Dois brasis na Sapucaí





Por Márcio Tarouco - graduado em Direito pela UFRJ 

O objetivo deste artigo é analisar comparativamente os sambas-enredo trazidos ao Carnaval de 2018 pelas G.R.E.S Paraíso do Tuiuti e Beija-Flor de Nilópolis, expondo as diferentes interpretações da história brasileira que fundamentam a crítica social feita por essas escolas. Peço desculpas antecipadamente ao Salgueiro, à Mangueira, à Portela, enfim, a todas as outras escolas de samba que trouxeram temas críticos por não serem incluídas nessa análise. A razão é simples: por mais que tenham abordado temáticas sociais de grande relevância, não carregam nenhuma interpretação imediata da realidade social brasileira, que é o caso das duas escolas aqui contempladas.

    Beija-Flor e o patrimonialismo

            Começaremos analisando o enredo da escola Beija-Flor de Nilópolis, pois sua interpretação do Brasil é bastante difundida e aceita no senso comum brasileiro. É importante dizer que o tema da Beija-Flor é inspirado na obra “Frankenstein, ou O Prometeu Moderno”, de Mary Shelley. A forma como a escola faz a tradução da obra para a realidade brasileira foi definida com a seguinte expressão: “analogia contemporânea suscitada através da perspectiva de espelhamento”. Em outras palavras, a analogia com a obra de Shelley se dá por meio de um espelhamento, em que o criador (Dr. Victor Frankenstein), arquétipo da ambição e da ganância, espelha/reflete a casta política e burocrática, os empresários corruptores, etc., enquanto a criatura (o monstro Frankenstein), arquétipo do abandono e do desejo de ser aceito e amado, espelha/reflete as misérias do povo brasileiro, abandonado à própria sorte e desamparado pelo poder público.

A comissão de frente apresenta a figura de Prometeu, personagem mítico da Grécia Antiga que teria sido punido pelos deuses por levar clandestinamente o fogo aos seres mortais. Como punição, foi acorrentado numa montanha pela eternidade, e teria um pedaço de seu fígado devorado por uma grande águia todos os dias, para sempre. Durante a noite, o fígado seria regenerado, para que o sofrimento continuasse no dia seguinte. A imagem é forte: Prometeu foi punido por seus esforços para equiparar os seres humanos aos deuses, ou seja, por sua ambição. O Dr. Victor Frankenstein, por sua vez, será o Prometeu moderno devido à sua ambição por gerar vida a partir de matéria morta. Essa imagem da ambição do Dr. Frankenstein como motor de seu desejo enquanto criador vai fundamentar o próximo momento do desfile, que espelhará a ambição como fundamento da história brasileira.

Como é possível observar no desfile, o ínicio do segundo setor apresenta componentes exibindo a fantasia “Piratas - Pilhagem e Espólio”, que representam o começo de uma história na qual o interesse pessoal se sobrepõe ao interesse comum, na qual a vida e a mentalidade será regida por essa lógica de “se dar bem” às custas de outrem. Teremos em seguida as fantasias “Imposto do Inferno” e “Santinhos do Pau Oco”, que representam respectivamente uma alta carga tributária cobrada de forma excessiva pelos governantes colonizadores, e a sonegação feita pelo exploradores das minas como resposta a isso e também como meio de “se dar bem” em relação aos outros exploradores e ao governo. Essas fantasias reproduzem a mentalidade ambiciosa no período histórico do Brasil Colonial. Seguirão as fantasias “Corte da Mamata”, “Ali Babá e os Bobos” e “Vampiros Sanguessugas”, que tratam da chegada da Corte Real Portuguesa ao Brasil, do surgimento da burocracia e dos empresários “amigos do rei” e dos representantes políticos que passam a exercer o poder em prol de seus interesses pessoais.

            Por fim, chegando à atualidade, teremos as fantasias “O Ouro Negro da Corrupção”, “Os Roedores dos Cofres Públicos” e “Lobos em Pele de Cordeiros”, que se referem ao escândalo da Petrobrás e à crise política que assola o país, entendida como o produto de uma mentalidade ambiciosa, gananciosa, que usa a coisa pública para interesses privados. Então, como ápice dessa história, temos os carros alegóricos “A Ambição” e “O Banquete”, que expõem os mais diversos elementos referentes à corrupção na história brasileira. Assim se encerra o setor de “leitura” do Brasil feito pela escola Beija-Flor de Nilópolis.

            Sabemos que a exposição “desse Brasil”, o Brasil do “jeitinho”, da “corrupção”, não é nada original. Está sempre reproduzida nos meios de comunicação, na arte e na própria consciência que o povo brasileiro tem de si. É possível até mesmo dizer, reconhecendo sua ampla divulgação e aceitação, que é a forma como o Brasil enxerga a si mesmo. Mas essa interpretação do Brasil tem nome e sobrenome, não é uma ideia espontânea que surge da percepção do povo: foi amplamente discutida por intelectuais como Raymundo Faoro e Sérgio Buarque de Holanda, com base na obra do sociólogo Max Weber, que traz o conceito-chave de patrimonialismo. Este conceito pode ser definido como “a característica de um Estado que não possui distinções entre os limites do público e os limites do privado”. O patrimonialismo brasileiro é caracterizado por afirmar que a nossa herança colonial é uma burocracia incapaz de distinguir a coisa pública dos seus bens privados, tratando como propriedade pessoal aquilo que seria bem público. Os constantes favoritismos dentro da estrutura governamental, a corrupção e outros elementos também seriam causados por esse patrimonialismo, que refletiria inclusive no comportamento da população brasileira.

Portanto, a interpretação “desse Brasil” pela escola Beija-Flor fundamenta a confusão entre a esfera pública e a esfera privada com base na ganância e na ambição dos ricos e poderosos, do povo em geral, conforme indica este trecho do Abre-Alas: “Essa ganância desmedida e essa desfaçatez por parte dos homens que vestem terno e gravata – políticos, empresários, empreiteiros e afins – produzem uma desigualdade social gritante e latente”. Porém, tal leitura da história brasileira entra em conflito direto com a que foi apresentada pela escola Paraíso do Tuiuti, inspirada numa nova leitura crítica da realidade social brasileira.

    Tuiuti e a escravidão

            A escola Paraíso do Tuiuti fez seu desfile retratando os 130 anos da Lei Áurea, que supostamente acabou com a escravidão no Brasil, mas que será fortemente questionada ao longo do enredo. A comissão de frente faz uma representação cênica da vida dos negros escravizados, da barbárie que essa instituição representa para o nosso país e para a humanidade, homenageando ainda a cultura e a resistência negra, com a figura do preto velho. Então, seguem diversas alegorias que representam o Quilombo do Tuiuti, uma metáfora com a escola e a comunidade do Tuiuti, que seriam uma casa de resistência contra a escravidão do povo negro em favor da liberdade. Na sequência, as alegorias e fantasias tratam da escravidão no mundo antigo, mostrando sua presença ao longo da História, desde o trabalho compulsório no Egito Antigo até o momento do comércio internacional de escravos iniciado pelos países colonizadores europeus.

            Após uma linda apresentação de alas expondo a escravidão fomentada pelo comércio europeu de negros africanos, a exploração das riquezas desse continente etc., surge o carro “Tumbeiro”, que dá início à leitura da escola Paraíso do Tuiuti sobre a realidade social brasileira. O carro representa a chegada da escravidão às Américas por meio dos navios negreiros e a profunda desumanidade desse transporte, sempre abarrotado de homens e mulheres africanos. Então, vemos as alas com fantasias que representam as principais atividades econômicas no Brasil durante os períodos colonial e imperial: as plantações de cana-de-açúcar, café e a extração de ouro, todas realizadas por mão-de-obra negra escravizada. Há também a rainha de bateria como “Espírito Quilombola”, indicando a resistência do povo negro contra a escravidão e a exploração do seu trabalho, e a bateria como “Feitores”, antítese do espírito quilombola, que faziam o papel de capatazes em relação aos outros trabalhadores negros escravizados. Outras fantasias, como “Escravos de Ganhos”, retratam atividades econômicas de pequeno porte que eram exercidas pelos escravizados.

            Na sequência, a escola apresenta as expressões do movimento para a abolição da escravatura no Brasil, como a imprensa negra, os líderes abolicionistas estimulados pelos ideais do iluminismo e as camélias, símbolo da luta antiescravagista. Expuseram também a forte pressão da Inglaterra pela abolição por seus interesses econômicos. Então, surge o tripé “Lei Áurea”, que traz supostamente o negro liberto, mas as próximas alas, com as fantasias “Cativeiro Social”, “Trabalho Escravo Rural” e “Trabalho Informal”, mostram que o fim da escravidão não acarretou nenhuma medida para que as desigualdades sociais fossem superadas, e o povo negro permaneceu em condições de muita pobreza mesmo estando supostamente “liberto”.

Em seguida, as fantasias “Guerreiros da CLT” e “Manifestoches” mostram que as elites escravocratas brasileiras perpetuaram seus desmandos e a superexploração do trabalho sob novas formas, adotando métodos de manipulação e de dominação política. Eis que surge, enfim, o carro “Neo-Tumbeiro”, trazendo todos os elementos de manipulação política e exploração do trabalho promovidos pelas classes dominantes no Brasil, sob o comando do vampiro neoliberalista, fantasia que representa o ilegítimo presidente Michel Temer. E assim se encerrou o desfile e a crítica da escola Paraíso do Tuiuti.

A visão da história brasileira apresentada por essa escola tem uma referência explícita: a obra “A Elite do Atraso”, de Jessé Souza. Além dele, vale destacar na bibliografia do samba-enredo as obras de Ciro Flamarion e Clóvis Moura sobre a escravidão e o trabalho do povo negro nas Américas. Trata-se de uma leitura que critica a interpretação convencional do Brasil feita pelos patrimonialistas, indicando que a origem da desigualdade social e das superestruturas política e ideológica na sociedade brasileira estão vinculadas à manutenção do trabalho negro superexplorado, da segregação social criada pelo escravismo, etc. Jessé Souza dedicou outra obra sua para criticar a forma como os intelectuais brasileiros lidaram com a história de nosso país, chamada “A Tolice da Inteligência Brasileira”. O desfile e o samba da escola Paraíso do Tuiuti não estiveram, portanto, apenas preocupados em trazer uma nova visão crítica da sociedade brasileira, mas principalmente em atacar os limites da leitura convencional baseada no patrimonialismo. Ou seja, temos aqui uma crítica ao cerne do enredo da escola Beija-Flor.

    O patrimonialismo como ideologia conservadora

            Talvez a lição mais importante da Filosofia seja a de perceber que a forma como nós pensamos um problema carrega em si as suas soluções possíveis. Se temos duas formas distintas de pensar o problema da realidade social brasileira, então cada uma vai indicar soluções diferentes para esse problema. É preciso, antes de mais nada, indicar os limites da leitura patrimonialista sobre o Brasil, e então mostrar as consequências dessa interpretação ao pensar soluções para os problemas brasileiros.

            Para facilitar a nossa discussão, pensemos a partir da definição de “homem cordial”, oferecida por Sérgio Buarque de Holanda para explicar as relações sociais do povo brasileiro. A cordialidade aqui não tem seu sentido comum, mas sim um sentido bem específico: o brasileiro é cordial porque age conforme o seu coração, suas emoções, suas afetividades. Devido a essa característica, o povo brasileiro não é capaz de constituir um Estado impessoal, que seja neutro em relação aos cidadãos, que garanta a igualdade jurídico-formal. Para Buarque, a cordialidade vai interferir no funcionamento do Estado brasileiro e será a causa da corrupção, dos favorecimentos ilícitos, etc. Creio que a grande maioria das pessoas vai concordar ao menos em parte que o Brasil tenha essa característica, mas o erro está na forma como Buarque põe o problema.

            A ideia de que o Estado pode ser impessoal e neutro diante da sociedade, em oposição ao Estado brasileiro patrimonialista, é uma ideologia. Isso significa dizer que essa ideia é uma representação de relações sociais imaginárias, abstraídas das relações concretas - quer dizer, um discurso imaginário abstrato que ocupa o espaço de uma realidade concreta. Não há, nunca houve e nunca haverá um Estado que seja neutro perante os cidadãos, porque os indivíduos da sociedade estão divididos em classes sociais. O próprio Estado é constituído por indivíduos que pertencem à classe social dominante. Como esses sujeitos, que pertencem a uma determinada classe, podem atuar no interior do Estado de forma imparcial, se eles já tem seu lado predeterminado? Como podem haver relações impessoais e neutras entre indivíduos que estão divididos em classes sociais que se opõem? A única forma de haver impessoalidade e neutralidade nas instituições como o Estado é numa abstração imaginária que existe apenas na cabeça dos intelectuais. A realidade de todos os Estados, não apenas o brasileiro, é a de distinguir entre os indivíduos ao lidar com conflitos e outras questões de interesse privado.

            Para sermos mais específicos, podemos falar do país que Sérgio Buarque de Holanda opôs ao Brasil: os Estados Unidos da América. Nesse país, a existência de um gigantesco complexo industrial-militar, que financia ambas as campanhas presidenciais do sistema bipartidário, foi um dos principais fatores responsáveis pelas recentes investidas estadunidenses contra países considerados “perigosos” ou “inimigos”, como a invasão no Iraque. As razões superficiais apresentadas pelo então presidente George W. Bush (sobre a possível existência de armas nucleares no país) foram desmascaradas ao fim da invasão, quando se descobriu que não havia e nunca houvera armas nucleares naquele país. A atividade de “lobby”, ou seja, a contratação de certas pessoas por grandes empresas para representar seus interesses junto aos parlamentares, é muito corriqueira nos EUA. Essas figuras, chamadas de lobistas, negociam financiamentos de campanha e outros interesses escusos dos parlamentares em troca de favores para as grandes empresas, como a aprovação de certas leis etc.

            Assim, o patrimonialismo é uma ideologia, pois está fundado numa falsa distinção entre o Estado brasileiro e o Estado impessoal, neutro, que não existe. É uma representação de relações sociais imaginárias, um discurso abstrato sobre a sociedade que não expressa concretamente a realidade. Mas há ainda outro problema: é uma ideologia conservadora. Reduzindo as relações sociais brasileiras ao patrimonialismo, ao homem cordial, etc., as possibilidades de solucionar os problemas sociais no Brasil estão todas reduzidas, igualmente, a superar essa cordialidade, esse patrimonialismo. Para essa ideologia, a ampliação da livre-concorrência e da economia de mercado seria o elemento capaz de combater o patrimonialismo, que estaria presente no Estado e que se oporia aos valores “positivos” do livre-mercado, como a igualdade formal. No desfile da Beija-Flor de Nilópolis, vemos uma atualização dessa exata perspectiva, pois a escola apresenta o combate à corrupção e à intolerância de mais diversos tipos como solução para o espírito ganancioso. Em outras palavras, os problemas do Brasil seriam meramente a falta de tolerância com os negros, com as mulheres, enfim, a ausência de igualdade formal.

            A abordagem da escola Beija-Flor não poderia ser mais explícita: a desigualdade de gênero, a racial, as desigualdades de classe, todas caminham junto à intolerância no esporte e na religião, como se a causa de todas essas mazelas fosse a intolerância. O homem cordial, movido pelas emoções, ama somente o que é semelhante, mas nunca o que vê como diferente. Logo, a solução para o Brasil seria que os políticos, os empresários, enfim, a classe dominante reconheça e se identifique com as classes subalternas, que a elite bal masqué desça para brincar carnaval com o povo. As opressões de gênero e de raça estariam resolvidas com o fim da intolerância, apesar de serem desigualdades fundadas em relações sociais reais: o patriarcado e o colonialismo. Esse disfarce das relações sociais reais feito pelo discurso da tolerância e do reconhecimento é profundamente conservador, porque turva a visão da luta de classes, da oposição inconciliável entre as elites exploradoras e o povo explorado, etc.

    Conclusão, ou o Brasil escravocrata

            A escola Paraíso do Tuiuti, na linha de Jessé Souza, apresenta uma crítica à ideologia patrimonialista. Em lugar da relação social imaginária do “homem cordial”, propõe-se uma relação social concreta: as relações de produção escravistas. O Brasil passa a ter como cerne de sua História essa relação social que, diferente do “homem cordial” de Buarque, pode ser apreendida pelas ciências sociais, pois é concreta. E o funcionamento da política e do Estado brasileiros são muito bem explicados a partir desse conceito, como fica evidente na apresentação que a escola faz sobre a atualidade do nosso país. Um país marcado pela superexploração do trabalho, principalmente do povo negro, pela manutenção das desigualdades sociais que surgem a partir da escravidão, pelo trabalho escravo contemporâneo, pelo trabalho informal que se impõe à boa parte do povo, sem acesso a nenhum direito social, e pelos instrumentos de manipulação e dominação políticos que as classes dominantes utilizam para reduzir ainda mais os direitos sociais e ampliar desmedidamente a superexploração do trabalho.

            Portanto, diante desses “dois Brasis” que foram criticados na Sapucaí, temos uma visão crítica, concreta e radical da nossa realidade, enquanto a outra é acrítica, abstrata e conforme os interesses das classes dominantes, em sua busca irrefreada por ampliar a superexploração do trabalho. A “crítica” da escola Beija-Flor de Nilópolis esteve inclusive em consonância com os discursos, temas e debates sobre a realidade brasileira promovidos pela Rede Globo, pelo Estado de S. Paulo, pela Folha de São Paulo, enfim, por toda a mídia hegemônica. A identificação entre as pautas desses meios (a “violência” das classes subalternas, a “corrupção” de todos os políticos, etc.) e o que foi exposto no desfile da escola ficou tão explícita quanto a identificação entre essas pautas e os interesses das classes dominantes na sociedade brasileira. Afinal, os donos privados desses meios de comunicação pertencem igualmente à classe dominante, refletindo intencionalmente a ideologia dominante em seus noticiários, jornais, etc. Não há conciliação entre as duas visões, entre as duas escolas: a Paraíso do Tuiuti é a campeã do povo!


Referências:







Acervo Crítico sempre abre espaços para colunas de Opinião para nossos seguidores e leitores. Caso queiram contribuir, entrem em contato conosco!
Wesley Sousa

Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem