Por
Wesley Sousa – graduando em Filosofia pela UFSJ
Quando
se fala em política baseada em evidências, surgem duas questões[1]: o que se entende por
“evidência” nesse caso ao tratar da política? E o que é característico da
política que se basearia em evidências, diferencia ela da política que não
seria assim? A política baseada em evidências serve mesmo para dar conta de
fenômenos sociais contingentes?
A
segunda questão se refere àquelas que, para “aplicações” de soluções políticas
baseadas em “evidências”, bastar-se-iam pesquisas de “rigor” para fundamentar
decisões públicas em disputas – como forma de gestão social. A política, como é
largamente sabida ao longo da tradição filosófica, trata de fenômenos
contingentes (post festum), de assuntos que fogem ao escopo de
“verificacionismo” científico (o que é plausível, pois a sociedade tem suas
tendências próprias em relação aos fenômenos naturais). A ciência da política,
para sermos diretos, está colocada no sentido de que não sendo uma política
científica, como pretendem os defensores da ideia de “política baseada em
evidências”, se coloca no plano da análise crítica de fenômenos postos objetivamente
na vida comunitária e em suas dinâmicas.
Para exemplificar nosso argumento, em “A Política”, Aristóteles
utiliza-se do termo política para um assunto único e bastante específico: a
ciência da felicidade humana (Eudaimonia). A felicidade
consistiria numa certa maneira de viver, no meio que circunda o homem, nos costumes e nas instituições adotadas pela comunidade à qual
pertence. O objetivo da política seria, em primeiro lugar, descobrir a maneira
de viver que leva à felicidade humana, isto é, sua situação material, e, depois, a forma de governo e as instituições sociais
capazes de a assegurarem. As relações sociais e seus preceitos são tratados
pela ética, enquanto que a forma de governo se obtém pelo estudo das
constituições das cidades-estados, matéria pertinente à política própria e seus desdobramentos.
“Em todas as artes e ciências o fim é um bem, e o maior dos bens e
bem em mais alto grau se acha principalmente na ciência todo-poderosa; esta
ciência é a política, e o bem em política é a justiça, ou seja, o interesse
comum; todos os homens pensam, por isso, que a justiça é uma
espécie de igualdade, e até certo ponto eles concordam de um modo geral com as distinções de ordem filosófica estabelecidas por nós a
propósito dos princípios éticos” (Aristóteles – A Política, Livro 1 –
tradução minha).
O que
é importante para nosso problema, a ideia de uma “teoria” da política como
evidência (científica, no caso), paradoxalmente, é que ela repõe que as
formações de crenças políticas estariam vinculadas de quanto elas seriam
refratárias de uma revisão lógica de uma “coerção social” problemática, que
existe para sua manutenção: ou seja, a política, tal como entendemos, fosse
menos “política” por não ser científica (ou seus preceitos baseados em teorias
científicas, um “método”), e não sua expressão real que se tem no mundo empírico
determinado. O modo como alguém forma suas crenças políticas, como as mantêm,
como as modificam e como as justificam, é objeto de um sem-número de estudos em
áreas da filosofia, por exemplo (e das ciências sociais, mas com outro tipo de
abordagem).
No
entanto, para o segundo problema, precisamos nos ater ao que se diz como sendo
o “senso comum” (o que não seria “científico” na política). Nesse caso, se o
intuito seja de que os defensores da política baseada em evidências levantem
suas bandeiras, para que esse “senso comum”, no final das contas, visariam eles
criticar, então o problema não é “científico”, mas “político”. Como demonstro, a
sua ressignificação científica não torna a política distintivamente mais ou
menos do que ela já é aqui: o “senso comum” político adquire mesmo um sentido
específico em língua portuguesa, inclusive. Esse sentido foi bem definido pelo
Houaiss: “conjunto de opiniões, ideias e concepções que, prevalecendo em um
determinado contexto social, se impõem como naturais e necessárias, não
evocando geralmente reflexões ou questionamentos”.
Isso
quer dizer que a “aplicação” de propostas ou de “resoluções” sociais, que
saltam das ideias para a realidade, e não oposto, tem-se um erro fatal para
pensar a “política baseada em evidência”. Se as evidências precisariam ser
repostas antecipadamente a evitar o “senso comum”, a teoria não é científica,
mas política no sentido mais comum. A filósofa da ciência, Susan Haack, adverte
que, um dos principais sinais de cientificismo, seria o de “Negar ou denegrir a
legitimidade ou o valor de outros tipos de investigação além da científica, ou
o valor de atividades humanas outras além da investigação, como a poesia e a
arte” (HAACK, Susan. Seis sinais de cientificismo).
Pensemos
realmente o que se trata das “evidências” na política. Se nossas crenças estão justificadas
quando correspondem com a realidade empírica, geralmente não é fácil
estabelecer que essa correspondência se detenha realmente. O “imediato” das
apreensões de mundo e de suas vicissitudes, constitui o abstrato do
conhecimento social. Em palavras diretas: aquilo que se reivindica como
“científico” no mundo político, apenas é um modo abstrato de assimilar as
contradições reais e, mais ainda, seus fundamentos. Assim, a pretensão
científica passa a ser um princípio metafísico para se ligar às formas de
“ciência” dos fatos políticos no mundo contemporâneo.
Essa
forma abstrata de pensar o mundo, em que se calcam as ideias de uma
possibilidade de fazer “política baseada em evidências”, segundo
querem essas pessoas[2], Hegel explica:
“Mas
de fato, essa certeza se faz passar a si mesma pela verdade mais
abstrata e mais pobre. Do que ela sabe, só exprime isto: ele é. Sua verdade
apenas contém o Ser da Coisa; a consciência, por seu lado, só está nessa
certeza como puro Eu, ou seja: Eu só estou ali puro este, e o
objeto, igualmente apenas como puro isto. Eu, este, estou certo desta
Coisa; não porque Eu, enquanto consciência, me tenha desenvolvido, e
movimentado de muitas maneiras o pensamento. Nem tampouco porque a Coisa
de que estou certo, conforme uma multidão de características diversas, seja um
rico relacionamento em si mesma, ou uma multiforme relação para com outros”
(Hegel – Fenomenologia do Espírito. Itálicos do autor).
Vejamos,
também existe um outro sentido de senso comum, que recentemente foi
ressuscitado pela nova-direita brasileira (geralmente os “racionalistas” que,
adstritos à um envergonhado reacionarismo político, justificam suas crenças na
“ciência”). O fundo teórico dessa “teoria” em autores como Russell, Kirk,
Oakeshott e semelhantes, a nova-direita, podemos dizê-la, crê que senso comum
são as crenças que se mostraram vantajosas na existência da sociedade e que,
por isso, deveriam ser mantidas como guias existenciais, morais, sociais.
Assim, bastaria um passo para “cientificizar” o senso comum. Em outras
palavras, a ideia de “política baseada em evidências” se revela muito mais uma
crença ajustada com dados para o que o cientista constroi o seu respectivo
objeto, calcado num racionalismo formal pueril. Para isso, esses sujeitos
precisam partir do pressuposto epistêmico que estão “acima das ideologias”. Ou
seja, nada mais ideológico do que se dizer “sem ideologia”. Porque, grosso
modo, ideologia não é o dizer sobre si mesmo de algo, mas assimilar algo do
que se diz da realidade.
Com
isso, os “fatos científicos” são confundidos com os dados – logo sua
“conclusão” seria científica. Se estes são produtos do saber acerca do ser,
portanto, pertencentes ao campo de conhecimento, àqueles são estados da coisa
como elas são, isto é, do campo do ser. É correto afirmar que os dados nunca
são “puros” ou “neutros”, pois, ao contrário do que a pretensão científica do
que não o seja, no imediato e, principalmente, a partir do que o positivismo
trouxe para nós, o sujeito do conhecimento não é passivo ou “neutro”: nós
sempre interpretamos os fatos e, por isso, assim mesmo, produzimos dados
querendo ou não. Mais do que isso, nós ressignificamos tais dados em nossas dinâmicas
de mundo para sua própria compreensão.
Trotsky
ao tratar do tema do senso comum científico, referindo-se ao common sense,
e a crítica dele era a de que ele só poderia funcionar em ambientes muito
restritos; e que tomá-lo por guia à maneira como quer a neo-direita brasileira
seria “completa imbecilidade”. Em suas palavras:
“O ‘bom
senso inato em todos os homens’ é a terceira vítima. Esta forma inferior do
intelecto, sempre necessária, é também, em certas condições, suficiente. O
principal capital do bom senso é constituído por considerações elementares
obtidas da experiência geral: fique longe do fogo, [...] prefira a estrada
principal, [...] não cutuque o cachorro que dorme, etc. Num ambiente social
estável, o bom senso é mais do que suficiente para comerciar, curar os doentes,
escrever artigos, dirigir um sindicato, votar no parlamento, fundar uma
família, crescer e multiplicar-se. Mas, mal ele tenta escapar de seus limites
naturais e invadir o campo das generalizações mais complexas, ei-lo que não é
mais do que um conglomerado dos preconceitos de determinadas classes, em
determinado período. A simples crise do capitalismo o desconcerta; diante de
catástrofes como as revoluções, as contrarrevoluções e as guerras, o bom senso
demonstra sua completa imbecilidade. Para compreender as convulsões ‘catastróficas’
do curso ‘normal’ das coisas [crise do capitalismo] são necessárias qualidades
intelectuais mais elevadas, cuja expressão filosófica, até hoje, só o
materialismo dialético garantiu” (Trotsky – Moral e revolução).
Os ideólogos da “política baseada em evidência” (no sentido
de produzirem ideias e ter consciência delas) que pensam a questão científica
da política, não consideram a forma mesma desse desenvolvimento social,
concretamente, na história: o consequente trabalho escravo, surgindo
a divisão social do trabalho, a divisão entre trabalho intelectual e manual e a
divisão da sociedade
em classes.
É somente nessa divisão construída historicamente e de modo efetivo –
culminando no
surgimento da política tal como entendemo-la – repõe como necessidade que o
controle do trabalho, dos modos de realização da distribuição e consumo e de
seus processos efetivos, bem como da decisão dos produtores se
aliene na classe que domina e personifica o processo de exploração.
Assim, como Kosik, expõe, a perspectiva teórica que visa um
a priori das explicações causais dos fenômenos socias, as formas
positivistas, idealistas e até mesmo empiristas, partiriam de princípios
particulares, mas que, nos fundamentos de separação dos elementos “não
científicos”, como as ideologias, a propriedade privada, etc.
“Enquanto o idealismo
isolava os significados da realidade material, e os transformava em realidade
autônoma, do outro lado, o positivismo naturalista despojava a realidade de
significados. Com isto se levou a termo a obra de mistificação, pois a
realidade podia ser considerada tanto mais real quanto mais perfeitamente dela
fossem eliminados o homem e os significados humanos” (KOSIK, Karel. Dialética
do concreto).
Essa determinação é geral de toda a sociedade de classes,
mudando suas formas particulares em momentos históricos
determinados pelo desenvolvimento das forças produtivas e as possibilidades
objetivas que derivam das formas do trabalho de que essas forças se revestem.
(Lembrando que a
história não é redutível a “luta de classes”, mas sim um de tantos outros
componentes dela.)
Desta maneira, a luta
de classes, pela qual a nossa sociedade específica, produtoras de mercadorias,
é ponto chave para compreender tal fenômeno, ou melhor, uma
“prioridade ontológica”: a
política é, sem pestanejar, um efeito objetivo da luta de classes. Esse fenômeno
que foi consolidado apenas nos escritos de Marx – embora existentes de modo
mais tímidos em várias filosofias anteriores, inclusive Adam Smith, Rousseau[3] e Hegel, por exemplo –
teve a capacidade de
desvelar, à luz do “materialismo histórico”[4], sobretudo, como a
luta de classes está travada não apenas em um âmbito comumente entendido, mas no
próprio entendimento político, no jogo “institucional”, na formação
de partidos (que
condensam ideias de grupos específicos em disputa), etc. E isso, longe de ser
um jogo “retórico”, é parte de um elemento objetivo e concreto. Novamente
Hegel:
“Considerar algo
racionalmente não significa trazer uma razão ao objeto e elaborá-lo com ela,
mas sim que o objeto é para si mesmo racional. Aqui, é o espírito em sua
liberdade, a mais alta afirmação da razão consciente de si, que a si mesma se
dá a realidade e se realiza como mundo existente. A ciência apenas se limita a
trazer à consciência este trabalho que é próprio da razão da coisa” (HEGEL,
1997, § 31, nota, In: Princípios da Filosofia do Direito).
Estes
seres – os que pensam a “política baseada em evidência” – querem mesmo
produzirem seus objetos da forma como querem, assim o montam e o desmontam com
seus “olhares” em pilhas de textos, artigos e teses, com a consciência
tranquila que não foram dogmáticos ou ortodoxos. Em nome da “evidência”, não se
vê a maçã ou a banana, mas debruçam sobre a “fruta” em abstrato, ou seja, não
os predicativos da política, seus contornos que a caracteriza, mas as formas
puras da “política” para ser praticada cientificamente. O problema aqui é o que
se diz sobre ser ou não ciência. Só a partir daí a discussão pode ser realmente
ter sentido.
Portanto,
se observa aqui que a “abertura às ideias” e a pluralidade delas, desvia-se à
justificação de quem abandonou a qualquer pretensão de conhecimento objetivo,
como de fato, a política se constitui e se vincula na sociedade de classes.
Na verdade, todo esforço da “política baseada em evidência” pode não ser
ingenuidade, mas a ingenuidade é pensar que as evidências apontarem não ter
sentido a “ciência” como resolução própria de problemas que, na ciência, não
perpassem.
Em
troca de meros devaneios e debates escolásticos, que são esquecidos pelos
ouvintes tão logo levantam de suas cadeiras, as tentativas de falsear a
realidade à gosto do objeto “científico”, é um tipo de filosofia ou ciência que
pensam dizer algo da realidade, ou seja, julgam ter rigorosamente científica; e
seus dados, por quais quer que sejam, apenas adornam ad hoc, as
premissas embutidas nessas tentativas. Justamente é assim como a pilha de
textos que podem até mesmo sofrer aquele processo do ser inorgânico, negado
pelos nossos ilustres teóricos e comentadores, que é a combustão e a
transformação da forma de matéria do papel em cinza sem que haja grande
prejuízo para a humanidade.
Poderia comentar mais detalhes. Porém, no limite que me dispus
a fazer, penso que já seja o suficiente. No geral, o que argumentei e defendo
nesse texto em tela, em suma, não é
que a ciência não possa dizer nada sobre assuntos políticos, mas que, por si
só, a ciência diz muito pouco para a política. Dizer algo sobre alguma coisa não quer dizer explicá-la. Pelo
contrário. Por isso, antes de nos perguntarmos se “como
fazer da política uma coisa científica?”, seria melhor perguntar: “qual
política eu adoto para chamar ela de científica?”. Aí, nesse caso, faria mais
sentido.
Referências
ARISTÓTELES.
A política. Quilmes: Prometeo, 2015 [em espanhol].
HAACK,
Susan. Seis sinais de cientificismo. Disponível em < https://www.researchgate.net/publication/305851126_Seis_Senais_de_Cientificismo_2012 >.
Acessado em 30 de agosto de 2021.
HEGEL,
Georg. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 2014.
HEGEL,
Georg. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
KOSIK, Karel. Dialética do concreto. 7ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
[1]
Agradeço ao amigo Gregory Gaboardi (doutor em Filosofia pela PUC-RS) por seus
comentários sugestivos em algumas partes do texto.
[2] O
vídeo que motivou esse texto de refutação, é de um aluno de graduação em filosofia.
Foi sugerido por uma amiga para minha “apreciação”. De algum modo, penso que
esse vídeo sintetiza o raquitismo da teoria.
[3]
Cf. SMITH, A. A riqueza das nações. Cf. ROUSSEAU, J. O contrato
social.
[4]
Para ler mais sobre a questão: MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã.
São Paulo: Boitempo, 2007.