O texto abaixo tem autoria de João Freitas, estudante de História da Universidade de Porto - Portugal
As relações entre
História —
e a sua escrita — e Memória — como recordamos como
sociedade o passado —
longe de se afigurarem como simples, apresentam uma complexa e intrincada
relação. O historiador longe de se encontrar numa torre de marfim, isolado do
mundo, encontra-se precisamente no centro da contenda. As suas opções
metodológicas, semânticas e temáticas longe de apresentarem neutralidade,
constituem um ato político. Conforme refere — e bem — Wesley Sousa, “A “neutralidade”
é apenas um conteúdo raso chave para a ideologia burguesa” (Sousa; 2017). Ao
aceitarmos que produção historiográfica nunca é neutra — por norma, os maiores
revisionismo históricos escondem-se por trás de uma capa de “neutralidade” — ela apresenta-se como um
campo de combate onde a luta de classes se desenvolve, sendo possível
vislumbrar embates das diferentes forças sociais pela hegemonia da sua
mundividência no presente e, inclusivamente do futuro.
“A memória conjuga-se sempre no presente, que
determina as suas modalidades: a sucessão de acontecimentos de que se devem
guardar recordações (e de testemunhas a escutar), a sua interpretação, as suas
«lições», etc. Ela transforma-se em questão política” (Traverso, 2012: 18). Assim
sendo, ocorrem então processos de seleção da memória, que na maioria dos casos
acabam por revelar mais sobre o presente — e por que não do futuro pretendido?
— do que sobre o passado que visam reconstituir. As visões que temos do passado
são incompletas, parciais e mutáveis, consoantes à posição social que ocupamos
a comunidade afetiva na qual estamos inseridos, ao grupo sociopolítico a que
pertencemos e conforme as relações que esse grupo estabelece com a sociedade.
Então se “a identidade histórica das
sociedades é submetida a usos políticos da memória coletiva em todas as suas
expressões sociais, é forçoso admitirmos que nela se confrontam diferentes
políticas da memória. Estado, movimentos sociopolíticos, instituições,
indivíduos, produzem discursos memoriais autojustificativos e autorreferenciais
que se cruzam, e frequentemente contradizem, narrativas produzidas à escala das
classes e dos grupos sociais, dos géneros, das gerações, daquelas que se
autodescrevem como tradições familiares” (Loff, 2014: 13). Desta forma,
podemos falar em Memórias Fortes — aquelas que são veiculadas e
protegidas por estados, pelos seus organismo e estruturas e que têm um
reconhecimento institucional e público — e Memórias Fracas — por norma
subterrâneas, que não têm o mesmo reconhecimento social, político e
institucional. Como História e Memória não se encontram separadas, mas sim numa
permanente interação, as Memórias Fortes encontram-se numa posição
favorável para serem historiografadas. “Quanto
mais forte é a memória — em termos de reconhecimento público e institucional —
mais o passado de que é vector se torna susceptível de ser explorado e
historicizado” (Traverso, 2012: 84).
Existe assim um uso — e por vezes abuso — político da
memória que afeta a maneira de interpretar e escrever história. Certas
memórias, por pertencerem a grupos melhor posicionados para imporem a sua
versão e construírem assim uma memória social que será historicizada e
divulgada pelos aparelhos ideológicos do Estado Burguês, bem como pelos Mass
Media, encontram-se assim em melhores condições para se tornarem “senso
comum” ou assumirem um carácter normativo. Isso comporta um sério risco, seja o
de neutralizar o potencial crítico do historiador, ou de fazer um uso
apologético da história com o intuito de justificar conscientemente — ou não —
as relações de dominação social existentes no presente.
O historiador, precisamente por não se encontrar apartado do mundo e participar na vida da sociedade civil, tem um importante papel na formação de uma consciência histórica. Esse papel foi alvo de um importante debate na sociedade alemã na década de 1980, que ficaria conhecida como a Historikerstreit (Querela dos Historiadores). Tudo começou por causa de um artigo publicado no Frankfurter Allgemeine Zeitung (FAZ) por Ernst Nolte — um historiador de direita, discípulo de Martin Heidegger e que havia elaborado diversas obras sobre o fascismo. Esse artigo, datado de 1986, intitulava-se Vergangenheit, die nicht vergehen will (O passado que não quer passar). Nolte apresenta uma argumentação descupabilizadora do nazismo, no qual apresentava este fenómeno como uma mera reação à Revolução Bolchevique, comparando inclusivamente o holocausto ao «genocídio de classe» realizado pelos Bolcheviques e, para, além disso, “argumentou que massacres de massa foram comuns no século XX, de que eram exemplo os realizados pelos EUA no Vietnã, por Pol Pot no Camboja e o próprio Gulag soviético. Deste modo, em vez de ficarem com a culpa face ao Holocausto, os alemães (ocidentais) deveriam ficar em "paz consigo mesmo" e deixar o “passado passar””(Melo, 2014: 32). Jürgen Habermas — discípulo de Theodor Adorno e de outros pensadores da Escola de Frankfurt — publicaria uma crítica ao texto de Nolte no semanário Die Zeit, denunciando o seu cariz apologético e desculpabilizador, que visava normalizar o nazismo e o próprio Holocausto na memória coletiva alemã, denunciando o uso público da História feito por Nolte e outros intelectuais que o apoiaram na Historikerstreit.
Para uma melhor compreensão da forma como passado, presente e futuro afetam a produção historiográfica, será pertinente referir o contexto político vivido na República Federal Alemã na década de 1980. Em 1985, ano anterior à publicação do artigo de Nolte, Ronald Reagan visitou o que restava do campo de concentração de Bergen-Belsen e o cemitério de Bitburg, local onde se encontram sepultadas figuras do regime Nazi. O episódio ficaria registado como Bitburg Fiasco, resultado de uma “aparentemente desastrosa intervenção dos dois governos [RFA e EUA] de esquecer as hostilidades que os levaram à guerra de 1939-1945, com o compromisso coetâneo [sic] comum de combate ao comunismo” (Melo, 2014: 33). O chanceler alemão Helmut Khol (CDU) aproveitou a ocasião para anunciar a construção de um Centro de Memória em Bonn, que rememoraria quer nazis, quer as suas vítimas. Quando surge o artigo de Nolte, a RFA encontrava-se em clima pré-eleitoral — no ano de 1987 realizar-se-iam eleições para o Bundestag, das quais Khol sairia eleito. Desta forma, não é de maneira nenhuma inocente a publicação de Ernst Nolte, elaborada num meio de comunicação de massas na “ressaca” do Bitburg Fiasco. Seria politicamente útil para um periódico conservador como o FAZ publicar um texto que reabilitasse publicamente a figura do chanceler neoliberal do partido conservador alemão, da mesma forma que contribuiria para a diabolização do comunismo (como denuncia Habermas) num período tenso da Guerra Fria.
Foi neste contexto que a Historikerstreit ocorreu e que Habermas cunhou o conceito de uso público da História. Será pertinente refletir sobre o conceito desenvolvido por Habermas. Segundo o filosofo marxista italiano Nicola Gallerano, a definição que Habermas dava para o seu conceito era limitada. Pois, “para Habermas, o conceito de uso público da história indica um debate sobre o passado que é, em última instância, ético e político: ao desenvolver-se na 1ª pessoa, e não na 3ª pessoa — o que denotaria não se tratar de uma disputa científica —, este debate sugere “um contexto que envolve diretamente memória, identidade individual e coletiva e juízos políticos sobre o presente e o futuro”” (Soutelo, 2015: 147). Ao distinguir o discurso cientifico do ético-político, que apesar dos métodos cognitivos serem diferentes do trabalho cientifico para o debate público que se faz acerca da História, não existe nenhum limite nítido entre historiadores profissionais e outros produtores de História. “Como observa Gallerano, esta questão remete à “relação conflituosa entre memória e história”, uma vez que o uso público da história ativa os mecanismos da memória coletiva” (Soutelo, 2015: 147). Gallerano aponta precisamente essa conflituosa razão entre Memória e História como a principal causa para, no século XIX, o historiador procurar apartar-se das paixões do mundo, conforme defendia Ranke.
A memória coletiva tem sempre uma dimensão política, afetando a forma de escrever história no presente. Como vimos no caso paradigmático do Historikerstreit, essa utilização pública da História visou configurar a memória coletiva da sociedade civil, ao mesmo tempo em que comportava aquilo a que Josep Fontana denomina de Economia Política da História. Para o autor catalão “A descrição do presente – produto resultante da evolução histórica – completa-se com o que chamo, genericamente, uma “economia política”, isto é: uma explicação do sistema de relações que existem entre os homens, que serve para justificá-las e racionalizá-las – e, com elas, os elementos de desigualdade e exploração que incluem –, apresentando-as como uma forma de divisão social de trabalho e funções, que não só aparece agora como resultado do progresso histórico, senão como a forma de organização que maximiza o bem comum.”(Fontana, 1982: 109).
Existiram, existem e existirão Combates pela
História, assentes em interpretações de momentos, épocas ou acontecimentos
chave na constituição das identidades colectivas. Escrever história assume-se
como um exercício crítico e reflexivo, e o historiador “contribui para formação de uma consciência histórica e, portanto, de
uma memória colectiva (plural e
inevitavelmente conflituosa, atravessando o conjunto do corpo social)”
(Traverso, 2012: 51). Assim sendo, o historiador não deve vestir a toga de juíz
e a sua tarefa não consiste em julgar, mas compreender a totalidade do processo
histórico.
Bibliografia:
Bibliografia:
Fontana, Josep
(2004). A História dos Homens. (1º Edição). Baúru: EDUSC Editora.
Gallerano, Nicola (2007). Historia
y uso público de la historia. En: Pasajes: Revista de pensamiento contemporáneo.
Nº 24, 87-97.
Loff, Manuel,
Piedade, Filipe (2014). Introdução. . In
Loff, Manuel, Soutelo, Luciana, Piedade, Filipe (coords), Ditaduras e
Revolução. Democracia e políticas da memória (9-20). Coimbra: Almedina.
Melo, Demian
Bezerra de (org.) (2014). A Miséria da historiografia: uma crítica ao
revisionismo contemporâneo. (1ª Edição). Rio de Janeiro: Editora
Consequência.
Soutelo,
Luciana (2015). A memória pública do passado recente nas sociedades
ibéricas. Revisionismo Histórico e combates pela memória em finais do século XX.
Dissertação de Doutoramento, Universidade do Porto, Porto, Portugal.
Traverso, Enzo
(2012). O Passado, Modos de usar: História, Memória e Política. (1º
Edição). Lisboa: Unipop.
Webografia:
* imagem de Ronald Reagan e do chanceler alemão no cemitério nazista, na década de 80.
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O historiador está sempre condicionado pelo ambiente social que enforma a sua ideia. Mas põe aqui um problema fundamental: nega a objectividade da história, tal como fora elaborada nas obras de Braudel, Wallerstein, apenas para citar alguns dos mais difundidos. Estes não descuraram o diálogo com o edifício de conhecimentos do seu tempo, pelo contrário.
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