Imagem Edmund Gettier. Filósofo estadunidense (1927-2021). |
Nota introdutória – por Gregory Gaboardi (doutor
em Filosofia pela PUC-RS)
A
questão “O que é o conhecimento?” é tradicional na epistemologia. A resposta
“Conhecimento é crença verdadeira justificada” é igualmente tradicional?
Gettier, em seu pequeno artigo, sugere que sim e que é incorreta. Sobre ser
tradicional, não há grande consenso — cf. Dutant (2015). Seguramente ela não é
tão tradicional quanto Gettier fez parecer. Por outro lado, sobre a resposta
ser incorreta, há maior consenso. Quase tanto quanto se pode esperar em um
assunto filosófico. Os contraexemplos de Gettier parecem decisivos e foi
encontrada até uma receita capaz de gerá-los — cf. Zagzebski (1994).
Desde
a publicação do artigo, os contraexemplos se proliferaram e ampliaram seu
alcance (passando a ameaçar também casos de crenças formadas de modo
não-inferencial, diferentemente dos exemplos originais de Gettier). Reações
variadas foram se difundindo: devemos acrescentar uma quarta condição para o
conhecimento; devemos modificar alguma das condições prévias; devemos adotar
uma condição independente de alguma das condições prévias, que talvez não sejam
todas necessárias; devemos desistir de procurar por uma análise do
conhecimento; devemos eliminar alguma condição prévia; devemos ignorar o
problema.
Algumas
reações são mais razoáveis ou mais populares que outras. Invariavelmente, são
reações que mostram que Gettier atingiu algo profundo. Algo que coloca sob
discussão não só o que devemos pensar acerca do que é o conhecimento, mas
também acerca do que é a sorte, de qual é o papel de contraexemplos e das
intuições filosóficas e do que motiva a busca por análises conceituais. A
literatura sobre casos Gettier é imensa e viva — para um volume recente que
representa isso, cf. Borges, De Almeida e Klein (2018); para uma visão
introdutória e panorâmica cf. Ichikawa e Steup (2017). Porém, até hoje não há
lugar melhor para começar a entendê-la do que lendo o artigo de Gettier. Ele
não deixará de ser um testamento do quanto um trabalho filosófico pode ser
profundo e impactante sem sacrificar a simplicidade e a clareza.
Referências
BORGES,
R., DE ALMEIDA, C., KLEIN, P. (eds.). Explaining Knowledge: New Essays
on the Gettier Problem. New York: Oxford University Press. 2018.
DUTANT,
J. The legend of the justified true belief analysis. In: Philosophical
Perspectives 29 (1): 95-145. 2015.
ICHIKAWA,
J. J., STEUP, M. The Analysis of Knowledge. In: ZALTA, E. (ed.), The
Stanford Encyclopedia of Philosophy. Disponível em: https://plato.stanford.edu/entries/knowledge-analysis/.
2017.
ZAGZEBSKI,
L. The inescapability of Gettier problems. In: Philosophical Quarterly 44
(174): 65-73. 1994.
É a crença verdadeira justificada conhecimento? [1]
Original: Is Justified True Belief Knowledge?
Edmund Gettier - Universidade de
Massachusetts Amherst
Tradução de Célia Teixeira (com revisão de W.J. Silva Filho)
Nos últimos anos fizeram-se várias tentativas para estabelecer as condições necessárias
e suficientes para que alguém conheça uma dada proposição. Essas tentativas têm
sido muitas vezes tais que podem ser formuladas de modo semelhante ao seguinte [2]:
(a) S sabe que P se e somente se,
i. P é verdadeira,
ii. S acredita que P e
iii. S está justificado a acreditar que P.
Por exemplo, Chisholm defende que o que se segue fornece as condições necessárias e suficientes para o conhecimento [3]:
(b) S sabe P se e somente se, i. S aceita que P,
ii. S tem provas adequadas para P, e
iii. P é verdadeira.
Ayer apresenta as condições necessárias e suficientes para o conhecimento da
seguinte maneira [4]:
(c) S sabe que P se e somente se i. P é verdadeira,
ii. S está seguro que P é verdadeira, e
iii. S tem o direito de estar seguro que P é verdadeira.
Irei argumentar que a é falsa, pois as condições dadas acima não
constituem uma condição suficiente para a verdade da proposição de que S
sabe que P. O mesmo argumento irá mostrar que b e c falham
se substituirmos “tem provas adequadas para” ou “tem o direito de estar seguro
que” por “está justificado em acreditar que”.
Irei começar por chamar a atenção sobre dois aspectos. Em primeiro lugar, se tomarmos
“justificado” no sentido em que S está justificado em acreditar que P constitui uma condição necessária para que S saiba que P, então é possível que
uma pessoa esteja justificada em acreditar numa proposição que é de facto falsa.
Em segundo lugar, para toda a proposição P, se S está justificado em
acreditar que P e P implica Q e S deduz Q de P e aceita Q como resultado desta
dedução, então S está justificado em acreditar que Q. Tomando em consideração
estes dois aspectos, irei passar a apresentar dois casos nos quais as condições
estabelecidas em a se verificam para algumas proposições, apesar de ser
ao mesmo tempo falso que a pessoa em causa conheça essa proposição.
Caso I
Suponha-se que Smith e Jones se tinham candidatado a um certo
emprego. E suponha-se que Smith tem fortes provas a favor da seguinte proposição
conjuntiva:
(d) Jones é o homem que vai conseguir o emprego, e Jones tem dez moedas no
bolso.
As provas que Smith tem a favor de d podem ser que o presidente da
companhia lhe tenha assegurado que no fim Jones seria selecionado e que ele,
Smith, tenha contado as moedas do bolso de Jones há dez minutos. A proposição d
implica:
(e) O homem que vai ficar com o emprego tem dez moedas no bolso.
Suponha-se que Smith vê que (d) implica (e) e que aceita (e) com base em (d), a
favor da qual ele tem fortes provas. Neste caso, Smith está claramente
justificado em acreditar que (e) é verdadeira.
Mas imagine-se que, além disso, sem Smith o saber, é ele e não Jones que vai ficar com o emprego. Imagine-se também que, sem o saber, ele próprio tem dez moedas no bolso. A proposição (e) é assim verdadeira, apesar de a proposição
(d), apartir da qual Smith inferiu (e), ser falsa. Assim, no nosso exemplo, as
seguintes proposições são verdadeiras: i) (e) é verdadeira, ii)
Smith acredita que (e) é verdadeira e iii) Smith está justificado a
acreditar que (e) é verdadeira. Mas é igualmente claro que Smith não sabe que
(e) é verdadeira; pois (e) é verdadeira em virtude das moedas que estão no
bolso de Smith, ao passo que Smith não sabe quantas moedas tem no bolso e
baseia a sua crença em e no facto de ter contado as moedas do bolso de
Jones, que ele erradamente acredita tratar-se do homem que irá ficar com o
emprego.
Caso II
Suponha-se que Smith tem fortes provas a favor da seguinte
proposição:
(f) Jones tem um Ford.
As provas de Smith poderão ser que, desde que ele se lembra, Jones sempre teve
um carro, e sempre foi um Ford, e Jones acabou de oferecer boleia a Smith
enquanto estava ao volante de um Ford. Imaginemos agora que Smith tem outro
amigo, Brown, ignorando por completo o seu paradeiro. Smith seleciona aleatoriamente
três nomes de localidades e constrói as seguintes três proposições:
(g) Ou Jones tem um Ford ou Brown está em Boston.
(h) Ou Jones teve um Ford ou Brown está em Barcelona.
(i) Ou Jones tem um Ford ou Brown está em Brest-Litovsk.
Cada uma destas proposições implica (f). Suponha-se que Smith tem consciência
de que (f) implica cada uma das três proposições que ele construiu e que
procede à aceitação de (g), (h) e (i) com base em (f). Smith inferiu
corretamente (g), (h) e (i) de uma proposição a favor da qual tem fortes
provas. Smith está assim completamente justificado em acreditar em cada uma
destas três proposições. Claro que Smith não faz ideia onde está Brown.
Mas imagine agora que se verificam mais duas condições. Em
primeiro lugar, Jones não teve um Ford, mas andava a conduzir um carro alugado. Em
segundo lugar, por uma grande coincidência, sem que Smith soubesse de nada, o
lugar mencionado na proposição (h) é por acaso de facto o lugar onde Brown se
encontra. Se estas duas condições se verificarem, então Smith não sabe
que (h) é verdadeira, apesar de i) (h) ser verdadeira, ii) Smith
acreditar de facto na verdade de (h) e iii) Smith estar justificado a
acreditar na verdade de (h).
Estes dois exemplos mostram que a definição (a) não fornece uma condição suficiente para que alguém saiba uma dada proposição. Os mesmos casos, com as modificações apropriadas, serão suficientes para mostrar que nem a definição (b) nem a definição (c) fornecem tal condição.
Notas
1 Originalmente
publicado em Analysis 23:121-3 (1963), com o título “Is Justified True
Belief Knowledge?”. Os meus agradecimentos aos comentários e correções de Luís
Rodrigues. (Nota do tradutor)
2 Platão parece estar considerando tal definição em Teeteto 201 e provavelmente a aceita em Ménon 98.
3 Roderick M. Chisholm, Perceiving: A Philosophical Study (Ithaca, NY,
1957), p. 16.
4 A. J. Ayer, The Problem of Knowledge (London, 1956).