A propaganda recente d'O Boticário envolvendo casais
homossexuais e a performance da travesti crucificada na Parada LGBT do último
domingo em São Paulo suscitaram uma nova onda de debate público sobre liberdade
de expressão, direitos civis e, claro, o embate entre religião e a minoria
LGBT. No primeiro caso, conhecidos figurões do cenário religioso nacional
voltaram com seus tradicionais mimimis
sobre a “apologia ao homossexualismo”; no segundo, os faniquitos se deveram a
uma suposta “intolerância religiosa” que teria sido praticada no ato de Viviany
Beleboni.
Tudo isso me parece ao mesmo tempo terrivelmente engraçado
e angustiante. Engraçado porque demonstra a burrice ou falta de caráter de
algumas famosas lideranças religiosas do país, que insistem em afirmar que
“homossexualismo é comportamento e opção do indivíduo”, ignorando o fato
simples de que eles mesmos não conseguem lembrar quando foi que optaram por
sentir desejo por mulheres (talvez porque nunca o tenham feito...), e que
homossexualidade não é comportamento (ou ‘ato’, ou ‘prática’), mas sim
desejo, amor erótico por pessoas do mesmo sexo/gênero. Homossexuais
comportam-se de maneiras muito diversas: há gays mais másculos e outros mais
efeminados, e lésbicas idem; há aqueles entregues ao amor-livre, há os
celibatários; há os extrovertidos e há os tímidos. Há, enfim, uma infinita
variedade de comportamentos entre homossexuais (como há entre heterossexuais),
exatamente porque a única ligação direta entre essas pessoas é a orientação
sexual. Angustiante porque o poder que a bancada parlamentar religiosa (leia-se
‘cristã’) está acumulando é tal que pode abalar os alicerces da laicidade de
nosso Estado, o que traria uma série de consequências, nenhuma delas boa; e
porque o mais recente atentado contra a humanidade projeto desta
bancada é a criminalização da ‘cristofobia’,
um cavalo de troia que poderá pôr em risco a liberdade de expressão e de
livre-pensamento no país como nunca desde o fim da ditadura militar de
1964-1985.
Os defensores do projeto de criminalização da “cristofobia”
(segundo eles tão real quanto a homofobia, ou na verdade a única real entre as
duas, ainda que não tenhamos muitas notícias de jovens cristãos sendo expulsos
de casa ao revelarem sua religião aos pais ou mesmo de cristãos sendo agredidos
e mortos nas ruas por serem cristãos, no Brasil) afirmam que o que Viviany fez
foi ‘intolerância religiosa’ e um ‘profundo desrespeito’ para com o
cristianismo, devendo ser penalizado. Mas que intolerância religiosa foi essa?
Até onde sei Viviany não estava impedindo ou proibindo nenhum tipo de culto e é
exatamente isso que se conhece por intolerância religiosa! Falemos, então, do
“profundo desrespeito” ao cristianismo. A própria afirmou, em entrevistas, que
não tinha a mínima intenção de ‘atacar a igreja’, mas de simbolizar o
martírio que a população LGBT sofre em nosso país – martírio esse cujos dados
penso não ser necessário trazer aqui: conhecemos muito bem os casos de agressão
física e verbal, expulsão e assassinato contra membros dessa parcela da
população, além de coisas como suicídio, evasão escolar e bullying. Mas e
se a intenção de Viviany fosse, de fato, ''atacar a Igreja'', criticar o
cristianismo? Teria (ou deveria ter) ela esse direito? Para pensar na resposta,
talvez seja interessante lermos algumas passagens de livros antigos.
William Hollowitt, em seu ”Colonization and Christianity: a popular history of the treatment of the natives by the Europeans in all their colonies” (Londres, 1838), diz:
William Hollowitt, em seu ”Colonization and Christianity: a popular history of the treatment of the natives by the Europeans in all their colonies” (Londres, 1838), diz:
As barbaridades e as
implacáveis atrocidades praticadas pelas chamadas nações cristãs, em todas as
regiões do mundo e contra todos os povos que elas conseguem submeter, não
encontram paralelo em nenhum período da história universal, em nenhuma raça,
por mais feroz, ignorante, cruel e cínica que tenha se revelado.
Bertrand Russel, por sua vez, afirma num artigo intitulado “Será que a religião capaz de curar nossos problemas?” (Dagens Nyheter, Estocolmo, novembro de 1954):
“O cristianismo tem se
distinguido de outras religiões por sua maior disposição à perseguição. O
budismo jamais foi uma religião persecutória. O império dos califas era muito
mais gentil para com judeus e cristãos do que os Estados cristãos para com os
judeus de maometanos. Não incomodavam os judeus e cristãos, desde que lhe pagassem
tributos. O antissemitismo foi promovido pelo cristianismo desde o primeiro
instante em que o Império Romano se tornou cristão. O fervor religioso das
cruzadas levou a massacres de judeus na Europa Ocidental. Foram cristãos que
acusaram Dreyfuss injustamente (...). Em tempos modernos. Em tempos modernos,
abominações foram defendidas pelos cristãos, e não apenas quando os judeus eram
as vítimas, mas também em outras situações. As abominações do governo do rei
Leopoldo no Congo foram escondidas e minimizadas pela Igreja e só tiveram fim
devido a agitações causadas principalmente por livres-pensadores. Toda afirmação de que o cristianismo tem
exercido influência moral elevada só pode ser mantida pela completa ignorância
ou falsificação das evidências históricas.”
Certamente que não há uma relação de causalidade entre ser cristão e ser um racista pró-colonialismo ou um antissemita doente, ao menos a partir de certo conceito de cristianismo (as pessoas que creem que Jesus é Deus e o salvador têm ideias bastante diversas sobre ele...); mas tampouco se pode negar que o cristianismo tenha oferecido justificativa para tantas barbáries (nas quais faltaria incluir coisas como as queimas de mulheres acusadas de bruxaria e/ou de “hereges”, como Giordano Bruno). Isso, por si só, legitima o direito à crítica do cristianismo.
Engana-se, porém, quem pensa que as causas do direito à
crítica do cristianismo (e na verdade de qualquer religião) parem aí. Religiões,
como outras formas de ideologia, são conjuntos de ideias sobre como as
coisas são (o campo da ciência) e sobre como as
coisas devem ser (o campo do direito); estas, em boa parte,
dependentes daquelas; a realidade objetiva, porém, é uma só (o que invalida
aquela máxima de que ‘todas as religiões são verdadeiras’, uma verdadeira
pérola do relativismo), de forma que se duas pessoas divergem sobre a
realidade, e uma delas está certa, a outra TEM de estar errada e, portanto,
pode ter suas ideias criticadas por meio do debate científico imparcial.
Similar para o direito: as leis que regem nossas vidas individuais e sociais
devem estar pautadas na ética e na racionalidade (não exatamente distintas).
Não importa com quanto amor e fé se apeguem alguém à crença de que o sol gira
em torno de nosso planeta (ou que este tem forma plana), sua
crença deve ser criticada e falseada, de forma que o conhecimento
humano siga progredindo; da mesma forma, se alguém acha que
homo/bi/transsexuais devem ser reprimidos, agredidos e talvez mortos,
justificando tais opiniões com ideias religiosas, estas devem ser criticadas,
uma vez que não são o princípio ideal de referência para a vida coletiva.
O projeto de criminalização da “cristofobia” pode dar
margens ao total cerceamento da liberdade de crítica do sistema teológico do
cristianismo, assim como a seus postulados morais (o que se estende para as
doutrinas das mais diversas igrejas cristãs); é, em suma, um perigoso ataque à
liberdade de pensamento da qual o Iluminismo, findada uma era de trevas, foi
símbolo. É o caminho para a teocracia.
É claro que, entretanto, como
pesquisador marxista, eu não posso deixar de tentar compreender a influência
das forças materiais da sociedade no fenômeno do fundamentalismo religioso e da
teocracia. Quem são os grandes
nomes do fundamentalismo religioso no poder político? Gente como Magno Malta,
João Campos e Eduardo Cunha. O primeiro é membro de um partido-fantoche de
direita, o segundo é membro do maior partido burguês do país (conhecido por seu entreguismo privatista e
por sua práxis econômica neoliberal) e ficou famoso por um projeto que
tentava dar poderes de competência do Poder Legislativo às Igrejas, e o
terceiro é uma raposa velha de nome imundo na justiça, envolvido em corrupção
com as empreiteiras, campeão das grandes mídias nacionais, defensor do lobby
dos planos de saúde e que pôs em urgência o voto do projeto de criminalização
da cristofobia. Lembremos ainda da união da ''bancada religiosa'' com as
bancadas ‘da bala’ e ‘do boi’, duas expressões do grande capital no Brasil.
Mas por que há essa ligação? Por que o grande capital apoia
e encontra apoio no fundamentalismo e no obscurantismo religioso? A razão é
relativamente simples de entender: ideologia. A religião, com seu forte apoio
emocional, é capaz de legitimar e proteger as instituições que garantem a
manutenção dos privilégios do grande capital, como a propriedade privada. É
fácil de imaginar um cristão sentindo aversão a comunistas como o que vos
escreve quando lhe é ensinado, por toda a vida, que foi criado por um deus
onipotente que ama sua criação e que, entretanto, há um grupo de ''hereges
materialistas'' que não creem nele e, ao mesmo tempo, defendem o fim de certas
instituições - que por acaso são as
mesmas que garantem os privilégios de certa classe dominante. E mais: não iria
ele internalizar que essa divindade é a fonte de toda a moral e a justiça e,
portanto, generalizar os ''infiéis'' e “desobedientes dos desígnios de Deus” num
único grupo, a ser combatido? Não é
exatamente isso que os conservadores estão fazendo ao conclamar uma batalha
contra “comunistas-gayzistas-feminazis que querem destruir os valores da família
tradicional brasileira”?
Como disse Eric Hobsbawm em “Era dos Extremos” (São Paulo: Cia. das Letras, 1995):
Como disse Eric Hobsbawm em “Era dos Extremos” (São Paulo: Cia. das Letras, 1995):
“[...] com menos
frequência observou-se a considerável ajuda dada após a guerra por pessoas de
dentro da Igreja, às vezes em posições importantes, a fugitivos nazistas ou
fascistas de vários tipos, inclusive muitos acusados de horripilantes crimes de
guerra. O que ligava a Igreja não só a reacionários anacrônicos, mas aos
fascistas era um ódio comum pelo Iluminismo do século XVIII, pela Revolução
Francesa e por tudo o que em sua opinião dela derivava: democracia, liberalismo e, claro, mais marcadamente, o ‘comunismo ateu’.”
Acrescente-se o que falou Paul A. Baran, em sua “Economia Política do Desenvolvimento” (São Paulo: Nova Cultural, 1986):
“As classes dominantes dos
países subdesenvolvidos não poupam energia para aumentar o domínio das
superstições religiosas sobre os espíritos das famintas populações desses
países. Que importa a tais classes ou aos imperialistas que essas superstições
representem grande obstáculo ao progresso? Que importa a eles ou a seus
cúmplices ocidentais que o custo da conservação do obscurantismo religioso seja
a fome crescente e a multiplicação da morte? (...) A incapacidade do
capitalismo de servir como uma estrutura para o progresso econômico e social
obriga seus apologistas e políticos a confiar a estabilidade do sistema mais no
circo que no pão, mas na arenga ideológica que na razão.”
A juventude e os trabalhadores como um todo devem compreender que a ascensão do fundamentalismo e do autoritarismo religiosos caminham juntamente com a busca pela busca da manutenção do status quo, da dependência e da sujeição de nosso povo frente às elites locais e estrangeiras, e que o caminho para o progresso e o bem-estar social está na ruptura com o atual modo de produção e na utilização da ética e da racionalidade (não exatamente distintas, como já falei) como referência para nossas atitudes individuais e coletivas, assim como para a legislação. Creio fortemente que nosso povo não é ignorante ao ponto de sentir-se seduzido pelos discursos desses pretensos “mensageiros de Deus” (e concretos mensageiros da burguesia), mas, diante dos tristes acontecimentos recentes (e de um medo muito distante, mas ainda sim existente, de que os LGBTs possam repetir por aqui o papel que desempenharam os judeus no desenrolar do nazismo), penso que seja importante reforçarem nosso combate pelos ideais da emancipação humana.
Não
às hordas obscuras fascistas! Viva à luz, à razão e à liberdade!