Roberto Schwarz (aniversariante do dia 20 de Agosto. Nascido em 1938) |
Publicado originalmente no site Revista Piauí
Abril de 2014.
No
final da década de 60, a “lata de lixo da história” era uma expressão
difundida, levemente fanfarrona. Designava o depósito de velharias ao qual, com
sorte, seriam jogados os políticos, as práticas e as teorias responsáveis por
formas caducas de opressão. Capitalismo e stalinismo iriam embora de braço
dado, no mundo e no Brasil, varridos pelo progresso da história e pelos
estudantes libertários. Entretanto, como se verificou em seguida, o curso das
coisas não foi o esperado, até pelo contrário. E como o sistema dos opressores
se reciclou e venceu em toda linha, a expressão – tão simpática – saiu de moda.
Ainda assim, se consultarmos a nossa experiência e nosso íntimo, talvez
convenhamos que ela, a lata, não perdeu a razão de ser, nem deixou de falar à
imaginação. Por expressar o que devia ter sido e não foi, achei que era um bom
título para uma chanchada política.
A
ideia de transformar O Alienista de Machado de Assis numa
sátira à ditadura de 1964 estava no ar. Havia um paralelo óbvio entre o terror
espalhado por Simão Bacamarte – o cientista maluco e sinistro que infelicitava
a pacata Itaguahy – e o regime antipopular dos militares, com seus ministros da
Fazenda que metiam medo e disciplinavam o país para o capital. Nelson Pereira
dos Santos percebeu as possibilidades artísticas da comparação, da qual tirou
um filme agoniado e interessante, o Azyllo Muito Louco. Em espírito
parecido, houve tentativas também de adaptação para o teatro, entre as quais a
minha. O que todos procurávamos era o respaldo de um clássico nacional acima de
qualquer suspeita, além de remoto no tempo, que deixasse desarmada a censura e
possibilitasse a crítica ao Estado policial.
O
paralelo funcionava como uma via de duas mãos e tinha efeitos retroativos. Não
era só o velho Machado que emprestava personagens e situações para falar da
repressão em nosso presente. O caminho inverso também valia, sugerindo uma
leitura menos convencional do mestre e, por meio dele, do passado brasileiro. O
festival de desfaçatez armado por nossas elites logo em seguida ao golpe, com
sua salada de modernização, truculência e provincianismo, ensinava a reconhecer
aspectos até então recalcados da ironia machadiana. Esta aparecia a uma luz
nova, muito mais ferina e política, de incrível atualidade. Noutras palavras,
as revelações sociais trazidas pelo golpe de 64 desempoeiravam o maior de
nossos clássicos.
Comecei
a escrever A Lata de Lixo em dezembro de 1968, pouco
antes da decretação do AI-5, que afundou o país em anos de terror. Estava
escondido em casa de amigos, cuja biblioteca era boa, e resolvi aproveitar o
tempo. Além do Alienista, tirei da estante O Príncipe de
Maquiavel, e sentei para trabalhar. A gravidade do momento era brutal, mas
ainda assim a grossura dos generais arrancava riso, uma risada algo histérica,
em que se misturavam o medo e a angústia. O clima era de pastelão macabro. Para
exemplificar, quando o general-presidente foi à tevê para explicar a
necessidade de seu horroroso e histórico AI-5, parecia não ter familiaridade
com o texto à sua frente, pelo qual ia tropeçando como podia. Enquanto isso,
nas grandes capitais do mundo, e também entre nós – o ano era 68 –, a
irreverência e o espírito libertário estavam em alta. Por contraste, as figuras
caricatas que passavam a mandar e desmandar no Brasil ficavam ainda mais
deprimentes e exasperantes. Para completar a liquidação, a oposição liberal à
ditadura vacilava entre a prudência apavorada e a adesão oportunista, sem abrir
mão das belas palavras. Mal ou bem, procurei dar forma teatral a essa cacofonia,
casando decoro e pancadaria, grã-finismo e cretinice, cálculo e primarismo etc.
Por
forte que fosse, a pressão das circunstâncias não determinava as soluções
artísticas diretamente. A escolha e a discussão estética estavam na ordem do
dia. Entre 1964 e 1968, a resistência cultural havia respondido com agilidade
ao retrocesso político, inventando espetáculos incisivos, de grande
repercussão, e produzindo algumas obras-primas. Teatro, canção, cinema e artes
plásticas desenvolviam atitudes e formas sob medida, inconformistas em toda
linha, valorizadas pela alusão inteligente ao presente nacional, o que não
excluía a atualização cosmopolita. Como o momento era coletivo, a referência
mútua fazia parte do jogo. Quando partia para o trabalho seguinte, o artista
encontrava pela frente um leque intensamente debatido de obras recém-saídas da
oficina, de um colega ou de um rival, a retomar, a contestar, a superar. As
questões de arte dividiam e agrupavam, e tinham pé no risco político, que lhes
emprestava a chispa especial. Englobando tudo, em linha reta ou quebrada,
prosseguia o impulso do pré-64, com sua combinação de luta contra o
subdesenvolvimento e busca do socialismo.
O desacato
à convenção artística dava a tônica febril ao período. Era um insulto
deliberado ao gosto dos conservadores, que tinham saído às ruas em 64,
marchando por “Deus, pátria e família”, e agora estavam no poder. Como as artes
cênicas – o teatro, o cinema e a canção – estavam defasadas em relação à
literatura, ou melhor, não tinham passado pela revolução modernista de 22, o
escândalo que provocavam tinha a estridência das vanguardas em seu primeiro
dia. Atrás da experimentação formal naturalmente estava o ânimo de revolucionar
a sociedade ela mesma, como aliás apontavam os adversários de direita.
Dito
isso, as novidades não eram só de linguagem, mas também de assunto, o que foi
menos comentado. A temática do subdesenvolvimento marcava época e modificava a
fundo a autocompreensão do país. O desemprego e a fome de Zé da Silva, o
analfabetismo de 40% da população, o beletrismo dos doutores, a falta de vaga
nas faculdades, a indústria precária, a extensão do latifúndio, a força do
imperialismo americano etc. já não eram questões isoladas. As dificuldades
ligavam-se por dentro, ou melhor, compunham um problema avançado, que
cabia aos progressistas encarar em seu conjunto. Cheio de desdobramentos
políticos e estéticos, o significado do atraso nacional se transformava,
adquirindo uma relevância nova, muito mais ampla que a anterior. Com perdão da
brevidade, ele, o atraso, deixava de ser visto inocentemente, como um resquício
de tempos remotos, que dizia respeito só aos brasileiros. Tornava-se
parte funcional – além de significativa – da ordem mundial moderna, que
progredia e se reproduzia através dele, e não levava à sua superação. Em
vez de se extinguir, a distância entre atrasados e adiantados se reafirmava em
novos patamares, ensinando uma visão menos crédula, ou mais sarcástica e
aguerrida do progresso. Segundo uma fórmula corrente na época, tratava-se
do desenvolvimento do subdesenvolvimento, que tinha o futuro pela frente e não
seria coisa do passado. Um desenvolvimento que, salvo viravolta de fundo, era e
continuaria sendo sub. O argumento era contraintuitivo, mas fulminante.
Assim,
as figuras pitorescas ou vexaminosas que alimentavam o nosso complexo de
ex-colônia, tais como a miséria popular, o zé-ninguém sem eira nem beira,
desprovido de quaisquer garantias civis, o político populista malandro, a
dominação pessoal direta, o mau gosto calamitoso das classes dominantes, o
general-ditador de óculos escuros etc., trocavam de contexto para ganhar novo
alcance. Saltavam fora de seu confinamento provinciano e se inseriam no
presente problemático do mundo, de cujos desequilíbrios internacionais e de
classe passavam a ser indícios polêmicos, esteticamente valiosos. Muito
dialeticamente, as matérias do atraso terceiro-mundista, chavões inclusive,
facultavam uma transfiguração de ponta, na qual se reconhecia a atualidade em
sentido pleno, planetário, gerando um tipo particular de vanguardismo. De
diferentes maneiras, com margem para antagonismos inconciliáveis, a arte de
Glauber Rocha, Augusto Boal, Zé Celso, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto
Gil, Joaquim Pedro de Andrade e outros – sem esquecer as antecipações
de Oswald de Andrade – se alimentou dessa redefinição vertiginosa, que fez a
ponte entre a nossa realidade segregada, ou exótica, e o movimento geral da
sociedade contemporânea, num lance forte de desalienação. A seu modo e com
alguma supervisão de Brecht, A Lata de Lixo da História ligava-se
a esse quadro.
De lá para cá, muita coisa mudou, mas nem tudo.