Mário Pedrosa, Lívio Xavier: as origens do marxismo no Brasil

 

Foto Mario Pedrosa

Publicado originalmente no site Marxismo21

Data Maio de 2013.

Por Ricardo Figueiredo de Castro[1]

O marxismo brasileiro ainda não é centenário. Apesar dos poucos brasileiros que citam e discutem superficialmente “o Mouro” no final do século XIX e nos primeiros anos do século XX, é apenas a partir dos anos 1920 que no Brasil, efetivamente, os ensinamentos de Karl Marx e Friedrich Engels, tornam-se ferramenta analítica de compreensão da realidade e de sua transformação.

 Os primeiros e principais marxistas brasileiros eram então militantes do Partido Comunista, seção brasileira da Internacional Comunista (Comintern). Astrogildo Pereira (1890-1965) e Octávio Brandão (1896-1980) compunham o primeiro núcleo dirigente do partido e foram responsáveis pelas primeiras tentativas de utilizar o marxismo como instrumento de compreensão da sociedade brasileira. Coube, inclusive, a Brandão a primazia de redigir o primeiro texto marxista sobre a realidade brasileira e de sua via revolucionária, Agrarismo e industrialismo, publicado em 1926[2].

 Alguns poucos anos depois, em 1930, Mário Pedrosa (1900-1982) e Lívio Xavier (1900- 1988) publicam um ensaio que viria a se tornar a primeira contribuição marxista para o estudo da história do modo de produção capitalista em terras brasileiras: Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil.

 O texto foi originalmente publicado no número 6 do jornal A Luta de Classe em fins de setembro de 1930, mas foi apreendido quando do levante armado iniciado em 3 de outubro e que levou Getúlio Vargas ao poder, a “Revolução de 30”; o que impediu que ele tivesse uma ampla circulação e divulgação. Apesar disso, serviu de base às discussões internas do grupo ao qual Pedrosa e Lívio pertenceram, a Oposição de Esquerda brasileira e, certamente, tornou-se uma das bases do processo de amadurecimento de análises marxistas ulteriores da realidade brasileira, especialmente entre os trotskistas. O texto foi devidamente recuperado no final dos anos 1980 quando o Dainis Karepovs e Fúlvio Abramo publicaram o importante Na contracorrente da história. Este livro recuperou uma tradução francesa do texto editada na França e a traduziu para o português[3].

Marcos Del Roio (1990, p. 171) reconhece que, naquela conjuntura, esta foi "a mais consistente reflexão do ponto de vista marxista sobre a formação social brasileira." O Esboço de uma análise sobre a situação econômica e social do Brasil apresenta uma análise que leva em conta conceitos como modo de produção, formação social, meios de produção, acumulação primitiva de capital, propriedade privada, expropriação dos meios de produção. Embora seja apenas um esboço, explicitado no próprio título, esse trabalho consegue analisar minimamente as condições históricas concretas da introdução do capitalismo na formação econômica brasileira. Há, pois, nesse curto ensaio uma sensibilidade teórica em articular o abstrato do modo de produção com o concreto da formação econômica e uma preocupação em demonstrar a especificidade do capitalismo brasileiro em relação ao seu caráter universal. Além deste texto os comunistas da Oposição de Esquerda também publicaram outro importante texto, o Projeto de teses sobre a situação nacional (ABRAMO, KAREPOVS, p. 143-169), publicado em 1933.

 Estes dois textos são duas das principais análises de intelectuais marxistas sobre o Brasil elaboradas nos anos 1930. O fato de terem sido editados por uma organização marginalizada pela história das esquerdas brasileiras e do texto de 1930 ter sido apreendido logo após a edição, explicam, em parte, o virtual desconhecimento destes textos por parte da memória e da historiografia das esquerdas brasileiras.

 Estes dois trabalhos demonstram que seus autores tinham um mínimo de conhecimento da teoria econômica marxista contida em O Capital. Lembramos que Mário Pedrosa, um dos autores do texto de 1930, tinha conhecimentos da língua alemã, além de ter estudado, nos anos 1920, teoria econômica na Alemanha. Outro que conhecia o alemão e muito provavelmente conhecia O Capital foi Rodolfo Coutinho (1901-1955), que nos anos 20 estudara economia política na Humboldt-Universität zu Berlin. Aristides Lobo e Lívio Xavier, o outro autor do Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil, também tinham conhecimentos de línguas estrangeiras, além de serem tradutores: o primeiro traduziu O estado e a Revolução de Lênin e o segundo Enciclopédia das Ciências Filosóficas de Hegel. (KONDER, 1988, p. 200). Diferentemente do que afirma Carlos Guilherme Mota (1980, p. 123), baseado em depoimentos dos intelectuais Paulo Emílio de Salles Gomes e Caio Prado Jr., no início da década de 30 alguns brasileiros já conheciam O Capital ou, pelo menos, o fundamental de sua contribuição.

No momento da edição do Esboço os “oposicionistas de esquerda” consideravam-se militantes críticos da política do Partido Comunista e, portanto, travavam a discussão no interior do campo partidário comunista. Apenas em 1934, seguindo orientação do movimento internacional, decidem sair do Partido.

 A década de 30 do século XX representa um importante ponto de inflexão para o movimento comunista brasileiro. O Partido Comunista brasileiro, tornou-se então um partido cada vez mais relevante na política nacional.

 Ao longo desta década surgiram duas gerações de “trotskistas”[4]. A primeira desenvolve-se a partir de 1928 e teve como base a luta da Oposição de Esquerda internacional e seu objetivo de reformar a Internacional Comunista. A segunda formou-se no final da década quando a Oposição de Esquerda já havia desistido de ser oposição e criara a IV Internacional. Essa segunda geração formou-se em torno de Hermínio Sacchetta, dirigente do Comitê Regional do PCB[5] de São Paulo, que deixa o partido junto com vários militantes.

 Em 1929 o jovem militante Mário Pedrosa foi enviado a URSS para cursar a Escola Leninista, instituição formadora de militantes comunistas. Uma doença o obrigou a interromper a viagem na Alemanha, uma das escalas do trajeto. Lá travou contato com as críticas de Trotsky à política do partido comunista da URSS e da Internacional Comunista e iniciou uma intensa correspondência[6] 5 com o amigo Lívio Xavier que tornou-se, então, o elo de ligação com o grupo de jovens intelectuais comunistas que tinham divergências com a política do PCB desde pelo menos 1928. Em julho de 1929 retornou ao Brasil e organizou esse grupo em uma agremiação chamada Grupo Comunista Lenine (GCL). Esta organização era formada basicamente pelo grupo de intelectuais (Rodolfo Coutinho, Lívio Xavier entre outros) que foram signatários do panfleto da Oposição Sindical que criticara a política sindical do partido e sua falta de «centralismo democrático» e que deixara o PCB quando da “Cisão de 1928”, e pelos sindicalistas da célula 4R que deixam o PCB em 1929. Em janeiro de 1931 fundam a Liga Comunista que será durante a sua breve existência o espaço no qual militavam os comunistas que não tinham espaço no PCB, dele saindo por expulsão ou por decisão própria[7]. Três anos depois, em 1o de maio de 1934, durante o comício do Dia do Trabalho em São Paulo, os “trotskistas” anunciaram sua transformação em Liga Comunista Internacionalista, ponto fim a um período no qual consideravam-se fração do PCB, apostando na sua reforma e do Comintern. Seguindo, portanto, as resoluções da Oposição de Esquerda internacional passam a trabalhar pela criação da IV Internacional.

Essa primeira geração do trotskismo brasileiro é altamente importante para a história da esquerda e do marxismo brasileiro devido a três razões.

Em primeiro lugar, este grupo teve uma importante inserção tanto no campo intelectual quando no sindical e mostrou reais condições teóricas e políticas de substituir o grupo dirigente dos anos 20. O fim do grupo dirigente gestado nos anos 20, articulado em torno de Astrogildo Pereira e Otávio Brandão abriu espaço político para a ascensão de um novo grupo dirigente alternativo formado pelos militantes “bolchevique-leninistas”. Entretanto, em função da pressão exercida pelo Comintern o novo grupo dirigente formado por Mário Pedrosa, Lívio Xavier e Rodolfo Coutinho não conseguiu substituí-lo. A sua relação com a Oposição de Esquerda internacional o desqualificou frente ao Comintern e, consequentemente, o inviabilizou frente à militância partidária. Lembramos que o apoio e reconhecimento do “partido mundial da revolução” era então fundamental para a militância do PCB. A queda do grupo dirigente Astrogildo-Brandão e a inviabilidade política do grupo Pedrosa-Xavier-Coutinho causou assim uma forte instabilidade na direção nacional. Para superar este problema a Internacional Comunista patrocinou, no início de 1933, um curso com duas turmas para escolher os futuros dirigentes partidários nacionais, dos quais saíram os futuros secretários-gerais ao longo da década: Antônio Manuel Bonfim (Miranda) e Lauro Reginaldo da Rocha (Bangu).

Em segundo lugar, realizaram um importante trabalho de difusão do marxismo, numa época em que o PCB passava por dificuldades e não tinha condições de fazê-lo. Além disso, valorizavam os textos teóricos tanto quanto os textos de conjuntura política. Essa opção dos intelectuais “trotskistas” era, à época, original, posto que o Partido Comunista divulgava e publicava apenas textos políticos conjunturais sem maiores pretensões teóricas. Procurando suprir essa lacuna, os intelectuais “trotskistas” participaram da criação em São Paulo da Editora Unitas. Essa casa editorial publicou na primeira metade dos anos 30 um diversificado catálogo de autores marxistas, tais como Marx, Engels, Lenin, Trotsky, Rosa Luxemburgo etc. Inclusive, editou ainda em 1932, a versão condensada d' O Capital de autoria de Carlos Cafiero e, em janeiro de 1933, livro de artigos de Trotsky sobre a questão do fascismo e da revolução na Alemanha, organizados e traduzidos por Mário Pedrosa[8]. É importante notar ainda que dois de seus mais importantes integrantes, Pedrosa e Xavier, tinham um particular interesse pelos fenômenos artísticos, sobretudo as artes plásticas e o cinema. Inclusive, ambos se tornaram ulteriormente dois dos mais importantes críticos brasileiros: Xavier se dedicou durante vários anos à crítica literária em jornais diários e Pedrosa tornou-se o mais importante crítico de artes plásticas entre os anos 60 e 80 e uma referência na esquerda marxista do país.

 Acreditamos que há indícios que se formava então no Brasil, especialmente na cidade de São Paulo na breve conjuntura da primeira metade dos anos 1930, as condições para a existência de massa crítica e público para o marxismo. Um dos indícios, além da bibliografia publicada pela Editora Unitas acima citada, é a resenha do livro de Caio Prado Júnior Evolução Política do Brasil, publicada no jornal paulistano Diário da Noite e redigida por Lívio Xavier e a carta redigida por Caio Prado e endereçada a Lívio Xavier respondendo às suas críticas[9]. Apesar das posições políticas divergentes --- Caio Prado era militante do Partido Comunista e Lívio Xavier, da Oposição de Esquerda --- conseguiam discutir civilizadamente.

 Finalmente, em terceiro lugar, durante o curto período (1930-1934) em que a Liga Comunista foi ou se considerou «oposição bolchevista-leninista» do Partido Comunista os intelectuais “trotskistas” formularam políticas alternativas para as esquerdas brasileiras, das quais as mais importantes foram a  participação nas eleições para a Assembleia Nacional Constituinte e a proposta de unificação das forças políticas sindicais e partidárias em frente única contra a política sindical varguista e o integralismo. Esta política de unidade se consubstanciou principalmente na formação da Coligação dos Sindicatos Proletários e, sobretudo, na Frente Única Antifascista (FUA).

 Fundada em agosto de 1933 a referida Coligação tinha por objetivo coligar os sindicatos que já haviam aderido à nova legislação sindical. Assim, os “trotskistas” procuravam formular uma alternativa à política do Partido Comunista, que então propunha sair destes sindicatos e criar sindicatos paralelos formados pelos grupos oposicionistas aos sindicatos oficiais, as chamadas “oposições sindicais” A FUA, fundada em junho de 1933 na cidade de São Paulo, tinha por objetivo principal unir cidadãos, grupos e partidos numa frente única antifascista que barrasse o crescimento do fascismo em São Paulo, representado pela Ação Integralista Brasileira (AIB). Dela fizeram parte a Liga Comunista (“trotskista”), sua principal patrocinadora, o Partido Socialista Brasileiro de São Paulo, várias organizações da sociedade civil e sindicatos, além do Partido Comunista paulista, que no início apoiou criticamente mas, após ser repreendido pelo Comitê Central localizado no Distrito Federal (cidade do Rio de janeiro), desligou-se da frente.

Concluindo, no início dos 1930 surgiram condições objetivas e subjetivas para o desenvolvimento do marxismo no Brasil. O texto analisado Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil é um dos exemplos desta possibilidade histórica que, no entanto, pelas próprias condições e circunstâncias de seu desaparecimento violento do espaço público de discussão teórica e política, também indica os limites objetivos e subjetivos ao pleno desenvolvimento do marxismo em toda a sua potencialidade como teoria e práxis, seja na esfera da sociedade seja no âmbito da esquerda brasileira.

BIBLIOGRAFIA

ABRAMO, Lívio, KAREPOVS, Dainis. Na contracorrente da história: documentos da Liga Comunista Internacionalista, 1930-1933. São Paulo: Brasiliense, 1987.

CASTRO, Ricardo Figueiredo de. A Oposição de Esquerda brasileira (1928-1934): teoria e práxis. Niterói, 1993. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal Fluminense.

CASTRO, Ricardo Figueiredo de. “A Frente Única Antifascista (FUA) e o antifascismo no Brasil (1933-1934)”, Revista Topoi, Rio de Janeiro, n. 5, set. 2002. Disponível em: http://www.revistatopoi.org/numeros_anteriores/topoi05/topoi5a15.pdf

CASTRO, Ricardo Figueiredo de. “O Homem Livre: um jornal a serviço da liberdade (1933-1934)” Cadernos AEL, Campinas, volume 12, n. 22/23, 2005. Disponível em: http://segall.ifch.unicamp.br/publicacoes_ael/index.php/cadernos_ael/article/viewFile/22/26

CASTRO, Ricardo Figueiredo de. “O comunista que falava alemão: apontamentos biográficos”, Anais do XIV Encontro Regional da ANPUH-Rio de Janeiro, 2010. Disponível em: http://www.encontro2010.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1276643839_ARQUIVO_RicardoFigueiredodeCastroartigo.pdf

DEL ROIO, Marcos. A classe operária na revolução burguesa: a política de alianças do PCB, 1928-1935. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1990.

KONDER, Leandro. A derrota da dialética: a recepção das idéias de Marx no Brasil, até o começo dos anos trinta. Rio de Janeiro: Campus, 1988.

MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira. São Paulo: Ática, 1980.


[1] Professor de História Contemporânea do Instituto de História (IH) da Universidade Federal do Rio de Janeiro

(UFRJ) E-mail: ricardocastro@ufrj.br

[2] A Editora Anita Garibaldi reeditou o texto em 2006.

[3] Gostaríamos de agradecer ao historiador Dainis Karepovs que gentilmente nos autorizou a publicar esta versão digital da tradução.

[4] O termo trotskista é anacrônico para este período da história do movimento trotskista mundial. Os integrantes deste movimento preferiam o termo “bolchevique-leninista” para afirmar sua filiação à tradição política dos comunistas russos. Ou seja, o termo trotskista na época era usado por aqueles que pretendiam acusar os “bolcheviques-leninistas” de fracionistas, o maior pecado de um militante comunista. Desse modo, o termo “trotskista” é usado aqui entre aspas, evitando o anacronismo, mas inserindo estes militantes na história do movimento trotskista ulterior.

[5] PCB era a sigla então utilizada pelo Partido Comunista do Brasil, seção brasileira da Internacional Comunista.

[6] Essa correspondência assim como as origens do trotskismo são muito bem analisadas no livro de José Castilho Marques Netto. A solidão revolucionária: Mário Pedrosa e as origens do trotskismo no Brasil. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1993.

[7][7] Para maiores detalhes sobre a história da Liga Comunista ver Castro (1993).

[8] TROTSKY, Leon. Revolução e contrarrevolução na Alemanha. São Paulo: Sunderman, 2011.

[9] Disponível em: http://marxismo21.org/wp-content/uploads/2012/09/Carta-para-Livio-Xavier-20-09-19332.pdf

Wesley Sousa

Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem