Nota sobre a religião e a miséria do marxismo sociológico


Por Sidnei Barboza Silva - graduando em Filosofia pela UFRJ

Recentemente vi por aí, mais uma vez, um texto pedindo, em nome da prudência política de objetivos de curto e médio prazo, uma tolerância com a religião, ou melhor, com os religiosos. Antes de mais nada quero sim pontuar que, sim, é necessário para qualquer comunista saber dialogar com religiosos, de forma respeitosa, já que, como bem pontuado no texto que li, cerca de 80% da população brasileira é cristã. Entretanto, não demoraram a vir as vulgatas e falsificações de sempre que os sociólogos e historiadores adoram pontuar na análise da religião.

Um dos aspectos mais destacados é o aspecto supostamente “flexível” da religião, como se a religião fosse uma atividade amorfa, que se acomoda a toda e qualquer condição histórica, ora servindo à revolução, ora servindo à reação. O que estes nobres acadêmicos se esquecem é que a religião é, antes de tudo, uma forma de atividade humana, não uma “forma de consciência” pura e simples, e, como tal, existem determinações que lhes são próprias. Por exemplo, pode existir religiões sem dogmas? Pode existir religiões sem rituais? Pode existir religião sem mecanismos de controle sobre o comportamento dos indivíduos?

Se esse é o caso, então mesmo a mais benevolente das religiões é baseada no controle, na dominação, não na dominação da consciência, mas na dominação real. Antes essa dominação acontecia por sanção de Estado, hoje acontece no seio da chamada vida privada, pela violência e dominação dos pais sobre os filhos. Sendo assim, como conciliar interesses da revolução socialista e interesses da religião?

Então porque a religião parece ser flexível e adaptar-se aos imperativos históricos? Porque a religião não é, como qualquer atividade humana, imune aos imperativos da totalidade social. Mas isso não quer dizer que ela não tenha propriedades que lhes sejam essenciais. E aqui a crítica à sociologia é importante. Motivado, ao que parece, por um apego ao positivismo, muitos das chamadas ciências sociais reduzem a religião a uma atividade sem identidade, porque não são capazes de entender como que isso se encaixaria na visão de mundo positivista, onde essências e identidades são tão úteis para analisar o mundo quanto papai Noel para acabar com a fome mundial. Dessa forma, a religião é intrinsecamente flexível. Mas curiosamente, as evidências para afirmar essa flexibilidade (no caso, flexibilidade para objetivos progressistas ou alinhados aos objetivos dos comunistas) são sempre casos muito raros e específicos de heterodoxia religiosa onde alguns religiosos com identificação com lutas sociais tentam encaixar o dogma religioso na sua perspectiva militante. 

Entretanto, bom lembrar que essas heterodoxias são sempre minoritárias dentro das institucionalidades religiosas e que os religiosos que militam em lutas sociais, como Frei Beto e Leonardo Boff são exceções que na verdade provam a regra. E além disso, vale questionar se ambos, do alto de suas heterodoxias, veriam com bons olhos fazer as concessões aos objetivos totais dos comunistas de transformação total da sociabilidade até a extinção da própria atividade religiosa.

Eis o problema então: se negamos a religião como atividade específica, como uma instância objetiva, com determinações próprias, negamos então a própria possibilidade de sua superação. Tudo muito conveniente! Arrebanhamos, então, os fiéis para a causa do paraíso na terra no comunismo e tudo está bem. Não questionemos, nem por um momento, a violência subjacente ao processo da objetivação da atividade religiosa na sociedade. Basta separar Estado e religião e está tudo certo. Faz o que tu queres pois é tudo da lei - mas a lei quem faz é deus então fica pianinho aí que tua batata está assando.

Mas alguém poderia questionar: por que é tão importante criticar a religião em pleno século 21? Por que se estamos falando de uma alternativa a esse lixo histórico que vivemos, é necessário ter em mente quais são as qualificações históricas para chegarmos lá. E é preciso ter coragem de dizer a verdade: não, a religião não é compatível com esse tipo de sociedade que os comunistas almejam. É bem possível que um processo revolucionário precise, por ato de Estado na objetivação da revolução, acabar com o poder político da religião, e isso inclui uma série de ações, como, talvez, banir a religião do espaço público, proibir o arrebanhamento de menores de idade, banir a religião das escolas, universidades, etc. São apenas sugestões, mas, é bastante plausível que seja necessário, pela força, acabar com o poder das religiões. É claro que a supressão política passa longe de ser condição suficiente para acabar com a religião, até porque a religião é uma forma de alienação, e acabar com a alienação (no sentido da ontologia marxiana, isto é, como uma forma estranhada da atividade humana) requer acabar com a sociedade que a possibilita. Mas talvez seja uma condição necessária, assim como é condição necessária acabar, por meio da violência, com o Capital e com o Estado.

Assim, imagino que para muitos chamados comunistas, isso seria pedir demais. Para muitos comunistas ter uma espécie de capitalismo keynesiano com preservação ambiental e Estado titânico penetrando em todos os poros da sociabilidade tá bom demais. E já que estamos falando de religião, porque não fundar a igreja do marxismo tatcherista? Imagino uma bela catedral com vários marxistas influentes da internet e seus asseclas se reunindo, com um desses grandes influenciadores em um belo púlpito de mármore bem-esculpido com um grande vitral ao fundo com foice e martelo e no seu ponto mais alto os dizeres “There is no alternative”. Seria uma visão magnânima da decadência do que já foi um movimento propositor de uma alternativa real.


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Wesley Sousa

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