A ESTÉTICA DA MODERNIZAÇÃO
Tradução
de Cláudio Roberto Duarte.
Da cisão à integração negativa da arte
A
cisão entre vida e arte é um antigo tema da modernidade. Todos os artistas que
querem dar verdade à expressão – e que se desgastam existencialmente nas suas
criações – acabam sempre sofrendo essa separação. Que ela exiba a beleza ou a
estética do feio, que exerça a crítica radical ou busque a descoberta da
riqueza de formas da natureza, que tenha orientação realista ou fantástica: a
arte ficará sempre separada da sociedade por uma parede que pode ser de vidro
transparente, mas é intransponível. Seus artefatos ou nunca foram observados
antes ou então são mundialmente celebrados já desde o nascimento como objetos
mortos e museológicos. O artista surge como uma figura da tragédia antiga:
assim como a água e as frutas escapavam sempre de Tântalo, da mesma forma
escapa-lhe a vida; assim como o Rei Midas tinha de ficar faminto, porque tudo
se tornava ouro a seu toque, o artista também vive faminto como ser social,
porque o seu toque transforma tudo em pura exposição. E como Sísifo, ele rola a
sua pedra em vão – sua obra permanece sem mediação com o mundo.
Todas
as tentativas da arte para quebrar o seu gueto de vidro têm sido inúteis. Artes
plásticas montadas industrialmente, tal como as pinturas nas paredes dos
escritórios, são sempre corpos estranhos. Leituras literárias em igrejas ou
escolas nunca conseguem ultrapassar o seu caráter de obrigatoriedade. Quando os
dadaístas tomaram a dúvida como meio de provocação, colocando canos
enferrujados e mictórios nos salões sagrados da arte para escarnecer da
burguesia, essa proposta foi tomada com feroz seriedade como objeto estético e
catalogado como as esculturas de Michelangelo ou quadros de Picasso. A
definição tautológica é: arte é tudo aquilo que a sociedade a
priori percebe em um reservatório separado denominado “arte” e que nessa
condição pode ser assim colecionada, sem considerar o seu conteúdo, tal como
selos ou escaravelhos espetados. Pouco importa o que a própria arte pretenda e
como o apresenta: tudo perde o corte e se torna inofensivo. Para as elites
capitalistas o artista não é mais o bobo da corte, mas sim – e no melhor dos
casos – um fornecedor especial, como o mercador de vinhos ou o confeiteiro.
Alguém, em suma, de quem não se compraria um carro usado e que não se quer como
genro. Tal é, em todo caso, o seu estatuto na modernidade clássica.
A sociedade moderna costuma encarar seu
próprio modo de existência e as suas categorias como supra-históricas e
humanas em geral. Se há algo de podre e realmente insuportável nesse
sistema, então isto não deve ser nunca um problema histórico e superável pela
crítica, mas sempre uma condição simplesmente insuprimível da existência, com a
qual a humanidade lamentavelmente tem de viver. É através da lente dessa ontologização que a modernidade
percebe também o dilema da separação entre arte e vida. Tudo é visto como se o
artista na Grécia Antiga tivesse sido como hoje um vendedor de suas
possibilidades, e como se os antigos egípcios exibissem as suas pinturas de
deuses em galerias e museus ou em leilões, com etiquetas de preço.
Mas
as civilizações antigas não tinham “arte” nem “cultura” tal como as entendemos
hoje. Isso quer dizer que a estrutura moderna – feita de esferas separadas e
independentes entre si, também determinadas pela nossa linguagem e pelo nosso
pensamento – é totalmente estranha às sociedades antigas. Embora elas também
tivessem deficiências humanas, problemas e relações de dominação social, a sua
existência não estava decomposta em áreas funcionais separadas. A moderna
teoria dos sistemas trata isso como uma falta de ‘diferenciação’, com o que se
insinua um indicador de primitivismo: quanto mais integrada a sociedade, também
mais primitiva; e quanto mais “diferenciada" tanto mais “desenvolvida” é a sociedade e tanto maior o número de oportunidades
que ela oferece – assim afirma o sistema de pensamento burguês tardio. Como
sempre desde o Iluminismo, a modernidade capitalista aparece como o coroamento
da história, embora haja algo de deplorável em ver nela a mais alta e
insuperável aquisição da evolução social, em que o homem funcionalmente
reduzido se apresenta apenas como o ponto de intersecção entre as estruturas
sistêmicas.
Mas
as sociedades pré-modernas não eram, na realidade, primitivas, mas sim
altamente diferenciadas; o que ocorre é que esse tipo de diferenciação não
corresponde ao conceito moderno. As sociedades antigas, predominantemente
agrárias, não tinham uma cultura, mas elas eram uma
cultura. Isso se expressa na nossa utilização científica da linguagem, na maior
parte das vezes de maneira irrefletida: nós falamos sem mais da “cultura” do
Egito Antigo, da Mesopotâmia e da Antiguidade, querendo com isso, via de regra,
nos referir tanto aos artefatos especiais e representações artísticas (da
escultura, pintura, literatura etc.) quanto, por outro lado, à respectiva
sociedade como um todo e a sua estrutura social. Quando, entretanto, falamos de
“cultura moderna”, queremos nos referir sempre a um aspecto específico de
formas de expressão e nunca ao sistema social como um todo. Assim, “sabemos”
automática e inconscientemente que a ‘cultura’ já foi o todo e não uma esfera
funcionalmente separada para a edificação do museu dominical dos homens
ganhadores de dinheiro.
De
fato, o sentido da palavra latina ‘cultus’,
que deu origem ao conceito, está ligado tanto a “plantação”, “agricultura”
quanto a “serviço divino”, “sociabilidade”, “formação” e até mesmo “vestimenta”
(em certas ocasiões). Essa conceituação multi-estratificada indica o caráter de
integração das antigas sociedades agrárias. Os conteúdos e formas diferenciados
tal qual o “metabolismo com a natureza” (Karl Marx), bem como as relações
sociais e a estética não se separam entre si como ‘subsistemas’ com ‘lógica
própria’, mas eles são sempre a expressão de um modo de existência cultural
único e coerente. Em termos modernos a descrição desta existência cultural
deverá soar confusamente assim: a produção era estética, a estética era
religiosa, a religião era política, a política era cultural, a cultura era social
e assim por diante. Em outras palavras: os atributos sociais hoje distintos
para nós eram embutidos uns nos outros, cada momento da vida estava de certa
modo contido nos outros.
Pode-se
talvez tentar falar de uma constituição religiosa dessas culturas agrárias,
pois aparentemente a religião apresenta-se como o momento de integração mais
forte da “sociedade como cultura”. Como se sabe não só todos os tipos
de objetos artesanais, mas também o teatro e as competições esportivas
apareciam de alguma maneira como ações cultuais, isto é, integradas ao culto.
Para ser mais preciso: eles eram ações cultuais de um tipo particular. Mesmo as
tarefas completamente comuns do cotidiano tinham basicamente o caráter cultual;
mesmo o humor e a ironia também estavam cultualmente associados. Todavia, seria
um erro elevar ‘a religião’ a momento sistêmico determinante de tais
sociedades, pois assim já estamos pensando de novo com o nosso conceito
funcional moderno de esferas separadas. Mesmo a religião não era uma religião no
sentido moderno, não era puramente ‘crença’, nem a ocasião limitada para um
pensamento transcendente e muito menos ‘assunto privado’.
Não
podemos, portanto, pensar no caráter religioso das culturas antigas
simplesmente como uma relação coercitiva limitadora e irracional. O religioso
era também o público, a assim chamada política, a forma do debate. Não por
acaso a palavra latina ‘privatus’ tem
um significado negativo e pejorativo, que fica mais claro ainda para nós pelo
conceito grego antigo correspondente: ali quem não participa da vida cotidiana
e, portanto, pública, é o idiota. Mas se o religioso é ao mesmo tempo a
forma do público e abrange o cotidiano, isso não quer dizer necessariamente que
a limitação dessa sociedade se revela aí, como pretende a ideologia apologética
de autolegitimação moderna. Também se poderia dizer, pelo contrário, que uma
tal sociedade-cultura teria muito mais vida pública e debate do que o sistema
moderno. Como volteamos e distorcemos os fatos, não podemos conceber com o
nosso autoentendimento moderno a existência de uma sociedade culturalmente
integrada. Não temos conceitos para isso.
Essa
cegueira moderna para o caráter das relações pré-modernas produziu outro grande
mal-entendido. No centro daquilo que chamamos ‘religião’, em todas as culturas
está fundamentalmente o problema da perecibilidade humana e da morte como
processo, acontecimento e ‘fim da vida’. Juntamente com a religião a
modernidade baniu também a morte para uma esfera funcional particular,
separando-a – como a arte – da vida. Desse modo, a moderna secularização da
sociedade não permite que se trate a morte de outra forma e que se reflita
sobre ela, mas a reprime e a ignora. O que a religião significava nas
sociedades antigas não foi ultrapassado e superado positivamente, mas meramente
reduzido funcionalmente a resto irracional para o sentido privado dos
indivíduos abstratos. Em relação à perecibilidade corporal a modernidade foi
até mesmo além: assim como as pessoas mais velhas e ‘imprestáveis’ para a
reprodução capitalista aparecem como um simples “fardo velho” para a sua prole,
sendo fechadas em asilos e separadas da vida normal, os mortos também são
“eliminados” como lixo e sucata industrial.
Depois
de ter recalcado a morte, a modernidade só poderia compreender a antiga
integração entre vida e morte como uma assustadora “relação com a morte”. Que
os antigos egípcios conferiam grande valor a seus túmulos e ao embalsamamento
de seus mortos é comumente interpretado como um sinistro culto à morte, como se
os egípcios não tivessem outra coisa com que se ocupar. Da mesma forma o homem
moderno mostra repugnância pelo hábito da Idade da Pedra de enterrar os restos
mortais junto ao fogo, dentro de casa. Na realidade, todos esses homens deviam
ter uma excepcional disposição para a vida – como, aliás, demonstram por vários
pontos de vista as ciências que estudam a Antiguidade. A óbvia integração da
morte no cotidiano parece-nos estranha, porque o problema da nossa própria
perecibilidade foi ‘removido’ para um lugar invisível na nossa vida comum.
Diversos críticos da cultura fizeram dessa separação entre vida e morte, tal
como a separação entre arte e vida na história da modernização cada vez mais um
tema lancinante, sem, contudo, jamais ter criticado radicalmente a estrutura social
subjacente à coisa.
Em
uma ‘sociedade como cultura’, capaz de integrar também a morte, a ‘arte’
passava a ser necessariamente um componente da vida diária, e como tal
totalmente impensável como expressão de uma esfera esterilizada e morta “atrás
de um vidro”. Mas até por isso, ela não era arte como arte, mas antes um
determinado momento de um contexto social integrado. O ‘artista’ só poderia,
portanto, ser reconhecido como tal pela sua capacidade técnica e não como
representante social "da" arte. O problema das separações funcionais,
que tanto ocupa a modernidade, surgiu junto com a modernidade e nunca havia
sido formulado antes. Seria o caso então de se perguntar também de onde vem, na
realidade, essa diferenciação sistêmica.
O
processo de modernização não divide a sociedade de maneira uniforme ou com
valores uniformes. Ao contrário, um determinado aspecto da reprodução humana –
a assim chamada economia – é cindida de todos os demais aspectos e
principalmente da vida. Da mesma forma que acontece com a arte ou com a
religião, não se pode falar no que diz respeito às civilizações agrárias
antigas, de uma economia no sentido que damos hoje a esta palavra, embora o
conceito nos venha dos Antigos. Mas na Grécia Antiga, como em todas as antigas
civilizações pré-modernas, a ‘oikonomia’,
como economia doméstica integrada num contexto cultural, era
um pressuposto material e um meio para as finalidades
cultuais, e assim, sociais ou estéticas. Ao contrário, na modernidade a
economia desenvolveu-se como um absurdo fim em si mesmo e
como conteúdo central da sociedade: o dinheiro tornado capital que
retorna a si mesmo, e assim um “sujeito automático” cego (Karl Marx), estando
pressuposto fantasmagoricamente a todos os objetivos humanos e culturais.
Na
medida em que essa “valorização do valor” (Karl Marx) ou maximização abstrata
do ganho econômico empresarial, enquanto um fim em si em processo se cinde da
vida, começa a surgir uma "esfera funcional" separada e independente,
como um corpo estranho na sociedade, que passa a ser central e dominadora. É a
partir da existência deste setor cindido e ao mesmo tempo dominador que
aparecem todos os outros aspectos restantes da reprodução social da economia
capitalista como “subsistemas” separados, em que todos têm, entretanto, sem exceção
um mero significado secundário, subordinados ao fim em si econômico
pressuposto.
Sob
a ditadura da economia feita independente, a atividade produtiva é transmutada
em “trabalho” abstrato, um espaço funcional separado e estranho à vida, que
passa a ser regulado só secundariamente e sob a coação também incontrolável dos
“sistemas legais”, através da esfera separada e particular da política. Tal
‘política’, cindida da sociedade culturalmente integrada, tem de ser assim
também desconhecida das civilizações pré-modernas, tanto quanto a “economia desvinculada” (Karl Polanyi) do fim em si capitalista e seu
respectivo conceito positivo de “trabalho” abstrato, alheiam a um contexto de
vida integrado. A política moderna e as respectivas instituições do Estado e do
Direito não podem ser comparadas com as instituições pré-modernas aparentemente
equivalentes, que, como a ‘religião’, não tinham o caráter de setores
funcionais separados. Foi somente no processo de desintegração social moderna
pela “economia desvinculada” que surgiram a política, o Estado e o direito, no
sentido que lhes atribuímos hoje, como "subsistemas" complementares
de segunda ordem e consequentemente, como meros servidores (ministros!) da
economia capitalista tácita e a priori.
Se o
conteúdo central e o objetivo da sociedade se tornam um fim em si mesmo
cindido, então a vida necessariamente se rebaixa a um mero resto. A expressão
da vida para além das cisões sistêmicas e das esferas funcionais complementares
do mercado e do Estado, da economia e da política, da concorrência e do
direito, é degradada ao refugo do “lazer”; e em algum lugar em relação a resto
difuso está não somente a religião, mas também a arte e a cultura colocadas em
esferas particulares. Todas as coisas que um dia foi decisivamente importante
para os homens, todas as questões existenciais, e assim todas as finalidades e
formas de expressão estéticas ligadas a essas questões se transformaram nesse
‘resto’ insignificante e os seus representantes têm que brigar pelas migalhas
caídas da mesa do monstruoso fim-em-si. A situação da arte e da estética
torna-se particularmente absurda. Embora toda aparição de vida em si contenha
sempre um momento estético para o ser humano, o capitalismo negou esse fato
elementar e cindiu a estética em um local separado, como aliás todos os outros
momentos. O 'trabalho' não é estético, a política não é estética, só
a estética é estética. Como se a estética das coisas levasse uma existência
própria, abstratificada e fantasmagórica, fora e ao lado das coisas; exatamente
como a sociabilização dos produtos leva uma existência particular
abstratificada ao lado dos produtos na forma abstrata do dinheiro tornado em
fim em si e a lógica formal abstrata, como o "dinheiro do espírito"
(Marx), passa ao lado e torna-se independente da lógica concreta dos contextos
reais.
A
prisão de vidro do artista consiste exatamente nessa cisão estrutural do
estético. A arte move-se desamparada para cá e para lá dentro dessa jaula; ela
não é mais a forma artística de um conteúdo social, e sim uma ‘formidade’
cindida, seja forma sem conteúdo ou conteúdo como mera forma. A arte deve,
portanto, macaquear o fim em si do capital, que gostaria de se emancipar de
todo conteúdo material na sua forma abstrata e autorreferente (dinheiro), sem
poder jamais realizar tal absurdo. A “arte pela arte” é simplesmente o clímax
da arte como caricatura involuntária do capital, sem poder resolver o dilema de
fundo do sistema capitalista.
Mas
se ela tornou-se através de seu infortúnio um fim em si, desvairado e enamorado
de si mesmo, ela pode, então, na sua separação insuperável, gerar uma hybris social: em vez de se
conceituar como produto de um sistema de cisões e mobilizar a crítica radical
dessa estrutura destrutiva de finalidades em si, a arte inicia sua própria
cisão e a ‘estetizar’ aquilo que dá à luz. Não é somente o seu próprio dilema
que se torna assunto estético, mas toda a gritante esquizofrenia capitalista.
Quando a estrutura capitalista, entretanto, não é criticada,
mas estetizada, os corpos destroçados por granadas, as mulheres
violentadas, as crianças famintas e a obscenidade do poder aparecem como
simples objetos estéticos. A estética cindida não se volta aos conteúdos
sociais, mas apenas os ilumina em uma reflexão cínica. Uma “estetização da política”
no interior do sistema capitalista insuperado não leva à emancipação, mas
diretamente à barbárie. A política esteticamente encenada foi o segredo do
sucesso do fascismo e Hitler foi o protótipo do artista como político, que não
reintegra as esferas separadas, mas apenas estiliza a sua desintegração numa
sangrenta obra de arte total.
A
precária situação da arte na estrutura capitalista das cisões também tem um
lado sexual. Para que a “economia desvinculada” do fim em si capitalista
pudesse se estabelecer e gerar a moderna separação das esferas era necessário
uma condição prévia elementar: tudo que não cabia nesse sistema de cisões tinha
de ser, por sua vez, cindido primariamente. E assim se fez com todos os
momentos da vida que já foram culturalmente integrados, mas que agora são
empurrados à mulher moderna: família, “trabalho doméstico”, cuidar das
crianças, atenção, ‘amor’ etc., junto com as características correspondentes
que pertenceriam também a uma suposta receptividade especial estética: a mulher,
como “beleza natural”, enfeita a si mesma e ao lar do seu amor. Esse espaço
social, que não pode ser totalmente absorvido pelas estruturas capitalistas,
todavia permaneça necessário à reprodução humana, aparece como uma privacidade
separada de um novo tipo, em contraste à estrutura social total do capital e
das cisões interiores nele contidas. Surge, assim, uma paradoxal “cisão do
sistema total de cisões” (Roswitha Scholz), que forma a sua "retaguarda
escura" e é conotada como ‘feminino’, enquanto que, inversamente, o
sistema oficial como um todo é ocupado e dominado de forma ‘masculina’.
Esse
conhecimento da cisão de gêneros elementar e primária, gerado pela crítica
feminista, remete a uma estranha relação de gêneros entre o privado e o
público, que também afeta a esfera estética cindida da arte e da cultura. Nas
sociedades pré-modernas culturalmente integradas havia de fato momentos
fortemente patriarcalistas, mas não na forma aguda e "diferenciada"
da modernidade. As diferenciações culturalmente integradas para qual não têm
mais conceitos, também não separa o ‘público’ e o ‘privado’ no sentido em que o
entendemos. Dito em conceitos modernos, muito do que hoje se considera privado
era público – e vice-versa; e embora o público fosse "masculino",
isso era limitado ou haviam esferas públicas ‘masculinas’ e ‘femininas’
simultâneas e paralelas no contexto cultural.
As formas paradoxais de desintegração
sobre a base da “economia desvinculada” separaram duplamente o público e o
privado do ponto de vista dos gêneros.
Por um lado existe o espaço íntimo da privacidade, no qual ‘a mulher’, o assim
chamado belo sexo, é responsável pelo calor do ninho, pelo conforto do dono da
casa, pela dedicação amorosa, etc. – e exatamente por isso é considerada
‘inferior’ e “fraca de espírito”. Em contraponto a essa privacidade inferior,
todo o sistema do capitalismo, com a ‘economia desvinculada’, aparece no topo
como a esfera “masculina” do mundo público burguês e como a sociedade
autêntica. Por outro lado, contudo, ocorre também dentro dessa estrutura
‘masculina’ oficial uma segunda cisão interna entre a esfera pública e a
privada: a atividade para o fim em si sem sujeito do sistema aparece aqui, de
forma absurda, como a privacidade ‘masculina’ do sujeito de interesse do
capitalismo, o ‘homo economicus’ e o
ganhador de dinheiro, enquanto que a também "masculina" esfera
complementar da política é definida como a esfera pública. A esfera cindida da
estética ou arte e cultura representa tão só um apêndice dessa esfera pública
interna dentro do pseudo-universo ‘masculino’ capitalista.
Por
isso, o ‘artista’ é em princípio um ser masculino dentro da esfera pública
capitalista, mesmo que num lugar particularmente precário. De fato também
existem mulheres artistas, tal como políticas, empresárias, cientistas, etc. –
mas antes de tudo como exceções que confirmam a regra sociológica; e em segundo
lugar sempre se adaptando às regras do jogo ‘masculino’, com o que se comprova que
não se trata de condições biológicas, mas de atribuições sociohistóricas. O
artista estruturalmente ‘masculino’, na sua jaula de vidro da estética cindida,
torna-se um ser particularmente esquizofrênico: de um lado ele é cada vez mais
"homem" capitalista e ganhador de dinheiro, repousando sobre a
privacidade burguesa de primeira ordem e necessitando da ‘mulher’ como ser
devotado às tarefas menores na sua retaguarda como qualquer vendedor de
automóveis; por outro lado, representa dentro da esfera pública burguesa
‘masculina’, na figura da estética, ele próprio um elemento
"feminino" cindido, que não pertence ao sistema funcional, mas que
apesar disso é parte da esfera pública capitalista.
O
‘feminino’ só pode aparecer no pseudo-universo masculino na forma de
objetualidade artística separada, estéril e museológica. O artista é assim o
homem capitalista que exibe certos lados femininos singulares, e que
eventualmente pode até ser homossexual – mas somente enquanto pessoa desviada
socialmente dentro da estética narcisisticamente autoreferida a si mesma, assim
como rouba da "mulher" os atributos a ela imputados; e justamente
assim torna-se o super-masculino (Übermann)
que até mesmo degrada o ‘feminino’ incorporado de forma masculina e a ‘mulher’
como modelo, objeto ou musa, a mero objeto de beleza. Ao mesmo tempo, a
sociedade burguesa vê a sua representação do feminino no masculino como um
defeito e a ‘inferioridade feminina’ lhe pesa, de tal maneira que passa a ser
tratado como um elemento exótico da sociedade pelos seus colegas vendedores de
carros e não é levado totalmente a sério em todos os aspectos.
Mas
essa estrutura das cisões, que constitui a essência da modernidade, hoje já é
percebida como passado histórico. A dinâmica capitalista explodiu a sua própria
forma social e põe-se em processo ainda mais desenfreadamente. A cultura de
massas e as novas mídias parecem aplainar a ‘diferenciação’ sistêmica: o que a
crítica há meio século denunciava como “indústria cultural” (Theodor Adorno),
hoje é festejado pelos “pós-modernos” como uma reintegração da arte à vida. A
midialização já vale per se como emancipação das coerções da
realidade capitalista; o mundo se explica pelo jogo digital. Por toda parte já
fervilham ‘oportunidades’ que podem ser apreendidas no sentido da
‘democratização’ midiática. E no divertido e habitual baile de máscaras dos
sexos o admirável mundo novo pós-moderno crê ter superado a cisão entre os
sexos. O travesti já é quase proclamado um novo sujeito revolucionário.
A
retórica das oportunidades do otimismo profissional cultural pós-moderno, mesmo
quando muitas vezes ligada ao radicalismo de esquerda, faz lembrar-se de modo
suspeito a linguagem orwelliana dos economistas neoliberais. De fato, a arte não reingressa na sociedade
como “cultura de massas democrática’; mas, ao inverso, o mercado ultrapassa
seus limites e renova a sua pretensão à totalidade mais vigorosamente do que
nunca. Após a economia capitalista cindir-se do contexto cultural de vida e
seus restos serem transformados em subsistemas separados, a sua dinâmica não
poderia se deter nesse estado de desintegração. Mesmo que de início os
setores da arte e cultura, do esporte, da religião, do “tempo livre” etc.
pareciam poder afirmar certa lógica própria contra o sistema dominante da
"economia desvinculada", doravante eles tornam-se sucessivamente eles
mesmos ‘economificados’.
Esses
campos eram inicialmente dependentes e secundários: se o contexto social é
determinado pelo fim em si cindido do dinheiro, então o padre, o atleta e o
artista também têm de "ganhar dinheiro", seja diretamente como
vendedores no mercado, seja indiretamente pela absorção estatal, com dinheiro
vindo dos processos do mercado. Mas isso foi durante muito tempo somente uma
dependência externa. Enquanto a arte não cedesse em sua própria produção às
leis econômicas do mercado, ela não poderia tornar-se uma mercadoria totalmente
capitalista, mas algo apenas suplementar na circulação. Mas o fim em si
capitalista é tão faminto quanto insaciável, e assim teve de devorar,
finalmente, o próprio resto já mutilado da vida: a arte e a cultura cindidas,
tanto quanto o "tempo livre" miserável e a intimidade familiar
limitada.
A
arte só regressa à vida na medida em que a vida já se dissolve na economia.
Agora a arte não tem mais existência própria, nem já é mais enquanto esfera uma
estética cindida, mas torna-se um objeto imediatamente econômico e por isso sua
produção já se realiza sob os pontos de vista do marketing. Em geral todos
os objetos da vida e do mundo deixaram de ter qualquer valor qualitativo
próprio no capitalismo sem limites do final do século XX, mas tão só o seu
valor econômico, que lhes confere vendabilidade.
O que os pós-modernos adoram farejar como
oportunidade emancipatória da arte na cultura de massas capitalista é na realidade
a sua destruição. Se os “alegres positivistas” da pós-modernidade (no termo de
Michel Foucault) querem remeter hoje essa visão profética de Adorno à
vizinhança do pessimismo cultural conservador, então eles apenas demonstram ter
capitulado incondicionalmente diante do imperativo econômico e não ser menos
afirmativos do que os conservadores aparentemente críticos. Enquanto o pessimismo cultural conservador critica a
destruição da arte pela indústria cultural capitalista só do ponto de vista do
seu próprio passado, tal como ela ainda era uma estética com fim em si mesma na
modernidade clássica, os pós-modernos enganam a si mesmos sobre o impulso final
de dissolução da arte na economia como sua reapropriação autêntica pela
sociedade. E se a crítica cultural conservadora chora pela família burguesa bem
como pelos sujeitos elitistas da antiga formação cultural burguesa, a
pós-modernidade interpreta a miséria midiática solitária do "sujeito
descentrado" como a primavera da emancipação. Uns aderiram ao passado
capitalista, outros ao presente capitalista, e ambos renunciam a uma nova
perspectiva para o futuro anticapitalista.
Neste
sentido, homens e mulheres, artistas e vendedores de carros tornam-se hoje
apenas idênticas como se todos tivessem adotado a mesma identidade vazia do ‘homo economicus’ e se tornassem agentes
sem vontade do “sujeito automático” não mais deles próprios. A ‘diferenciação’
das subjetividades setorialmente cindidas pela economia de mercado degringola,
até cada uma delas tornar-se uma espécie de vendedora de carros, não importa o
que façam. A fé ingênua na democracia dos consumidores da indústria cultural
pós-moderna faz papel ridículo diante da ditadura da oferta capitalista. A
indústria cultural não é para ser criticada então por ser cultura de massa, mas
porque ela se consuma na forma alienada da ‘economia desvinculada’. A sua
estética não é a estética dos homens, mas a estética das mercadorias.
Na democracia das mercadorias os seres
homens como homens não têm mais nada a dizer. A estética das mercadorias não
integra os indivíduos desintegrados, mas as mercadorias como pseudo-objetos
fantasmagóricos. Ela não é a forma estética
de um conteúdo, e sim o ‘design’ da abstração econômica. Esse estágio final da
estética moderna pode ser descrito em diversos planos:
- Em
primeiro lugar, trata-se de uma estética do particularismo. Contextos e
relações são desconsiderados. Ignora-se que o todo é mais que e algo
qualitativamente diferente da soma das partes. O design é a estética
rutilante das mercadorias abstratas particularizadas para o consumo dos
indivíduos abstratos particularizados, enquanto toda a paisagem, as cidades e o
espaço social são transformados em depósitos de lixo fedorentos.
- Em
segundo lugar, esse design corresponde a uma estética da
arbitrariedade. A forma e o conteúdo deixam de guardar relação entre si, porque
o conteúdo é definido como forma. Para o capital pouco importa que ele valorizem-se
pela produção de carne de porco, campos minados ou purgantes. Assim, também
para a arte economificada do design deve tornar-se indiferente o que
ela produz desde que se apresente vendável e apta à encenação midiática. Isso
elimina qualquer padrão de medida. Enquanto numa integração cultural consciente
é sempre preciso desenvolver padrões de medida, mesmo que se saiba de sua
relatividade e da possibilidade de alterá-los, a estética da mercadoria
é a priori destituída de padrão de medida – o que se adapta ao
“sujeito descentrado” pós-moderno, que é literalmente um "tanto faz".
Um mundo sem padrões de medida, que tudo torna indiferente, só pode, no entanto
gerar uma coisa: um tédio sem fim.
- Em
terceiro lugar, a arte e a cultura degradada pelo design do mundo das
mercadorias exibe-se como estética da simulação. A ideia bêbada
pós-moderna de uma desrealização da realidade pela mídia (Jean Baudrillard e
seus comparsas) adoraria crer com o maior prazer na aparência do design,
porque ela mesma a produziu. A simulação das mídias tenta construir um mundo
paralelo, virtual e desmaterializado, no qual o capitalismo não mais enfrenta
barreiras naturais e sociais, e no qual o crescimento da “economia
desvinculada” pode prosseguir sem fim. Os mundos de aparência virtuais da mídia
correspondem economicamente ao capitalismo de cassino dos últimos 15 anos: os
mercados financeiros desvinculados simulam uma acumulação de capital, que há
muito tempo não tem chão econômico firme sob os pés. O capitalismo, por assim
dizer, prossegue sua correria no ar, após ter cruzado as bordas do desfiladeiro.
Nesse ambiente econômico de “capital fictício” (Karl Marx), de ‘boom’ de ações, endividamento, jogos de
azar e sociologia de ‘risco’ (Ulrich Beck), desenvolveu-se um espírito do tempo
que tenta vencer a insuportabilidade das intransigências do capitalismo com um
“fazer como se...”. Na pose simulativa de uma auto-estetização midiática os
indivíduos agem ‘como se’ fossem competentes, bem sucedidos, belos e visíveis,
enquanto as suas relações sociais reais entram em colapso.
O
particularismo, a arbitrariedade e a simulação denunciam que a arte destruída
pela sua mutação em estética das mercadorias só pode se integrar negativamente
na vida social, e nem há mais vida aí. O velho problema da separação entre arte
e vida não é resolvido, mas torna-se inexistente, sem objeto (gegenstandslos),
pois o próprio homem social foi desobjetivado (gegenstandslos). Mas também essa
desobjetivação se revela como mera aparência, em que o “sujeito automático” de
certo modo faz ilusões sobre si mesmo na cabeça dos homens. A realidade
capitalista deve ser desefetivada, pois chegou, sem saída, no final absoluto de
seu desenvolvimento, sem que os homens sistemicamente condicionados queiram
admitir essa crise histórica. Mas atrás do puro design da estética
das mercadorias mostra-se inexoravelmente a sua verdadeira existência negativa.
Eles não podem fugir de seu sofrimento real, mesmo quando tentam a sua própria
desefetivação mediática.
A
“economia desvinculada” apenas pode se integrar tautologicamente em si mesma,
mas a sua pretensão de totalização sem atritos tem de fracassar, pois ela torna
verdadeiramente negativa a vida real e sensível, mas não pode absorvê-la em seu
mundo surreal das abstrações independentes, assim como é incapaz de
“desrealizar” ou abolir a morte. O reprimido não volta, já está sempre lá. Só
na superfície do design o sistema de cisões aparece dissolvido na
economização do mundo. Por trás dessa aparência, entretanto, o mundo real
desintegrado torna-se insuportável. Tal como a cisão de gêneros não desaparece
nos travestis, entretanto, o “asselvajamento pós-moderno do patriarcado”
(Roswitha Scholz) também joga primordialmente nas costas das mulheres o peso da
crise social após a decomposição da família burguesa, e do mesmo modo a miséria
estética do mundo funcionalmente orientado também não desaparece
no design da estética das mercadorias, mas apenas surge de modo mais
crasso na desolação do espaço público economificado.
Se a
crise real não pode mais ser reprimida, a desrealização pela mídia consegue
‘estetizar’ a miséria insuperada e dolorosamente percebida, mesmo quando essa
estetização da crise não assume mais as formas políticas dos anos 30, mas até
mesmo aparece na própria política “economificada”. Entretanto, da midialização comercial e estético-mercantil da pobreza,
da violência e do asselvajamento das relações entre os gêneros abrem-se os
sorrisos falsos dos motivos do fascismo. A estética da desrealização pela mídia
e da arbitrariedade sem padrões de medida é a estética da guerra civil e da
barbárie, visto que ela elimina, em última instância, os freios civilizatórios.
Um
retorno à modernidade clássica é hoje tão pouco possível quanto um retorno às
formas agrárias de sociedade culturalmente integrada. Mas a sobrevivência da
desintegração capitalista é tampouco possível. Também a própria arte só pode
ser superada positivamente quando conscientemente se tornar momento de um novo
movimento social que transcenda o antigo marxismo do movimento operário e ponha
a nu as raízes que têm produzido o sistema de cisões e separações funcionais.
Uma integração cultural da sociedade em novos e mais elevada graus de
desenvolvimento só será possível quando se tiver destruído o fim em si da
economia e superado a cisão de base entre os sexos. O pressuposto de um novo
debate emancipatório é hoje a legítima defesa contra a economificação
capitalista do mundo.