nas décadas seguintes. Enquanto os
ideólogos internacionais estão mais preocupados em rebater os dados de Piketty
(O capital no século XXI), digamos,
num novo episódio das aventuras da apologética sem disfarce (porque
convenhamos, o economista francês usa disfarces), há pouca resposta quanto ao
problema da lucratividade. O apelo geral com respeito à desigualdade é
certamente mais forte, mas pouco explicativo porquanto seja efeito, com
impactos importantes, mas efeito. A taxa média de lucro explicita aspectos
ligados às contradições por quais se move o capital. E é relativamente difícil
para a imaginação dos ideólogos a possibilidade de que a perseguição dos
interesses dos capitais particulares poderia produzir efeito contrário ao
pretendido. Quero dizer que todos os capitais individuais concorrem para
ampliar o lucro singular e, ao mesmo tempo, pode
resultar num nivelamento para baixo das taxas médias de lucro. Não vou
abrir aqui esse problema, pois nos levaria muito longe e existem materiais
suficientemente claros sobre esse problema em autores como Kliman, Roberts,
Maito, Duménil, Lévy, para citar alguns. O que quero é apenas ressaltar que de
fato há elementos suficientemente probantes (assim como Piketty sobre a
desigualdade) para determinar a efetivação da tendência da taxa que se recupera
em espasmos curtos apenas, e sempre abaixo dos níveis anteriores a 1970, para
terminar em bolhas financeiras já citadas en
passant. E que a desigualdade é a outra face de uma mesma moeda, porque,
assim como a taxa média de lucro, resulta do processo de acumulação do capital.
Para
efeito de clareza, permita-me ficar com a seguinte síntese. Acumulação não é
entesouramento, mas volume crescente da massa de valor do capital constante
(maquinaria, instrumentos etc.) e do capital variável (força de trabalho). Para
aumentar a produtividade e reter um volume maior do mais-valor produzido do que
seus concorrentes, cada capital individual, visando ampliar o retorno sobre o
capital total investido, incrementa cada vez mais a parte do capital constante
uma vez que produtividade é resultante do quantum maior dos meios de produção
movimentado por um quantum menor de força de trabalho. Há, aí, os dois efeitos
ligados em condições de impedimento da capacidade de ampliação da exploração
econômica do trabalho. De um lado, com o aumento do valor do capital constante
requer-se cada vez maior volume de capital em capital constante para ampliar a
produtividade e isso pressiona as taxas de lucro por conta da simples relação:
p = S/c+v; S = m/v; p = m/c+1
onde:
p,
taxa de lucro
S,
taxa de exploração do trabalho ou taxa de mais-valor
C,
capital constante
V,
capital variável ou trabalho pago
c
+v, capital total
m,
trabalho excedente ou trabalho não pago
Vê-se
que nas circunstâncias de estagnação ou baixa aceleração do crescimento de S, a
taxa de lucro tende a cair com a ampliação do valor da massa de capital
constante. Então não é que a exploração não possa aumentar por via, por
exemplo, da intensificação do processo de trabalho repercutindo em melhor
relação entre volume de produção e força de trabalho. Basta que ela não cresça
na mesma velocidade da acumulação de capital constante para que a taxa de
lucratividade tenha tendência negativa, considerando que existem as
contratendências que minoram ou mesmo eliminam seus efeitos. Na lógica interna,
a alavanca principal de uma contratendência, como se vê, é a própria tendência
e velocidade de crescimento da taxa de exploração (os capítulos 13, 14 e 15 do
livro III de O capital têm detalhes sobre essa e outras contratendências).
Do
outro lado, a expansão da acumulação tem o sentido de diminuir sempre mais e ao
limite a participação do trabalho vivo embora ele permaneça necessário. Seja em
tempo de prosperidade ou de crise, a produção aumenta relativamente menos a
massa de capital variável e essa diferença é suficiente para pressionar ou ao
menos sempre manter existente uma superpopulação relativa que transita para
“dentro” e para “fora” da produção. Em períodos de prosperidade essa massa
diminui, os salários são pressionados para cima. Em períodos de declínio essa
massa aumenta e os salários são pressionados para baixo. Os salários oscilam
nesse limite de reprodução do capital e nunca a ameaça seriamente porque conta
com o próprio mecanismo das crises para rebaixar salários antes ou depois de
uma resposta política no plano jurídico da regulação do mercado de trabalho.
É
preciso que fique claro como a circunstância do comportamento da taxa pesa
muito mais nas decisões dos gestores do capital sobre o investimento de parte
dos lucros retidos do que os níveis de desigualdade embora não se discuta tão
acaloradamente a primeira como a segunda variável. Ao menos o problema da
desigualdade não surge no primeiro plano das preocupações dos gestores
econômicos do capital. Essa tarefa é comumente atribuição dos gestores
políticos do capital nessa divisão de trabalho: produção e administração da
pobreza.
Então
é possível condensar as respostas (“as principais estratégias que a burguesia
tem adotado, visando a retirada da economia mundial da longa estagnação de
1970”) tanto no plano imediatamente econômico quanto mediatamente no político,
pressupondo sempre existentes as reciprocidades: 1. inovação tecnológica; 2.
renda/serviço universal; 3. desregulamentação do mercado de trabalho. Digo isso
a partir dos debates que são possíveis de acompanhar nos diferentes pontos em
que proprietários, gestores do capital e seus ideólogos dialogam. Isso vale
também para institutos como FMI e igualmente para os mais localizados como a
Confederação Nacional da Indústria (CNI) no Brasil. Claro que isso varia, como
já alertei. No Brasil, por exemplo, o assunto de renda universal não surge no
horizonte de qualquer discussão atual embora Suplicy tenha defendido o
expediente pelo menos desde a década de 1990, se não me falha a memória. A
mídia nacional também é blindada para essa discussão, diferentemente da
inglesa, por exemplo. Mas isso porque o horizonte no Brasil é o da espoliação
mais rápida possível por via da desregulamentação do mercado de trabalho uma
vez que os efeitos do salto tecnológico entrevistos estão mais distantes do que
nas economias centrais nas quais a aplicação de robôs, por exemplo, excede em
muito o realizado nos países economicamente subordinados (de maneira que nos
países centrais, fala-se também em imposto sobre emprego de robôs, para se ter
uma ideia). Então, para responder aos imperativos postos, convergem os maciços
investimentos públicos e privados na assim chamada quarta revolução industrial.
Se esse movimento de capitais redundará num “escape relativo” da lei do valor
ao encetar um novo ciclo de acumulação, se haverá chance de bolhas em razão de
valorização súbita das empresas dos setores de robótica, computação e
inteligência artificial ou se fará despencar ainda mais as taxas de lucro só o
tempo poderá dizer. Aqui, como antes, a prudência do post festum é a melhor posição. Mas há rixa entre os apologéticos e
os alarmistas (os segundos assim designados pelos primeiros). Os primeiros,
apologéticos sem disfarce, apostam na solução de todos os problemas pelo simples
avanço tecnológico; nada aprenderam com a história e continuam, por herança do
marginalismo, na cantilena de que o progresso técnico visa a ampliação da
satisfação das necessidades. Os segundos, mais cautelosos (e não por isso menos
apologético porque indiretos; alguns quase abraçam o irracionalismo), antecipam
um contexto de grande desemprego mundial, agravando as circunstâncias da
desigualdade social já posta. Esse debate circula inclusive nos jornais de
grande audiência, principalmente europeus. Frente a esse alarme é que se fala
em renda universal ou serviço universal, numa tentativa de ressuscitar as já
conhecidas formas de administração da pobreza. Há inclusive “testes” em
processo no Canadá, Estados Unidos, Finlândia e em outros países que fazem
lembrar o detestado “Bolsa Família”. Nesse sentido, como medidas casadas, o
forte investimento nas principais economias mundiais (Alemanha, China, Estados
Unidos e Japão) na chamada quarta revolução industrial e as experiências para
determinar um modelo prevalecente de resposta para o problema social atacam nas
duas frentes, na produção e na realização do valor. Por fim, mas não menos
importante, a recente desregulamentação do mercado de trabalho na Alemanha,
Brasil, Espanha, França etc., sobretudo depois de 2008, demonstra a volúpia
para pressionar para baixo os ganhos do trabalho. Nos países centrais a
participação do trabalho na renda nacional mostra forte tendência de queda a
partir dos anos 2001 e despenca depois da crise dos subprimes de 2007 (https://www.bloomberg.com/view/articles/2017-09-20/why-workers-are-losing-to-capitalists). É um expediente levado adiante por meios
políticos, mas que respondem aos anseios dos proprietários, gestores e
ideólogos em geral. Um mercado desregulamentado ou “modernizado” permite
inclusive uma acomodação mais rápida aos postos de trabalho sobrantes e cada
vez mais precarizados. Nos Estados Unidos os dados não mentem e deixam os
analistas sem respostas, pois o desemprego caiu para abaixo de 5% embora não se
tenha notícia de níveis salariais tão baixos. É o mesmo tipo de embaraço quando
precisam assumir que ninguém tem uma boa explicação para o fato de que a partir
de 1960 só aumentou sem nunca recuar a diferença entre a produtividade do
trabalho e seu pagamento (https://www.bloomberg.com/view/articles/2017-12-04/workers-get-nothing-when-they-produce-more-wrong); o fato de os analistas não terem boas
explicações não significa que elas não existam... E das circunstâncias
problemáticas do mercado de trabalho, nem mesmo a “aristocracia operária”, para
usar uma expressão de Lênin, escapa. Mas mesmo essa “aristocracia” é menor do
que se supunha, pois a sindicalização em progresso no Vale do Silício, por
exemplo, e as inúmeras denúncias trabalhistas no setor de alta tecnologia
(Google, Uber, Tesla etc.) demonstram que abundou “ficção sem fantasia”,
arrastando considerável parte da juventude instruída atrás das falsas promessas
de trabalho autodeterminado e emancipado simplesmente porque está ligado a alta
tecnologia. E as promessas continuam com outra roupagem: empreendedorismo e startups. Dão nomes à geração (y, millennials), o que facilita em muito o
diálogo para sua manipulação gerencial.
No
Brasil em particular, existem elementos na direção da chamada quarta revolução
industrial. Mas o nível é, evidentemente, muito aquém do que se passa no
quadrúpede tecnológico do mundo (Alemanha, China, Estados Unidos e Japão,
seguidos não de muito longe pela Índia). Enquanto jorra dinheiro público e
privado para esse poço nos países centrais, o empresariado nacional vem sendo
organizado pela CNI em excursões para os Estados Unidos, tentando projetar no
Brasil, a partir da experiência norte-americana, um ambiente institucional para
ingressar na quarta revolução industrial. Convidado atrasado para as festas
ressente-se da baixa “cultura da inovação” e promove eventos de
conscientização. É a velha miséria reposta em patamares diferenciados de
associação ao capital internacional, pois nem de “burguesia nacional” poderia
ser chamada. As tendências que chegam mais rapidamente estão embutidas em
algumas multinacionais, como o caso da Siemens e sua produção “digitalizada”.
Outras, como as do setor automobilístico, mantém laboratórios dedicados à
inovação que parecem muito mais atender a exigências legais do que a uma
estratégia efetiva. De toda forma, são expressões do capital internacional.
Nesse sentido, o expediente corrente no Brasil como resposta à queda drástica
da taxa de lucro a partir de 2007 e agravada muitíssimo a partir de 2010 (junto
ao endividamento crescente, mesmo diante das extraordinárias desonerações
fiscais que ultrapassaram a soma dos trilhões de reais) é a destruição dos
entraves que limitam de certa forma a exploração econômica do trabalho, seja
por intensificação por ampliação da jornada de trabalho indiretamente ou por
rebaixamento direto dos salários (terceirizações, trabalho intermitente etc.).
As consequências econômicas de curto prazo já aparecem em uma reconversão ainda
modesta das empresas, acompanhada por taxas mais altas de desemprego que, como
vimos, engrossam a superpopulação e pressiona os salários para baixo.
AC
– Muitos teóricos, inclusive ligados à
tradição anarquista e marxista, afirmam que, desde os tempos de Marx, uma nova
classe social teria se formado: a classe dos gestores. Essa classe, além de
responsável pela condução direta dos negócios da burguesia, estaria também
intimamente ligada com a formação da burocracia estatal contemporânea. Em sua
opinião, o surgimento da classe dos gestores é uma invenção do capitalismo no
século XX e que, portanto, não havia sido prevista por Marx?
EPC
- Sem entrar nos registros históricos mais longínquos (como Saint-Simon e
Alfred Marshall), há uma linha que vai de Berle e Means da década de 1930 à
“mão visível” de Chandler durante as últimas décadas do século XX, enfatizando
o “administrador profissional”, o “gerente assalariado”, em razão das
modificações das relações de propriedade e controle dos grandes negócios. Há
muitos outros autores no meio disso, como o sociólogo Mills e o economista
Galbraith, por exemplo, e muitas ramificações, algumas mais explícitas do que
outras em apontar o surgimento de uma assim chamada “nova classe dirigente” (há
o ideólogo Drucker que só não é explícito porque se recusa a reconhecer que
existam classes nos Estados Unidos por ser, segundo ele e a enquete de opinião
da Forbes na qual se baseia - feita com um punhado de transeuntes -, uma
“sociedade de classe média”. As exigências da lógica elementar são ignoradas no
caso, pois a existência do termo médio
torna necessária a presença dos demais termos polares. É uma exigência básica
que o apologista precisa recusar a qualquer custo para defender sua frágil
proposição). Há uma outra linha que se desenvolve com a crítica ao regime
soviético de partido único burocratizado, para usar o diapasão frequente, e que
também ganha muitas ramificações. Uma delas começa com Rizzi e a tese de que a
burocracia de Estado do tipo soviético dominaria o mundo, passa pela revolução
gerencial de Burnham (acusado confesso de plagiar seu camarada Rizzi) e pelos
desvarios de Milovan Djilas (em A nova
classe e Além da nova classe,
livros amplamente financiados por interesses ocidentais), alcança Rudolf Bahro
e os teóricos da tecnocracia dos anos de 1970 em diante. Ambas as vias alcançam
países lusófonos, como Portugal e Brasil, e encontram força em nomes como
Carlos Estevam Martins, Fernando Prestes Motta, João Bernardo, Luiz Carlos
Bresser-Pereira, Maurício Tragtenberg para citar alguns. Há ramificações, como
dito, e muitos outros autores. O mote não é tanto a separação entre propriedade
e controle, como na primeira linha, mas a dominância do aparato “técnico-burocrático”,
como classe, sobre a “sociedade”. Houve quem sustentasse o fim do capitalismo e
a constituição de um modo de produção tecnocrático, como os citados Martins e Bresser-Pereira,
no qual regia uma “nova classe” dos gestores.
Há
nomes mais contemporâneos que sustentam essa tese em um tipo de mistura de
elementos dessas linhas e com diálogo com a tradição marxista. Duménil e Lévy
merecem atenção precisamente por se ligarem às discussões candentes da longa estagnação
desde os anos de 1970. Reverberam certa matriz francesa ocupada com o processo
de financeirização e tendem a identificar inadvertidamente capital com finanças
(assim como Piketty que identifica capital com patrimônio), deixando um pouco
de lado o capital produtivo e o problema do valor. Não obstante, Duménil e Lévy
- em A crise do neoliberalismo -
consideram que os processos do início do século XX produziram, entre outras
coisas, uma nova divisão de classes sociais. Eles chamam essa configuração de
modelo tripolar que se sustenta na descrição de três classes essenciais: os
proprietários, os gestores e os populares. Os primeiros, como o nome diz, são
proprietários de ativos patrimoniais e financeiros, formando, com este último
aspecto, os grandes blocos controladores de participações acionárias. Mas a
ênfase da dupla é sobre os recursos patrimoniais quando toca diretamente nessa
descrição. Os últimos se constituem de trabalhadores em geral, parte da classe
média e da pequena burguesia. O destaque fica com a classe dos gestores da
esfera pública e da esfera privada, sobretudo os gestores das grandes
corporações produtivas, bancos e fundos de pensão, com ênfase para os dois
últimos. A partir dessa configuração, os autores franceses estabelecem análises
das alianças históricas e contemporâneas, sugerindo que uma determinada forma
de articulação proporciona uma direção específica com efeitos claros sobre a
dinâmica econômica. Enquanto, por exemplo, o período do pós-guerra foi dominado
por uma articulação entre os gestores e as classes populares, sob-regência dos
primeiros, que redundou no estado de bem-estar social, a partir de 1970 os
gestores penderam, em razão de ganhos de renda, para os proprietários, sob a
regência dos últimos, resultando no neoliberalismo. Eles têm dados bastante
convincentes para todo o período dos últimos 40 anos acerca da ampliação dos
gastos das famílias mais ricas e dos ganhos dos gestores em detrimento da
participação dos ganhos dos trabalhadores na riqueza produzida nos Estados Unidos,
principalmente. Não é muito diferente da tese que sustenta Piketty (sempre mais
ocupado com as questões patrimoniais e que invariavelmente o condiciona apenas
para o aspecto distributivo), de que os ganhos dos “supergestores”, como ele os
chama, é que sugaram as rendas dos trabalhadores, produzindo uma desigualdade
abissal. Existe, como de praxe, polêmica sobre a qualidade dos dados que
sustentam isso (Kliman questiona essa tese aqui https://www.truthdig.com/articles/were-top-corporate-executives-really-hogging-workers-wages/ e aqui <https://www.truthdig.com/articles/are-corporations-really-hogging-workers-wages/>) além de outras questões.
Embora
a propositura se angule precisamente pelo aspecto dos ganhos e isso explicite
questões importantes do modo como grupos sociais se apropriam de parte da
riqueza total, há um problema de fundo que precisa ser considerado. Com relação
à “classe” propriamente dos gestores, estudos ainda precisam ser mais
aprofundados em diversas direções. Uma delas é a gênese. Há um problema aqui
que Marx entreviu muito bem já na década de 1860. A questão vai bem mais longe
(cf. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/cadernosebape/article/view/38853/37598) e carece ainda de maior esforço científico.
Então vou chamar a atenção apenas para questões fundamentais ainda que de modo
superficial.
Quando
falamos em capital e força de trabalho como categorias econômicas é preciso
levar em conta as suas personificações portadoras e as funções que desempenham.
Dado o caráter antagônico da produção de mercadorias, é função das
personificações do capital a maior extração possível de valor. Se essa função é
desempenhada pelos capitalistas individuais ou por diretores assalariados só
prova que o capitalista individual é dispensável no reino da produção. O
processo de acumulação de capital torna cada vez mais difícil a direção dos
negócios que se complexificam. Assim, conforme cresce o capital, inclusive em
seu aspecto variável, problemas de coordenação precisam de atenção dedicada. Os
managers crescem por duas vias: pela contratação de gestores (gerentes
intermediários, supervisores etc.) pelos capitalistas que gradativamente se
afastam da produção à medida que seu capital aumenta e pela contratação dos
antigos proprietários (agora como diretores de cúpula) das fábricas falidas que
caem nas mãos dos credores da bancocracia. Marx chegou a dizer que, por essa
última via, chegou a se formar um mercado de gestores na Inglaterra do século
XIX os quais recebiam salários modestos… Conforme cresce ainda mais a
acumulação, mais importante se torna essa nova configuração do trabalhador
coletivo assalariado e suas diferentes subdivisões, aumentando o quantitativo
dos trabalhos improdutivos frente aos produtivos. O apologético David Ure
disse, e Marx endossou, que “os gerentes industriais, e não os capitalistas
industriais, são a “alma do nosso sistema industrial” (O capital, livro III).
Nessa linha de desenvolvimento, vê-se que a função do capital pode ser
repartida entre frações do próprio trabalhador coletivo assalariado. E essa via
foi a que Marx pôde acompanhar mais de perto e lhe serviu de fundamento para o
debate sobre a típica confusão entre lucro e salário de superintendência na economia
política de então.
Outra
via, no entanto, dependia do desenvolvimento da primeira, do crescimento ainda
maior da acumulação de capital e da maturação do sistema de sociedades
anônimas, do crédito e do mercado de capitais, culminando em “remunerações” não
tão modestas. Se a primeira caracterizou-se por uma nova configuração do
trabalhador coletivo, a segunda expõe uma nova configuração do capitalista
coletivo. Parte das funções permanecem com os proprietários e o mercado de
ações desenvolvido permite com que surjam personificações do capital que não se
identificam como proprietário típico dos meios de produção, percebem altas
remunerações e alta participação acionária. (É até curioso como homens do tipo
de um Schumpeter possam ter teorizado sobre essas funções e mesmo as ocupado,
de modo que seu patrimônio pessoal se vinculava ao destino do banco que dirigia
quando este veio à falência). Esses novos diretores que não se constituem pela
via anterior estão ligados à trustificação e à bancocracia que a acompanha já
no século XX e a separação entre propriedade e controle é apenas uma expressão
superficial do processo ao fundo, isto é, a novidade histórica não é o controle
cindido da propriedade (coisa já posta, como vimos, na década de 1860), mas um
tipo novo de proprietário que também controla. Como fração do capitalista
coletivo (e arrisco a dizer que surge como vanguarda em variados momentos), a
despossessão direta de meios de produção permite uma dinâmica diferenciada, uma
circulação dos gestores na direção de diferentes empresas, sua circulação entre
diferentes conselhos administrativos, entre os diferentes setores econômicos e
também sua rotação para a estrutura do Estado e dela para os setores produtivo
e, sobretudo financeiro.
O
que esse processo de gênese e desenvolvimento revelam (embora existam outros
elementos importantes a serem considerados com os desdobramentos posteriores
durante o século XX) é que a realidade objetiva não permite a confusão entre a
alteração das personificações e de suas funções com o surgimento de uma nova
classe. A função do capital pode ser repartida entre frações do trabalhador
coletivo e do capitalista coletivo sem que, com isso, forme-se uma nova classe fundamental
ao lado do capital e do trabalho. Por isso, chamo de gestores do capital essa fração de vanguarda do capitalista
coletivo e que ocupa as posições estratégicas na produção e na realização do
valor (grande capital produtivo, bancos e empresas de ativos financeiros,
fundos de pensão, grandes firmas ligadas à distribuição de mercadorias e
setores dominados por bigtechs). Eles
rotacionam para a estrutura do Estado e afetam decisões importantes sem deixar
de ser “vanguarda dos proprietários” (como disseram Baran e Sweezy). E quando
deixam a estrutura do Estado, migram para as empresas financeiras e produtivas
quando não fundam suas “consultorias”. Pode-se imaginar as profusas
consequências desse movimento, considerando que se trata de uma ampla
articulação entre essas posições estratégicas. Uma rápida olhada nos agentes da
Goldman Sachs em postos-chave nos governos norte-americanos e indivíduos também
do mercado financeiro nos governos petista e pmdbista depois do impedimento é
suficiente para identificar a manifestação disso. Esses são os gestores econômicos do capital que
rotacionam entre o Estado e setores privados, mas há também os gestores políticos do capital que ocupam
posições estratégicas na burocracia estatal sem ser diretamente aquele tipo
especial de proprietário no sentido que estamos dando. Mas esse assunto
pertence a um momento posterior quando a pesquisa puder avançar.
AC – Pode-se dizer que muitos dos
administradores (pessoas graduadas em Administração), embora pertencentes à
classe trabalhadora, não só atuam cotidianamente contra os interesses da sua
classe, mas também concebem o mundo a partir dos referenciais antagônicos à sua
classe? O que você poderia nos dizer dessa relação entre classe e consciência
de classe?
EPC
- Acho a distinção entre gestores do capital e administradores importante. Os
administradores se constituíram por aquela via do crescimento do capital e do
afastamento dos capitalistas da atividade direta de gestão de certos aspectos.
No geral, são trabalhadores assalariados clivados pela diferenciação entre
trabalho produtivo e improdutivo (com dominância do segundo) e fazem parte do
trabalhador coletivo. Mas existem variados aspectos outros que afetam o modo
como esses homens e mulheres pensam.
Se
fosse separar aqui as duas questões fundamentais, diria que a primeira é a prática
efetiva que desempenham como personificações do trabalho e que realizam a
função do capital. Cria-se a condição de ambiguidades dada a subjetivação
daquilo que fazem. No geral, entretanto, me parece que a prática diária que
medeia e plasma a objetividade em subjetividade, para usar um modo de expressão
de Chasin, lhes diz que não são da classe trabalhadora. A subjetivação primeira
tende a ser a de uma posição intermediária entre o trabalho e as “necessidades
da empresa” (ou da “organização”, conforme caso), assim mesmo, nessa forma
mistificada. Com isso quero dizer que sobre a subjetivação a função do capital
convertida em prática prepondera em relação ao pertencimento estrutural de
classe. A segunda questão é o ideário circulante, historicamente derivado dessa
prática e que também a “contamina”. O imenso volume de ideias que trafegam
pelos artigos, livros escolares e mídia especializada já acumulou um leque de
tecnologias que condicionam, como momento ideal, a prática efetiva. O próprio
caráter tecnológico e apologético lastreado por um utilitarismo atroz e vulgar,
portanto, não científico e acrítico, ajuda a constituir uma subjetividade
empobrecida em termos de compreensão de realidade, embora compartilhe do
destino fático da classe trabalhadora. Agora mesmo, por exemplo, as ameaças com
o avanço da inteligência artificial não recaem apenas ao trabalho tipicamente
manual, mas também sobre as atividades gerenciais. O rebaixamento de salários é
outro exemplo, e se aplica extensivamente embora possa ser sentido de modos
diferenciados.
Mas
aqui vai um alerta: a questão não se limita a uma identificação de
pertencimento de classe. Isso não basta porque não engendra necessariamente uma
programática correspondente. Indivíduos comumente se identificam como trabalhadores,
mas a expressão diária e no horizonte frequentemente contradiz essa
identificação. A consciência de classe, isto é, o reconhecimento da existência
estrutural das classes e sua necessária superação, é um produto muito raro e a
história tem mostrado isso, de maneira cada vez mais agudizada.
AC
– Há um intenso debate, dentro da
esquerda, sobre o papel do Estado: enquanto uma fração bem representativa pensa
que a tomada do Estado deve ser o grande objetivo da esquerda contemporânea,
outra fração vê na tomada do Estado, um desvio em relação aos seus reais
objetivos: a tomada dos meios de produção. Qual a sua posição quanto a esse
debate?
EPC
- Essa é uma questão eminentemente prática. Está embutido um o que fazer mais fácil de programar do
que efetivamente realizar dadas as complexas ligações e também os
distanciamentos entre territórios da realidade objetiva, sem falar das
insuficiências ideológicas e organizativas do contemporâneo. Mas um movimento
que se preze revolucionário em nome de uma humanidade emancipada tem a tarefa
de atuar precisamente nos pontos nodais, acionando a complexa rede de relações.
O que é fácil de dizer, mas difícil de fazer é a integração entre as lutas
econômica e política, uma mediando e destravando os obstáculos da outra. Um
exemplo é aquela distinção e, ao mesmo tempo, integração, que Marx fez em Salário, Preço e Lucro muito importante
entre a “luta de guerrilha”, diária, com relação às condições de trabalho e
salários e a luta para a abolição da sociedade baseada no trabalho assalariado,
que são de raízes econômicas, mas que podem e devem ganhar expressão política,
inclusive porque este último plano possui uma potência de generalização que o
plano econômico por si só não tem. Que fique claro: política como forma de dominação
e força dissolutora. É uma questão da natureza das coisas e não de mera
vontade. Movido por vontade, pode-se gastar muita energia apenas no território
econômico ou apenas no político, as conexões ficam sem respostas e os
resultados dificilmente corresponderão ao programa. Embora seja difícil de
realizar, e o momento histórico coloca ainda mais obstáculos, o resultado deve
ser mais promissor pela integração do que pelas opções excludentes que cortam
as ligações entre os territórios. A propriedade dos meios de produção e o poder
político devem perecer juntos e é difícil imaginar como realizar isso por
apenas um dos lados da unidade.
AC – Na sua
linha de pesquisa você aborda a questão tecnológica. No que a tecnologia entra
como fator preponderante na luta de classes e para a superação do capitalismo?
EPC - Tecnologia é apenas uma expressão das forças
produtivas da humanidade. Força produtiva tem a ver com a capacidade
materializada na atividade humana e que varia, evidentemente, na história.
Tecnologia é, pois, um desses elementos da atividade humana, como meio. Acho
que o século XX (e talvez o XXI, mas com especificidades) testemunhou a rixa
entre a condenação irracionalista da ordem técnica e a apologética desvairada
que supunha a resolução de todos os problemas postos pelo simples avanço
técnico. Essas posições, romântica e apologética, sempre andaram lado a lado e
assim continuarão até uma mudança significativa das relações sociais. Por que?
Porque a mesma sociedade que engendra os aparatos técnicos em meio às
contradições historicamente determinadas também engendra essas formas de
consciência. Porque a tecnologia tem sua funcionalidade e, portanto, carrega a
matriz das relações sociais das quais resulta e no interior das quais opera. A
despeito de muita confusão, a tecnologia em seu sentido produtivo - que é o
sentido da pesquisa em andamento - não é nem “neutra” nem casulo no qual se
encarna um “gênio”. Ela carrega as contraditoriedades das relações sociais, mas
não pode ser condenada per si. Para dar
um exemplo, houve máquinas que eram projetadas para serem operadas por crianças
de 8 anos de idade. É óbvio que, por isso, não são “neutras”; carregam certas
marcas de seu tempo e das relações dominantes. Mas ao mesmo tempo as máquinas
são meios, expressão da capacidade humana em um ponto bastante superior do
desenvolvimento e responde aos imperativos postos em determinado momento; quer
dizer, não são os meios em si o problema. Marx já tinha resolvido essa questão
em 1848, no texto Trabalho assalariado e
capital, e repete depois nos textos econômicos a partir de 1857. A síntese
da resolução dele, e é espantoso como somos obrigados a repetir no século XXI,
é que uma máquina, por exemplo, só se torna capital no interior de relações
capitalistas de produção. Por quê? Porque cumpre uma função específica no
interior dessa relação. À medida que os meios passados são alterados pelas
novas relações de produção e como estas criam novos meios e são afetadas por
eles é uma discussão da maior importância.
Essa é uma discussão de longe dominada pelos
“evolucionistas” por derivação das ideias de Schumpeter, pois é nessa tradição
que há uma marcante tendência em apreender a preponderância do que chamam de mudança
do “paradigma tecnológico” e a “crise de adaptação” decorrente dos grandes
saltos tecnológicos. A literatura marxista trata disso com a importância que
tem e sem dedicar um foco especial pela razão de que não há, pelo menos no
melhor dessa literatura, uma mistificação da tecnologia como em outras
tradições. Por exemplo, quando digo que o avanço técnico pode engendrar
desemprego estou falando de um nível da realidade que não é ilusório, mas é um
nível mais superficial em que a tecnologia aparece mistificada. Não é o avanço
técnico que resulta em desemprego, mas a funcionalidade da tecnologia no
interior das relações capitalistas de produção. Os marginalistas nunca poderão
entender isso. Estão sempre com a palavra pronta para lançar que se o fim da
produção é a satisfação de necessidades, logo esse também é o fim do avanço
tecnológico ou da inovação, como preferem. Podem e estão enganados duplamente.
Mills ficou surpreso no século XIX com o fato de que a maquinaria empregada não
tornou melhores as condições de trabalho do operariado. Marx mesmo já tinha
corrigido o mal-entendido: a introdução da maquinaria não visa a melhoria das
condições dos operários, menos ainda a satisfação de necessidades humanas. Como
capital, sua função é tornar o trabalho socialmente necessário cada vez mais
desnecessário, não apenas quantitativamente, mas também no sentido da
desvalorização da mercadoria força de trabalho (forçando seu preço para baixo).
Já apontamos antes isso aqui na entrevista, a respeito da acumulação e dos
investimentos em capital constante e não precisamos voltar a isso.
A questão é que o avanço que marca os grandes
saltos tem potência para criar efeitos sociais ainda não totalmente revelados.
Essa é uma fonte de preocupação inclusive, como já vimos, entre as
personificações diretas do capital e seus ideólogos. Mas eu não diria que a
tecnologia tem preponderância na luta de classes. Há sempre uma relação
histórica em que o acirramento dessa luta pressiona na direção da introdução de
novos meios de produção que diminuam a dependência de trabalho e novos modos de
organizar a produção como resposta social ao ciclo de acumulação e aos
conflitos provenientes que, por sua vez, também afetam esse acirramento por
mediação dos efeitos que ocasionam. Então ela mesma não é mediação de superação
do capital. Há razões para considerar a hipótese, aparentemente paradoxal e que
contradiz o senso comum, de que a velocidade efetiva desses avanços poderia ser
aumentada se não fosse o próprio capital. É possível que um avanço efetivo no
sentido das necessidades humanas encontre barreiras no próprio capital, mas não
significa que não se possa encetar, como parece estar ocorrendo agora em
esboço, um movimento promotor de um novo salto tecnológico. O capital perdeu há
muito sua força civilizadora, mas a alta tecnologia não parece ter encontrado beco
sem saída. É uma das contradições fundamentais do capitalismo que ainda é
surpreendente: produzir maravilhas e barbárie ao mesmo tempo. Tomar consciência
dessa contradição e resolvê-la, como disse Marx, é o que prepondera. Afinal, quem faz a história?
Agradecemos o professor Dr. Elcemir Paço Cunha
pela gentil entrevista e disposição para esta plataforma de crítica e reflexão!