Tradução por Gabriel Yuji – mestrando em Sociologia pela UFGD.
Extraído do site The DriftMag.
Não foi como ninguém esperava que Bill
Hamilton morresse. Em 1999, Hamilton estava celebrando o seu décimo quinto ano
como um professor pesquisador de biologia evolutiva em Oxford, onde ele havia
cultivado uma reputação por teorizações não-convencionais e de grande
sofisticação matemática. Ele havia recentemente recebido tanto o Prêmio
Crafoord e o Prêmio Kyoto, certamente dois dos prêmios mais prestigiosos para
cientistas em áreas que não podem concorrer ao Nobel. Sua esposa havia saído de
cena e a jornalista italiana Luisa Bozzi havia entrado em cena. Ele tinha 63
anos e, com um tufo de cabelo branco, parecia um Beatle envelhecido.
Em junho daquele ano, Hamilton pegou um
avião para a República Democrática do Congo (RDC), então em meio a uma guerra
civil que ao seu fim iria tirar cinco milhões de vidas. Ele voltou para casa
aproximadamente um mês depois com amostras de fezes de chimpanzés e uma doença
misteriosa. Até janeiro de 2000, Hamilton havia se recuperado e ido ao Congo
novamente. Desta vez, quando ele voltou doente, ele foi hospitalizado e não
retornou. Depois de sua morte, Richard Dawkins declarou que ele era “um bom
candidato para o título de o mais notável darwinista desde Darwin”.
Foi só no outono de 2000 que o público
perplexo soube o porquê de Hamilton ter feito as expedições ao Congo que no fim
custaram sua vida. Bozzi, a namorada de Hamilton, explicou no The Guardian
que ele havia ido coletar evidências que ele esperava que pudessem confirmar
uma teoria controversa sobre as origens do HIV.
Um ano antes, o jornalista britânico Ed
Hooper tinha ganhado as manchetes com um livro vendido no “boca a boca” [1]
chamado The River (em tradução literal, “O Rio”), que continha um
prefácio escrito por Hamilton. Em quase mil e duzentas páginas [2] meticulosamente
documentadas, o livro expôs a teoria de que uma equipe de cientistas, liderados
pelo virologista polaco-estadunidense Hilary Koprowski, tinha negligentemente
introduzido o vírus através de uma vacina oral contra a poliomielite (OPV, na
sigla em inglês) contaminada e aplicada em centenas de milhares de residentes
do Congo sob o domínio belgo no final dos anos 1950. Koprowski, Hooper alegou,
tinha secretamente produzido o lote de vacinas usado no Congo a partir de rins
de chimpanzés nativos que estavam infectados com o vírus da imunodeficiência
símia (SIV), o precursor do HIV.
Determinado a corroborar a assim
chamada “hipótese OPV/AIDS”, Hamilton acreditava que as evidências se
encontravam nos bandos de chimpanzés que viviam perto de onde Koprowski tinha
supostamente obtido os órgãos. Quando a guerra estourou na RDC, Hamilton temia
que a escassez de alimentos fosse impulsionar os caçadores de carne a eliminar
as populações de chimpanzé na qual ele estava interessado, deixando-o sem outra
opção a não ser coletar as amostras desejadas ele mesmo—e o mais breve
possível.
Se a revelação de Bozzi ajudou a jogar luz na razão da viagem de Hamilton, ela não fez muito para explicar o porquê ele se tornou quase suicidamente obcecado com a teoria OPV/AIDS em primeiro lugar. Duas décadas depois, a história completa de Hamilton e o debate sobre as origens do HIV ainda contém importações lições, conforme nos deparamos com uma nova leva de teorias da conspiração e acusações em meio a pior pandemia desde a HIV/AIDS.
Quando um grupo de homens gays
começaram a contrair infecções bizarras e frequentemente fatais em 1981, não
era inicialmente óbvio que um único vírus era o culpado. A imprensa hegemônica
homofóbica batizou a síndrome de “GRID”, que significava “gay-related immunodeficiency”
(literalmente, “imunodeficiência relacionada aos gays”). Mesmo com o aumento de
evidências de que heterossexuais poderiam contrair a doença, a presunção
inicial de que a sua etiologia estava de alguma maneira ligada a identidade das
suas vítimas persistiu. A CDC (o Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos
Estados Unidos) começou a falar na “doença dos quatro H”, se referindo aos
homossexuais, usuários de heroína, hemofílicos e imigrantes haitianos, alguns
dos quais haviam começado a desenvolver sintomas em Nova Iorque.
Finalmente, em 1983, a revista Science
publicou um par de artigos de duas equipes diferentes, um do Instituto Nacional
do Câncer de Maryland e outro do Instituto Pasteur de Paris. Cada um deles
afirmava ter identificado um novo retrovírus responsável por causar a tal
imunodeficiência. Após anos de debate, cientistas demonstraram em 1986 que as
duas equipes haviam, na verdade, descoberto independentemente o mesmo vírus,
que foi batizado de HIV: vírus da imunodeficiência humana.
A descoberta do vírus da
imunodeficiência símia (SIV) em 1991 sugeriu que o HIV havia apenas
recentemente saído dos chimpanzés para os humanos. Como vírus mutam
constantemente, o HIV não iria ter retido a marcante similaridade genética com
seu predecessor símio se a transmissão não tivesse sido recente. A teoria mais
comum da transmissão veio a ser conhecida como a hipótese do “caçador”: algum
camarada azarado havia ido caçar com uma ferida aberta que foi exposta ao
sangue de um chimpanzé SIV-positivo. O resto você já sabe.
Não está inteiramente claro quem foi o
primeiro a formular a hipótese OPV/AIDS, mas ela primeiro ganhou a atenção do
público nas páginas da Rolling Stone em 1992. Um jornalista de Houston
chamado Tom Curtis havia se deparado com a teoria e se tornou um adepto
convicto, coletando muito mais evidência do que qualquer outro proponente
anterior. Curtis apresentou o caso em uma notícia de março daquele ano, que foi
seguida por uma série de artigos durante os seis meses posteriores. Quando
Hilary Koprowski, o inventor da vacina em questão (com o codinome “CHAT”),
ameaçou processar Curtis e a Rolling Stone por calúnia, a revista
publicou um “esclarecimento” de que Curtis estava apenas descrevendo uma
hipótese intrigante e não definitivamente afirmando que Koprowski havia trazido
a AIDS ao mundo. Nesse meio tempo, o Instituto Wistar, onde Koprowski passou a
maior parte de sua carreira, convocou uma banca de cientistas para investigar
as afirmações de Curtis, que eles logo descartariam sumariamente. A mídia, na
sua grande maioria, perdeu o interesse.
Mas Ed Hooper não. Seu interesse nas
origens do HIV e da AIDS aumentaram enquanto ele trabalhava em um documentário
da BBC sobre o curso da epidemia em Uganda no final dos anos 1980 e, depois de
dois anos de pesquisa, ele ficou insatisfeito com a explicação dominante.
Depois de ler o artigo de Curtis, ele ficou encantado pela hipótese OPV/AIDS e
passou os sete anos seguintes coletando entrevistas e materiais documentais que
ao final resultaram em The River.
O livro sustenta duas ousadas
afirmações principais. Primeiro, Hooper argumenta que até Curtis havia
subestimado a magnitude da campanha de vacinação de Koprowski no Congo belga.
Segundo sua estimativa, o total de pessoas vacinadas chegava perto de um milhão
e elas estavam distribuídas geograficamente em um padrão que, à primeira vista,
parecia surpreendentemente similar ao dos primeiros casos de AIDS documentados
na região do Congo. De forma ainda mais controversa, Hooper afirmou que Koprowski
havia preparado lotes de vacina já no Congo usando tecidos de chimpanzé,
insinuando que Koprowski sabia naquela época que ele estava fazendo alguma
coisa arriscada e passou a mentir sobre isso nas quatro décadas seguintes.
(Koprowski sempre insistiu que a CHAT foi produzida exclusivamente no Instituto
Wistar usando os tecidos de macacos-rhesus, até então o padrão para produção de
vacinas.)
Hooper havia conseguido se transformar em um especialista legítimo no assunto que compreendia a ciência tão bem quanto, senão melhor que, a maioria dos seus interlocutores. Ele também fez o seu melhor para envenenar o poço [3] e se blindar de quaisquer críticas ao insinuar que os cientistas e igualmente a mídia simplesmente cederam a pressão do litigioso Koprowski ao invés de dar o devido valor às ideias de Curtis. Não obstante, é difícil imaginar que o público leitor teria levado o livro tão a sério se ele não fosse publicado com um prefácio do “mais notável darwinista desde Darwin”.
Para um biólogo evolucionista, William
Donald Hamilton não gostava muito de pessoas. No primeiro volume do seu livro
de memórias, publicado após sua morte, ele recordava-se sobre seus dias de
estudante, quando ele costumava andar por horas através de Londres e tentava
imaginar a paisagem que uma vez existiu antes da civilização humana
desfigura-la.
O interesse de Hamilton pelo mundo
natural era inseparável de uma vertente reacionária e racista de ambientalismo
que prosperou nos anos 1960 e 1970. Em um simpósio sobre eutanásia organizado
pelo Vaticano, Hamilton fez a chocante afirmação de que ele iria lamentar mais
pela morte de um único panda gigante do que pela de “centenas de chineses
desconhecidos”. Enquanto a vertente de Rachel Carson do incipiente movimento
verde se focava nas consequências ambientais do poder corporativo ilimitado,
outros viam a superpopulação como a raíz de todos os problemas ecológicos. A
maior parte do alarmismo se focava nas nações do Sul Global, retratando seus
cidadãos como hiper-fertéis e incapazes de autocontrole. Em nações de maioria
branca, essa versão do ambientalismo se articulou com nativismo e xenofobia. Em
plenos anos 1980, o Sierra Club defendia restrições na migração para os Estados
Unidos em nome da “estabilidade populacional”.
O feito singular de Hamilton foi
suavizar essa visão ecológica de direita transformando-a em uma visão de mundo
científica, mais abstrata e de influência duradoura. Colocando de maneira
simples, ele devotou sua carreira a usar as ferramentas da teoria evolucionista
para tentar reduzir a importância da humanidade. Ele insistiu que muito do que
os humanos valorizavam sobre eles mesmos—capacidades como altruísmo,
generosidade e compaixão—eram meras “estratégias” evolutivas que permaneceram
porque ajudaram os humanos a se reproduzirem. De maneira similar, Hamilton
argumentou que as coisas que os humanos mais afirmam detestar—guerra,
genocídio, racismo e assim por diante—eram igualmente adaptações naturais.
Tentar eliminá-las representava uma interferência potencialmente desastrosa no
processo evolutivo natural.
Como ele não tinha muito mais estima
pelos seus pares cientistas do que pelo resto da humanidade, Hamilton não se
importava particularmente se seus colegas eram persuadidos por seus argumentos,
ou mesmo sequer se eles o entendiam. A maior parte das suas primeiras pesquisas
foi apresentada na forma de provas matemáticas complexas para as quais muitos
biólogos evolutivos não tinham conhecimento prévio para avaliar.
Nos anos 1970, porém, um grupo de
biólogos que estava acendendo ao estrelato ficou encantado com a abordagem de
Hamilton e buscou renovar a pesquisa darwinista a partir das bases que ele
havia formulado. Richard Dawkins ajudou a popularizar a explicação
contraintuitiva de Hamilton sobre o altruísmo em seu livro de 1975 O gene
egoísta, que vendeu milhões de cópias. O entomologista de Harvard E.O.
Wilson cunhou o termo “sociobiologia” para descrever a abordagem à disciplina
da qual Hamilton foi pioneiro—um campo que ia além da investigação da origem
das espécies para estudar a origem das sociedades e do comportamento social.
Não apenas o altruísmo, Wilson especulou, mas papeis de gênero,
homossexualidade, as práticas de criação de crianças, sistemas de casta e
dominação e práticas linguísticas poderiam todas ter origens genéticas.
Vindo na véspera da revolução de Reagan, o momento era fortuito. Como a historiadora Naomi Beck mostrou [no livro Hayek and the Evolution of Capitalism], as teorias social-darwinistas propostas pelos predecessores de Hamilton moldaram profundamente a visão de mundo daquele que é provavelmente o mais influente teórico neoliberal, o economista austríaco Friedrich Hayek. Hayek alegava que o livre mercado e ecossistemas eram ambas “ordens espontâneas” que funcionavam melhor se deixadas a evoluir de acordo com suas próprias lógicas internas. Nos dias atuais, Gary Becker, um dos sucessores de Hayek na Universidade de Chicago, vê os novos avanços na sociobiologia como uma validação científica da sua própria visão de mundo neoliberal. Até os próprios genes, ao que tudo indica, se comportavam como os agentes de mercado da economia de Becker que buscam maximizar a utilidade e satisfazer seus próprios interesses. Foi fácil retratar a regulamentação, o planejamento e a apropriação privada do governo como uma forma de interferência perigosa na dinâmica “natural”, quase-darwinista do mercado. Se a compaixão era meramente um produto da seleção natural, por que também não o Walmart?
A
ascensão de Hamilton ao consenso acadêmico dominante nos anos 1970 fez pouco
para diminuir sua misantropia. Ao contrário, Hamilton ficou cada vez mais
convencido de que a civilização contemporânea e, especialmente o sucesso da
medicina moderna, havia interrompido o processo de seleção natural, com
consequências desastrosas. O segundo volume do seu caderno de memórias
publicado postumamente em 2001, revelou a dimensão completa de sua visão de
mundo eugenista.
“Eu
prevejo que em duas gerações o estrago que vem sendo feito ao genoma humano
pelos esforços da medicina moderna em salvar vidas no pré- e pós-natal serão
óbvios para todos”, ele escreveu. Desenvolvimentos médicos, dos óculos a
cesariana, estavam permitindo aos geneticamente inferiores reproduzirem e
passarem adiante seus genes em uma quantidade que era previamente impossível.
Hamilton especulou que nem mesmo seria o suficiente apenas cessar de salvar
aqueles que não poderiam se salvar—um programa mais proativo de sacrifício [4]
infantil poderia se tornar necessário. Do contrário, a conta iria
inevitavelmente chegar graças a todos os humanos defeituosos que estavam agora
autorizados a consumir recursos escassos. “Eu também tenho pouca dúvida”, disse
Hamilton, “de que se eu estivesse tentando escapar da ilha de Robinson Crusoé
sozinho com minha esposa, eu mesmo mataria um bebê defeituoso com minhas
próprias mãos”.
Hamilton pensava que a conta já estava
chegando, de um jeito espetacularmente sangrento. Ele levantou a hipótese de
que o genocídio deve ter originalmente surgido como uma resposta evolutiva a
reprodução fora-de-controle em populações vizinhas e insinuou que essa dinâmica
tinha, em um nível um tanto instintivo, inspirado o assassinato recente de albaneses
em Kosovo. Era um desperdício de recursos, Hamilton argumentava, que a ONU
mandasse tropas pacificadoras para uma região onde a redução populacional
genocida já havia começado. Melhor seria buscar uma política preventiva, ele
argumentou, ao restringir os empréstimos do Banco Mundial a nações e regiões
que demonstrassem um compromisso com políticas deliberadas de controle
populacional.
As novas revelações das opiniões
odiosas de Hamilton fazem-nos ver seu prefácio a The River, publicado
apenas dois anos antes, de uma forma diferente e perturbadora. Hamilton não
havia simplesmente sido convencido pelos argumentos de Hooper; ele havia visto
na estória OPV/AIDS uma parábola para a catástrofe que vinha sendo desencadeada
pelas inovações médicas como a vacinação. Uma estória tão dramática e
horripilante quanto a de Hooper, ele pensou, poderia ter o potencial de levar
ao colapso o pensamento grupal que mantinha o culto de salvar vidas imune a
críticas.
Analisando retrospectivamente, o
prefácio de Hamilton estava repleto de referências fatídicas as “consequências
não-intencionais” da medicina moderna. Ele sugeriu que a relação entre a vacina
de poliomielite e a AIDS era só uma prévia do que poderia estar vindo com o
“xenotransplante”, um objeto popular de inquietação perto da virada para o
século XXI. Se vacinas preparadas com rins de macacos nos deram a HIV,
deveríamos tremer ao imaginar que tipos de agentes patogênicos poderiam ser
introduzidos aos humanos pela disseminação do transplante de órgãos de símios
ou até de porcos.
Ironicamente, a principal preocupação
de Hamilton não era que procedimentos como as vacinas ou o xenotransplante
iriam funcionar mal, mas, sim, que eles funcionassem bem até demais—que eles
iriam ajudar a salvar vidas que a natureza nunca quis que fossem salvas. Mas
Hamilton havia passado décadas argumentando que humanos são basicamente
autocentrados e imediatistas. O único jeito de convencer as pessoas a evitar os
benefícios da medicina moderna para o bem da espécie seria persuadi-los ao
risco de que a cura seria pior do que a doença.
Antes da sua segunda expedição fatal ao
Congo, Hamilton usou sua influência para convencer a Royal Society, a academia
nacional de ciências do Reino Unido, a organizar uma reunião especial voltada a
discutir The River. Hamilton esperava que a conferência servisse como a
cerimônia de coroação da teoria OPV/AIDS. Ele iria triunfantemente apresentar
evidências concretas da prevalência de SIV nos chimpanzés perto do local no
qual Hooper alegou que Koprowski havia obtido órgãos e preparado a vacina.
Então, ele imaginou, o resto da comunidade científica iria ter que se
adequar.
Ao invés disso, tudo colapsou.
Primeiro, a morte de Hamilton deixou Hooper tendo que se defender sozinho na
conferência sem seu mais importante aliado cientista. Na reunião, uma equipe de
cientistas anunciou que os avanços no sequenciamento genético e dados sobre a
velocidade típica de mutação do HIV permitiu que eles estimassem o “relógio
molecular” do vírus—isto é, quando ele primeiro entrou em contato com os
humanos e começou a divergir geneticamente do SIV. Havia uma margem de erro,
mas, de acordo com os cálculos, parecia impossível que a transferência
estivesse ligada a campanha de vacinação de Koprowski no final dos anos 1950.
Isso tinha acontecido certamente décadas antes, nos anos 1930 ou até nos anos
1920.
Em The River, Hooper salientou que o teste mais objetivo da teoria OPV/AIDS seria examinar realmente as amostras da vacina de Koprowski, procurando tanto DNA de chimpanzés quanto evidências de contaminação por SIV ou HIV. Surpreendentemente, após a publicação do livro, amostras da vacina original foram descobertas no freezer de um instituto de virologia britânico. No encontro da Royal Society, diversas equipes independentes de cientistas relataram suas análises das amostras. Os resultados foram unânimes: nenhum traço de SIV ou HIV foi encontrado e as células de primatas vieram de macacos-rhesus, como Koprowski sempre sustentou. Diante de tais resultados devastadores, Hooper e seus aliados mais próximos se refugiaram ainda mais em teorias da conspiração. Convencido de que os cientistas fariam qualquer coisa para encobrir a estória, Hooper foi o cronista de seu próprio declínio ao isolamento em seu blog publicado de forma independente.
Se Bill Hamilton perdeu esta batalha em
particular, há um sentimento de que em última instância ele venceu a guerra.
Sua abordagem intelectual mais ampla é certamente mais influente do que nunca,
com sociobiólogos contemporâneos como Steven Pinker, Matt Ridley e Jordan
Peterson vendendo milhões de livros a cada ano sobre os determinantes genéticos
do comportamento humano. O que esses “psicólogos evolutivos” compartilham com
Hamilton é uma atitude “sempre foi assim” [5]: uma convicção de que nós tentamos
progredir para além dos resultados naturais de processos evolutivos—e de
mercado—por nossa conta e risco.
Décadas após o declínio da teoria
OPV/AIDS, essa crença de que a intromissão na ordem natural inexoravelmente
produz desastres ainda paira em grande medida no nosso discurso sobre doenças
epidêmicas. De alguma forma, a interpretação eugenista de Hamilton da hipótese
OPV/AIDS simplesmente reformulava a lógica da primeira teoria sobre as origens
da AIDS: de que o “estilo de vida gay” dos anos 1970 era tão profundamente
anti-natural que vinha junto com uma conta a se pagar.
Nos primeiros dias da pandemia de
Covid-19, o jornalista David Quammen, autor do seu próprio livro sobre a origem
da AIDS, foi ao New York Times explicar o que ele havia aprendido. Assim
como Hamilton, Quammen depreendeu que a humanidade estava pagando o preço de
uma reprodução excessiva. “Nós sabemos pelos registros fósseis, pela ausência
de evidência, que nenhum animal tão grande se tornou tão abundante quanto os
humanos são agora, muito menos extraindo recursos de maneira tão eficaz”,
Quammen escreveu. “Uma consequência dessa abundância, desse poder e dos
distúrbios ecológicos decorrentes é o aumento das trocas virais — primeiro de
animais para humanos, então de humano para humano, às vezes em uma escala
pandêmica”. Em abril, a Simon & Schuster anunciou a aquisição de livro
escrito por Quammen, previsto para ser publicado em 2021, que “irá explicar por
que a atual pandemia ‘era previsível (e foi até prevista)’”.
Quammen recomendou ações enérgicas para
conter o novo coronavírus, mas não é surpresa que muitos comentadores e
políticos tenham chegado à conclusão oposta. O mantra, repetido por todos de
Thomas Friedman a Donald Trump, de que “nós não podemos deixar a cura ser pior
do que a doença”, seria música aos ouvidos de Bill Hamilton. Não é de se
surpreender, portanto, que Richard Epstein, o jurista de direita que
influenciou a resposta laissez-faire da administração de Trump ao vírus,
tenha falado publicamente sobre como ele tem estado por bastante tempo
“encantado” pela sociobiologia.
Os defensores mais fervorosos de uma
abordagem “não façam nada” a pandemia—de Friedman, Epstein e Trump até muitos
outros ex-membros do movimento Tea Party que protestaram contra medidas como
máscaras, distanciamento social e interferências econômicas—são igualmente
devotos a uma visão direitista de desregulamentação, privatização e “livre
mercado”.
O aspecto mais notável da analogia é
que tanto epidemiologicamente quanto economicamente, a abordagem “laissez-faire”,
na verdade, requer muito esforço. Assim como líderes empresariais e políticos
conservadores têm tido que deliberadamente exercer poder para reprimir
sindicatos, realocar contratos de serviços públicos para companhias privadas e
criar novas estruturas para a mobilidade de capital, os líderes que querem
deixar o vírus seguir seu curso terão que sair de suas áreas de atuação para se
contrapor aos especialistas e burocratas de nível mais baixo e persuadir uma
população assustada a sair de casa. Hamilton entendia o paradoxo: a fim de
restaurar o domínio da evolução “natural” sob a humana, ele iria drasticamente
reverter o curso da ação humana ao provar que campanhas de vacinação em larga
escala estavam fazendo mais mal do que bem.
Claro, a história do envolvimento
europeu na África do século XX é dificilmente, como Hamilton e Hooper
insinuaram, uma história de “boas intenções” sendo distorcidas. Como acadêmicos
e ativistas desde Walter Rodney têm insistido, é uma história de “subdesenvolvimento”
deliberado, de esforços em privar as populações em questão de quaisquer
alternativas a realização de trabalhos exploratórios (e de servir como cobaias
para experimentos médicos). No momento em que milhões ao redor do continente
começaram a contrair HIV no fim do século XX, as potências ocidentais já haviam
passado décadas sabotando esforços nativos em construir infraestrutura e
capacidade estatal.
A ironia é que a inação deliberada do
tipo que Hamilton buscava cultivar foi exatamente o tipo de erro humano que, na
verdade, exacerbou a crise da AIDS. Foi o silêncio cruel e a passividade
deliberada, ao invés dos erros da interferência imprudente, que permitiram a
epidemia sair de controle. Nos Estados Unidos, a administração de Reagan foi responsável
por incontáveis milhares de mortes por AIDS por sua recusa em agir, reduzindo o
investimento nacional em saúde e negando auxílio a pesquisadores porque as
pessoas que o vírus estava matando foram consideradas indignas de
tratamento.
Nossa capacidade de ação coletiva diante de uma pandemia tem sido esvaziada por aproximadamente meio século de autossabotagem governamental, de ceticismo frente ao consenso científico e de insistência de que os indivíduos deveriam ser responsáveis pela sua própria saúde. Para ficar claro, as instituições que nós buscamos reconstruir, como sindicatos e a saúde pública, não são mais—ou menos—“naturais” do que a desregulação e a privatização. Nem deveríamos esperar que a ciência e a medicina forneçam um modelo infalível para a ação. Como a carreira de Bill Hamilton e a sociobiologia mesmo ilustram, um doutorado e um jaleco não conferem acesso imediato a verdade ou integridade moral. Mais propriamente, a ciência e a medicina são instrumentos que podem ser usados em favor dos interesses da justiça e da emancipação tanto quanto do poder e das hierarquias consolidadas. O que não é defensável é sentar e esperar o conflito acabar—tentar justificar a inação apelando para a falaciosa noção de “natural”. Gostemos ou não, nós estamos sempre envolvidos no processo de fazer nossa própria história.
Notas de tradução
[1] Nota do tradutor: no original, “a door-stopper of a book”. A maioria dos dicionários em inglês, como o Collins e o TheFreeDictionary, diz que “door-stepper” significa “uma pessoa que vai de porta em porta a fim de pedir votos ou entrevistar alguém”. Mas o Cambridge define também como o ato de “ir em cada casa de uma área determinada vendendo algo ou pedindo ajuda”. Provavelmente o autor quis dizer que o livro não se venderia sozinho e precisava de um certo proselitismo para ser vendido, mas também pode estar se referindo ao fato de ser um livro um tanto a amador que teve que ser vendido sem muita publicidade. Assim, optamos pela ideia de venda “boca a boca”.
[2] Sim, o livro tem mais de mil páginas.
[3] O autor se refere a falácia conhecida como “poisoning the well”.
[4] No original, o autor usa o termo “culling”, um conceito da biologia de difícil tradução, pois ele envolve “o processo de segregar organismos de um grupo de acordo com características desejadas ou indesejadas”. Mas também, quando se trata de gado ou animais selvagens, o “culling” geralmente “refere-se ao ato de matar os animais segregados baseado nas suas características individuais, como seu sexo ou espécie”. Assim, dentro do contexto do texto, pareceu mais lógica usar o termo “sacrifício”, embora tranquilamente poderia se argumentar em favor de “assassínio” ou “abate”.
[5] No original, o autor usa o termo “just-so
story” que se refere a “uma narrativa explicativa intestável para uma prática
cultural, um traço biológico ou comportamento de humanos ou outros animais”.
Pelo caráter naturalizador de tal ideia optamos pela tradução como “sempre foi
assim”.