Por Ronald León Núñez
Publicado originalmente no site Teoria
e Revolução
Data 20/04/2020
É o espaço acadêmico, como alguns pretendem, imune às ideologias e, por
tanto, o único que permite um conhecimento rigoroso?
Para muitos acadêmicos que estudam a guerra contra o Paraguai é habitual
assegurar que, ao menos desde a última década do século passado, se produziu
uma “renovação” não somente no enfoque da questão, mas na historiografia como
disciplina. Os historiadores mais renomados decidiram batizar o produto dessa
mudança de paradigma como “Nova Historiografia” sobre esse conflito ou, em
termos mais amplos, sobre o decorrer do Cone Sul no século XIX.
O propósito deste artigo não é desenvolver um debate sobre a interpretação
dos fatos que propõe essa corrente –que na realidade tem pouco de “nova” e
muito de reformulação da velha narrativa liberal–. Mas sobre seus critérios
metodológicos.
Seus representantes asseguram haver escrito uma história “objetiva” e
“imparcial”, embasada estritamente em “fatos” comprovados “empiricamente” por
meio de documentos, sem “paixões” nem ideologias. O resultado: “uma análise
mais objetiva da Guerra do Paraguai, mais além de simplificações ou deformações
[…]”, segundo Doratioto (1).
A proposta de uma leitura “nova”, e, também, “neutra”, exerce uma
compreensível atração. Mas se aprofundamos mais, coloca uma série de
interrogantes: Pode o pesquisador deixar “fora da sala” sua concepção de mundo
ao estudar a história ou outra disciplina das ciências humanas? É possível a
neutralidade científica neste campo? Seu principal objeto de estudo, a
sociedade, não está imersa no curso do desenvolvimento histórico da mesma forma
que o sujeito da pesquisa, o cientista social? Existe uma “verdade histórica” a
ser alcançada? Se sim, qual é o melhor caminho para char a ela?
Em qualquer universidade, a maioria dos acadêmicos dirão que a
neutralidade nas ciências sociais não somente é possível, mas uma condição
necessária para alcançar a verdade objetiva –entendida como isenta de
ideologias e, por tanto, pura-. Mas vale perguntar: o espaço acadêmico é imune
às ideologias e, por tanto, é o único capaz de avançar no conhecimento
científico com rigor?
Existem muitas abordagens metodológicas. Mas aqui nos deteremos
brevemente em duas: o positivismo e o materialismo histórico-dialético.
O positivismo, que deriva do empirismo clássico, basicamente propõe que
ciência natural e social são a mesma coisa. A sociedade, com seus males,
estaria regida por leis naturais, invariáveis. Auguste Comte, em um ataque de
franqueza, escreveu: “O positivismo tende poderosamente, por sua natureza, a
consolidar a ordem pública, por meio do desenvolvimento racional de uma sabia
resignação [… isto é] uma permanente disposição para suportar com constância e
sem nenhuma esperança de compensação, qualquer que seja, os males inevitáveis
que regem os diversos gêneros de fenômenos naturais, a partir de uma profunda
convicção da inevitabilidade destas leis” (2).
Como o estudo da sociedade seria equivalente ao da química, a física, a
astronomia ou a medicina, para os positivistas a metodologia mais adequada para
conhecer a vida social é a mesma que vale para a vida natural: observação
cientifica aparentemente “neutra”. Qualquer elemento ideológico, no sentido
amplo, deve ser eliminado para não “contaminarem” a observação serena da
realidade. Não é difícil advertir o caráter conservador deste enfoque. O
próprio Durkheim sintetizou assim a essência do pensamento positivista: “Nosso
método não tem, pois, nada de revolucionário. É inclusive, em certo sentido,
essencialmente conservador, pois considera os feitos sociais como coisas cuja
natureza, por flexível e maleável que seja, não podemos, pese a tudo, modificar
à vontade” (3).
Pelo contrário, o fundamento do materialismo dialético é que não existe
nada eterno, nada fixo, nada imutável. Tudo é perecível. O mundo está em
permanente movimento e transformação. Poderia dizer que este princípio
dialético se aplica na natureza, onde existe uma transformação perpetua, mas
existe uma diferença capital entre a história natural e a história humana. A
história da humanidade é produto das relações sociais entre seres humanos. A
história da natureza, com suas leis, como a formação do sistema solar, os
movimentos da Terra ou a evolução das espécies… não é obra do ser humano. Para
o pensamento marxista, todos os fenômenos econômicos, sociais e políticos são
produtos da ação humana. Não são resultado de leis naturais, universais e
absolutas. Portanto, podem ser transformados. A sociedade, como um todo pode
mudar. Nesse sentido, Marx criticava aos eruditos de seu tempo: “os filósofos
não fizeram mais que interpretar de diversas formas o mundo, mas do que se
trata é de transforma-lo” (4).
O certo é que todo investigador parte de certa orientação cognitiva,
sugerida por sua visão de mundo –convicções ideológicas, políticas, sociais,
religiosas, valores morais, em sínteses, por suas próprias representações da
realidade-.
De acordo com o anterior, toda investigação social –não somente as
conclusões, mas a própria definição do tema, da problemática, o método, etc.–
deriva de uma filosofia e das noções preexistentes na cabeça do estudioso. Isso
significa que toda ciência social nada mais é do que uma expressão, um
fragmento, de uma visão social do mundo. Por tanto, nenhuma escola de
pensamento pode assumir o mérito de poder descrever a realidade de maneira
“pura”, factual, tal qual é.
Não porque não exista uma realidade objetiva comprovável, uma “verdade”
histórica ou sociológica. Mas porque a realidade, nosso objeto de estudo, é por
definição infinito. Está em constante mutação e todo aquele que aspire a
conhece-lo é parte desse mesmo objetivo. A relação entre objeto e sujeito no
estudo social é dialética. Em consequência, o máximo que qualquer corrente de
interpretação –inclusive o marxismo- pode aspirar é aproximar o mais possível
da verdade objetiva.
Por outra parte, a realidade histórica e social está atravessada pela
disputa entre distintas corrente de interpretação. Isso faz impossível que o
pesquisador elimine suas “pré-noções”. Frente a este problema, a saída que o
positivismo –com suas variantes- propõe é, em essência, a autocensura, o
“autocontrole” dos intelectuais. O historiador não deve ter boca, opinava o
historiador alemão Leopold von Ranke.
Nos fatos, o positivismo exige que o estudioso evite o debate
teórico-político com outras perspectivas. Assim, o conhecimento não avança. O
que em si é limitado –a capacidade de conhecer toda a realidade em sua completa
dimensão- foi definitivamente mutilado pela doutrina positivista, incapaz de
aceitar que o cientista social não trabalha –ou não deveria- em um laboratório
asséptico, protegido por um traje que evite a contaminação do mundo exterior,
como se estudasse o novo coronavírus.
O resultado do método empirista, no geral, são trabalhos com excessiva
acumulação documental e escassa interpretação geral. É evidente que existe a
necessidade inescapável de se basear em fontes primárias. Existe a necessidade
de examinar a maior quantidade de fontes no estudo da história, com rigor e
olhar crítico. O que não existe –nem nunca existiu – é a imparcialidade
histórica, não somente na interpretação, mas também na colocação da própria
problemática a ser estudada.
Se o bom uso da documentação é indispensável, também é necessário ter
cautela para não fazer dos documentos um fetiche. O problema reside em que, em
si mesmos, os documentos não podem contar o que ocorreu “tal como ocorreu”.
Nenhum documento poderá expressar mais do que seus autores pensavam sobre algum
fato quando o registraram, descartando no ato outros tantos. No máximo
expressarão aquilo que seus autores queriam que as pessoas pensassem que eles
pensavam ou pretendiam. Por exemplo, o diário pessoal do conde d’Eu durante a
campanha brasileira contra o Paraguai sem dúvida é uma fonte importante, mas é
obvio que, em sua posição de comandante aliado, o conde registrou em suas
memórias tudo aquilo que o convinha que passasse para a posterioridade, e
omitiu o que não (como as atrocidades em Piribebuy ou Acosta Ñu) (5).
Nenhum historiador ou historiadora está em condições de narrar e
analisar os fatos tal como sucederam. Tem, obviamente, a obrigação de ser exato
quando expõe os fatos. Por exemplo, a batalha de Tuyutí ocorreu em 24 de maio de
1866 e não em outra data. Evidentemente, tem também a obrigação de verificar
suas fontes, primárias ou secundarias, mas seu labor não se limita a relatar, o
centro de seu trabalho estará sempre na interpretação desses acontecimentos e
do que está consignado nessas fontes: seu principal trabalho é entender a
dinâmica que explica porque os fatos sucederam deste modo e não de outro; tomar
posição nos debates que o problema coloca; em suma, extrair conclusões. Somente
assim o processo de conhecimento pode avançar.
E essa interpretação derivará inevitavelmente das posições ideológicas e
políticas, ou seja, da visão de mundo que, consciente ou inconscientemente, o
historiador assuma e reproduza. Se consideramos o Paraguai do século XIX, os
próprios conceitos de ditadura, participação popular, revolução,
contrarrevolução, reforma, livre comércio, estatismo, clericalismo, e sua
valoração, implicam inevitavelmente uma visão ideológica. O próprio conceito de
ideologia está sujeito a uma perspectiva ideológica.
Se o que descrevemos até aqui é certo, não procedem as conhecidas
etiquetas com as que o academicismo tenta desacreditar o marxismo: relato
ideológico, panfletário, historiografia militante. Não procedem porque todos
estamos metidos até o pescoço no rio da história. Ninguém está seco,
simplesmente “observando” os acontecimentos desde suas margens.
Por esse motivo, o marxismo não aspira a elaborar uma ciência neutra.
Pelo contrário, busca compreender –para transformar – a realidade desde o ponto
de vista da classe trabalhadora e os setores oprimidos. Dito de outra maneira,
seu enfoque tem um corte de classe.
Rosa Luxemburgo reafirmou esta premissa: “a sociedade real está composta
de classes que possuem interesses, aspirações e concepções diametralmente
opostas, uma ciência social humana geral, um liberalismo abstrato, uma moral
abstrata, são na atualidade ilusões, utopia pura” (6).
Lenin, por sua parte, explicou o problema em termos mais concretos:
“Esperar uma ciência imparcial em uma sociedade de escravidão assalariada,
seria a mesma pueril ingenuidade que esperar dos fabricantes imparcialidade
quanto à conveniência de aumentar os salários dos operários, em detrimento das
ganancias do capital” (7).
Isso significa que, independentemente se o autor admite ou não, toda
análise histórica é e será sempre ideológica. Todo historiador, consciente ou
inconscientemente, ao escrever, estará fazendo política ao serviço de uma outra
classe ou setores de classe.
O aparato das universidades, como reflexo de uma sociedade de classes
que arrastra tradições autoritárias e anticomunistas, pode continuar
anatemizando o marxismo. Isso é compreensível. O inaceitável é que o faça
mascarando seu próprio caráter ideológico. Essa atitude não é honesta. Não é
sério exigir aos demais que eliminem suas pré-noções enquanto ocultam sua
concepção fundamental: a conservação da sociedade burguesa. O leitor,
evidentemente, não tem porque concordar com as ideias políticas do historiador,
nem este tem motivos para ocultá-las.
Por último: a verdade histórica somente interessa
às classes dominadas, não às dominantes. Por isso o ponto de vista das classes
exploradas é o que melhor pode se aproximar ao conhecimento; as teorias
burguesas possuem intencionalmente um caráter de ocultação ideológica, posto
que são parte do mecanismo necessário para legitimar, reproduzir ou estabilizar
a ordem imperante. Nenhum capitalista fala em nome do seu interesse real, mas
do “bem comum”, da “cidadania”, do “povo”, da “nação”. O marxismo, como
doutrina cientifica, aspira a desnudar os mecanismos de exploração do
capitalismo e, por isso, não tem interesse em camuflar seus propósitos nem sua
“ideologia”. A razão é que os oprimidos necessitam alcançar consciência da
realidade como condição para lutar abertamente por seus interesses. Os
opressores necessitam ocultar e dissimular.
Para a burguesia, sua sociedade e sua economia são naturais e eternas.
Para o marxismo, a ordem capitalista é histórica, transitória. Por tanto, pode
ser superado.
Se as ideias dominantes de cada época são as ideias das classes
dominantes, a pretensão de uma suposta imparcialidade histórica não somente é
ilusória, mas nociva, posto que somente contribui a reforçar um dos pilares do
sistema de dominação ideológica das classes possuidoras, que tentam fazer
passar seus interesses como os gerais desta sociedade desigual.
*Traduzido por: Túlio Rocha
Publicado originalmente em: <https://www.abc.com.py/edicion-impresa/suplementos/cultural/2020/04/05/sobre-la-pretendida-neutralidad-en-las-ciencias-sociales-y-la-historiografia/>.
Notas:
(1) Francisco Doratioto. Maldita Guerra. Nova história da Guerra do
Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 20-21.
(2) Auguste Comte. Cours de philosophie positive. Tomo VI. París:
Bachelier, Imprimeur-Libraire, 1839, pp. 190-191.
(3) Emile Durkheim [1895]. Las reglas del método sociológico. México DF:
FCM, 1997, p. 9.
(4) Karl Marx [1845]. Tesis sobre Feuerbach. Disponible en: <https://www.marxists.org/espanol/m-e/1840s/45-feuer.htm.
(5) Rodrigo Goyena Soares (org.). Conde d’Eu: Diário do comandante em
chefe das tropas brasileiras em operaçãon a República do Paraguai. Río de
Janeiro: Paz e Terra, 2017.
(6) Rosa Luxemburgo [1899]. Reforma o revolución. París: Spartacus,
1947, p. 75.
(7) V. I. Lenin [1913]. Tres fuentes y tres partes integrantes del marxismo. En: Obras Completas. Tomo 23. Moscú: Progreso, 1982, p. 40.