O mito é, por
excelência, a personificação do homem médio e o caminho que ele encontra para
libertar suas frustrações. (Viagem ao fim do mundo [1968], de Fernando Coni
Campos)
Roland Barthes, nas suas Mitologias, textos escritos entre 1954 e 1956, analisa o rosto de Greta Garbo, ícone e atriz norte-americana dos anos 1920-1930, e suas funções enquanto significante de um dos ramos mais importantes das artes de massa do século XX, o cinema. Na análise da feição de Garbo no filme Rainha Christina (1933), Barthes declara que, para além do sentido denotado da pessoa Greta, há a funcionalidade da atriz Garbo enquanto mito. Enquanto fala que une linguagem e sociedade (ou História, no vocabulário barthesiano), o mito é todo um nível de significação que articula variados aspectos da realidade, inclusivamente fenômenos que interagem com a noção de alienação, homologação de atos, sentimentos e pensamentos individuais, provenientes de todo um esquema que rouba uma forma de comunicação em contraposição à outra, residência dos mitos.
O mito moderno nos remete, antes de tudo, à ideia do mito primitivo. Quando o homem pré-histórico plasmava a sua realidade nas paredes das cavernas através de ações imediatas da sua vida, do seu cotidiano, da sua historicidade, ele fazia o que conhecemos, por atos mitificantes. O homem da modernidade, do modo de produção capitalista, segue fazendo mitificações: porém, agora, o mitológico, detido pelos aparelhos e mecanismos da sociedade burguesa, tem seus temas e objetos com aspectos muito raramente “imediatos”, isto é, os eventos ocorridos entre, digamos, um público e o mito são mediados por incontáveis sistemas, sejam comunicativos, midiáticos, institucionais e afins. No meio desse fato, o mito moderno deforma o sentido das coisas, dos objetos, dos fenômenos sociais, dos signos no geral. Enquanto inconsciente, ele é um parasita que aliena a mensagem, o destinatário, o código e o próprio emissor. Uma parole que se sustenta atrás da denotação, última conotação das conotações, e que pode inverter todo e qualquer sistema dos signos sociais, inclusive nas artes, no cinema, como na imagem fílmica em que o rosto de Garbo, para Barthes, é, semiologicamente falando, um artifício para a busca de outra significação. O mito está acontecendo por detrás e para além da forma retórica em si, o que podemos inferir que ele é a articulação entre os sistemas conotativos, denotativos e a ideologia em sua particularidade histórica.
Myths: The Star (Greta Garbo). Andy Warhol, 1981 |
A
imagem, sendo possuidora de um lexis, traz consigo tanto o significante
presente, o seu plano de expressão, quanto o significado emergente, na linha do
plano do conteúdo. Barthes, para mais, nos dá, bebendo categoricamente da
análise do dinamarquês Louis Hjelmslev sobre a semiótica, a problematização da
conotação. Diz o semiólogo francês que há um veículo linguístico, uma
articulação sígnica, que extrapola o denotatum. É uma das chaves em que
a aglutinação entre os meios retóricos e as motivações ideológicas pode ser
compreendida. Esse outro vínculo, quer dizer, outro polo de sistema de signos,
a conotação, é formado a partir do primeiro, onde há imbricação de um no outro
para o desenvolvimento de outras articulações da linguagem, como os tropos
utilizados em funções de poética e estética. Subsiste a circunstância do que
poderá ser chamado de díade denotativa-conotativa, em que menos pesa seu
funcionamento enquanto sistema do que a tendência de uso e prática humanas em
todos os níveis sociais de condicionamento linguístico e semiótico, que originam,
para a forma do mito, os exploradores da língua. É para ser notado que a
relação é uma condição formal, nunca homogênea nem linear, dependendo do
contexto e ideologia existentes na fala, que acomodam o mito enquanto segunda codificação
(ou segundo complexo de signos).
O
que pode ser entendido a partir disso é que o mito, através das formas
retóricas e ideológicas, que se plasmam no modo denotação-conotação, aparece
como uma espécie parasitária de sistemas semiológicos. É daí que origina o seu
poder de persuasão, refletida na consciência da recepção mitológica, cuja
existência depende não só de um modo de produção específico como o capitalismo
(tardio, feitor e difusor de imagens), mas também de maneira essencial do
momento ético e moral das classes sociais em seu aspecto sincrônico. Apesar
disso, a maioria dos mitos é incônscia, atingindo momentos de neurose coletiva
a uma faixa da população a partir do século XX (o caso da comic strip Terry
e os piratas frente aos americanos durante a II Guerra Mundial, de Milton
Caniff, seja a maior representação do problema), mesmo quando a parcela da
sociedade não tenha tido ciência de quando um mito pode determinar tendências e
formas sociais. A exceção parece advir justamente de todo o aparato consciente
de alguns poucos em formar novos mitos a cada dia (na publicidade, em que as
funções da linguagem, poética e emotiva, são, na maioria dos casos, a dupla
persuasiva que fixa o signo como bem entende).
Há
a identificação da imagem do rosto de Garbo ao patamar do ideal platônico, isto
é, tomado na sua singularidade como perfeito e universal, longe da carne que
apodrece a essência da ideia, do imutável. Garbo é uma deusa descida ao plano
terreno, representação dos anseios inconscientes de uma sociedade cada vez mais
mítica, seja ela em que forma e em que área estiver: no cinema, nas histórias
em quadrinhos, na publicidade, na televisão, na canção etc. Apesar do escrito
de Barthes ter sido publicado nos anos de 1950 e de seu objeto mítico ter sido
originado 30/20 anos antes, ele revela uma relevância atual que, demonstradas
as devidas especificidades, o modo de como o mito opera ainda é o mesmo:
através dos estereótipos, da naturalização de certos sentidos (históricos), de
inocentar determinadas formas da linguagem no bojo da operação do signo. De
mascarar, enfim, o real, que acaba operando referente à lógica de uma
mitificação qualquer.
O
rosto de Greta Garbo é um mito no que concerne a: é um repraesentatio
sígnico, arquétipo, forma inconsciente de um dado conceito; é, a partir da
primeira proposta, algo que põe em situação todo um aparato cognitivo de
aspirações e desejos da massa; e “supera” o sentido literal das suas
características morfológicas. Barthes demonstra Garbo modelo-mor da passagem de
um tipo de cinema, o mudo, em que as expressões gestuais e faciais, advindas do
teatro, eram muito mais consideráveis na narrativa cinematográfica que depois
da introdução do som falado. Existe a diferenciação entre um arquétipo de uma
mulher e outra, entre uma idade do cinema e outra. Entre Garbo e Audrey
Hepburn, igualmente mito, mas não da mulher-conceito, e sim da mulher-substância,
do fato em contraproposta à deificação. Essa demonstração é sugestiva e
objetiva uma indagação: se em cada época histórica um mito pode se qualificar
como específico - mesmo o objeto, a atriz de cinema, ter permanecido -, de que
maneira se pode pensar numa ação antimito? Aparentemente, não existe
nenhuma possibilidade, enquanto a sociedade da mercadoria existir, da noção do
mito moderno acabar. Se o mito expressa algo de verdade, é precisamente em
relação à demanda afetiva que tem ligação com a crise que emerge dentro das
manifestações do valor de troca na Indústria Cultural. A fala mítica, que se
apoia em diversas linguagens, no capitalismo, seja ele difuso ou concentrado, é
a representação de uma crise que tem sua origem na modernização.
É
importante frisar que a análise feita por Barthes cabe à imagem, ao ícone
propriamente dito, não à forma do cinema. No entanto, ocorre que, para além do
discurso específico cinematográfico, há o discurso imagético (nele, o fotograma
aparece sendo pressuposto dentro do escopo estrutural fílmico), que configura
as cenas e tomadas de um filme, por exemplo. O recurso do close-up foi
uma tópica do cinema mudo, usual em larga escala nas mais variadas vezes,
expressando, diz Barthes, uma idade iconográfica que causou tipos de
"delírio coletivo" ou de sonhos significativos, formatando a ideia de
reconhecimento do público em face do objeto cultural (nada muito diferente do
que Walter Benjamin disse, se referindo a ligação de Mickey Mouse e a sociedade
mundial dos anos de 1930).
A
semiótica estrutural barthesiana explica que a diferença entre as imagens
produzidas pela publicidade, pelo filme, pelo esporte, pela política etc. é
heterogênea, mas que em todos esses empreendimentos poderão haver conotações
míticas. Não à toa, Barthes, na primeira metade dos anos de 1960, discutiu os
termos que delineariam retoricamente a imagem. O discurso analítico sobre o
anúncio das massas Panzani foi um pontapé inicial para os estudos sobre a
imagem na semiologia, considerada também configuração expressiva repleta de
códigos e funções, apesar de uma significativa parte dos linguistas, pelo menos
naquele momento, não ter afirmado positivamente a proposta. Esse empenho
barthesiano se dá, talvez, pela retomada estudiosa da Retórica antiga, que
tinha uma das preceptivas ligar a ação verbal à ação icônica (o ut pictura
poesis de Horácio como um exemplum). Outros exercícios também
contribuíram, como a analítica, em 1967, de John Berger, sobre a fotografia de
Ernesto Che Guevara morto pelo imperialismo na Bolívia, o exame sobre a fotografia
(em geral) de Susan Sontag em 1977 e a crítica das imagens, de Jean-Luc Godard
e Jean-Pierre Gorin, em Letter to Jane (1972), onde se mostra e
problematiza, tendo bases alguns jornais e revistas burguesas, a foto da vedete
Jane Fonda com revolucionários vietnamitas, discutindo sobre a Guerra do Vietnã.
Urge lembrar, é claro, algumas disposições de semióticas nesses mesmos anos e
autores como Umberto Eco, que também reagem em torno da tentativa da análise dos
ícones, que podem se tornar figuras e, consequentemente, mitos.
Em
suma, o mito existente no rosto de Garbo poderá não apenas servir de
compreensão para uma questão mais ou menos superada nos limites do cinema, mas
com igualdade, hoje, para exemplificar várias tendências que podem ser vistas
numa unidade que o próprio capitalismo engendra, que a civilização mitifica. O
mito, assim, pode estar tanto à esquerda ou à direita, no Superman ou na
Nouvelle Vague, na ficção ou na realidade, em Josef
Stalin ou em Adolf Hitler, de modo que pode abranger todos os níveis
significantes da vida moderna. Sob uma perspectiva radical, a feitura do antimito
foi estabelecida ao longo do século XX. Os signos revirados numa práxis de semioclastia
por alguns teóricos (incluso Barthes), ato análogo à crítica desapiedada que
Karl Marx fez à economia política no século XIX, em conluio com as práticas das
vanguardas, do surrealismo ao dadaísmo, foram algumas tratativas estabelecidas
no século anterior que, direta ou indiretamente, se configuraram como ângulos e
horizontes cujas intenções puseram em xeque, de modo parcial ou total, a noção
do mito na cultura e sociedade burguesas. Todavia, as manifestações
supracitadas não conseguiram, na prática, a superação da problemática,
enquanto limitadas a especificidades históricas, chegando à transformação de
novos mitos.
Aqui,
o fenômeno problemático, a subordinação da crítica à lógica dos significados
mitológicos, é outra estrutura imperante no contexto do capitalismo tardio na
cultura: objetos críticos às mitologias que se converteram também em mitos.
Parece, pincelando a coisa, que o capitalismo se comporta como vampiro, Conde
Drácula, sugando as energias vitais das matérias existentes no social. Aparentemente,
a situação busca ver o modo de produção imbricado nos símbolos do consumo (e
vice-versa), identificando como a reificação da linguagem, historicamente
determinada, acompanha a reificação do cotidiano humano, permeando ambos os eventos,
questionando os índices que se plasmam autenticidades forjadas pela história. O
mito não é eterno nem natural, mas histórico e, como histórico, é perecível. A
análise das formas, que se relacionam com as análises da ideologia, da história
e dos signos, encontrará ensejos que podem servir em arma de crítica ao atual
estado de coisas, ao capital.