A FARSA DO COMISSÁRIO - IDENTITARISMO E EMPIRISMO VULGAR
Por Alex Agra*
Alex Agra Ramos é aluno do bacharelado de Ciência Política da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que compõe o curso de Ciências Sociais. Foi pesquisador do Programa de Estudos, Pesquisa e Formação em Políticas e Gestão da Segurança Pública (PROGESP), um dos colaboradores do livro Segurança Pública - Diagnóstico, Conflitos, Criminalidade e Tecnologia da Informação, colunista do Diário Liberdade e agora, também colunista do Acervo Crítico.
Alex Agra Ramos é aluno do bacharelado de Ciência Política da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que compõe o curso de Ciências Sociais. Foi pesquisador do Programa de Estudos, Pesquisa e Formação em Políticas e Gestão da Segurança Pública (PROGESP), um dos colaboradores do livro Segurança Pública - Diagnóstico, Conflitos, Criminalidade e Tecnologia da Informação, colunista do Diário Liberdade e agora, também colunista do Acervo Crítico.
A realidade material por
vezes nos surpreende de forma que se torna imprescindível recorrer à literatura
para poder descrevê-la da melhor forma possível. É assim que Machado de Assis,
em Ao acaso, pôde nos
proporcionar a melhor declaração possível sobre o artigo “A fraude dos
especialistas em Segurança Pública”, publicado por Aurílio Nascimento no Extra:
“Um dos defeitos mais gerais,
entre nós, é achar sério o que é ridículo, e ridículo o que é sério, pois o
tato para acertar nestas coisas é também uma virtude do povo.”
Como
qualquer leitor atento pode constatar, não há nesse texto um constrangimento em
citar nomes. Isso porque o fundamento da política é essencialmente a relação
amigo-inimigo, e precisamos ter muito claro de que lado nós estamos e quem são
nossos inimigos se desejamos entrar na disputa política. Nosso inimigo Aurílio
Nascimento, infelizmente, não nos deu a honra de declarar nominalmente quem são
seus inimigos. Não sabemos ainda se trata-se de falta de conhecimento ou de
covardia, mas talvez seja um misto de ambos os aspectos. Quando o
“especialista” Aurílio declara:
“Não é recente o aparecimento de dezenas de
especialistas, consultores e estudiosos em segurança privada e pública
opinando, sugerindo, ganhado os holofotes e muito dinheiro.”
Ora, quem
são esses especialistas? Quem produz ciência de verdade em Segurança Pública
também tem interesse em saber. Quando me refiro a quem produz ciência, falo de
Daniel Cerqueira, no Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), dos
diversos pesquisadores que compõe hoje o Fórum Brasileiro de Segurança Pública
(FBSP), de Sergio Adorno e seus pares no Núcleo de Estudos da Violência (NEV),
do José Luiz Ratton no Núcleo de Pesquisas em Criminalidade, Violência e
Políticas Públicas de Segurança (NEPS) e de tantos outros excelentes espaços
compostos por pesquisadores no Brasil. É certo que para uma corrente da
filosofia da ciência, corrente que nós defendemos, o a verdade é uma
característica das ideias quando estas correspondem com a realidade. O critério
de verdade, no entanto, é a prática. Sabemos que os indivíduos são racionais,
isto é, capazes de apreender a realidade – e consideramos a racionalidade uma
característica de todos os seres humanos (ainda temos alguma dúvida sobre o
Aurílio depois da leitura do artigo). Em nossa perspectiva, a história se
apresenta então como uma ferramenta inexorável para a ciência porque é nela que
vamos buscar a origem e o desenvolvimento do objeto que pretendemos investigar.
Observar a polícia, por exemplo, significa observar o processo histórico de
constituição da polícia, bem como seu desenvolvimento, mas também significa
entrar em um aspecto mais amplo: observar a formação do Estado brasileiro, do
Estado moderno e assim por diante. Essa constatação é importante porque
entendemos que, nas palavras de certo alemão que fez aniversário recentemente:
“Os homens fazem a sua
própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob
circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações
mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.”
Falamos
disso porque como diz o nosso mestre Ivo Tonet:
“Todo tratamento de qualquer fenômeno social e,
por conseguinte, também da problemática do conhecimento, tem como pressuposto
uma determinada ontologia, isto é, uma concepção prévia do que seja a
realidade.”
Mas o
trecho que mais nos interessa pra a discussão que pretendemos é:
“Ponto de vista ontológico é, por sua vez, a
abordagem de qualquer objeto tendo como eixo o próprio objeto. Lembrando,
porém, que ontologia é apenas a captura das determinações mais gerais e
essenciais do ser (geral ou particular) e não, ainda, da sua concretude
integral. Deste modo, a captura do próprio objeto implica o pressuposto
de que ele não se resume aos elementos empíricos, mas também, e principalmente,
àqueles que constituem a sua essência” (grifo nosso)
Ora, o
que pretendemos aqui? Apontar que existe uma universalidade do real e da
racionalidade. Uma vez que afirmamos nossa abordagem ontológica como uma
ontologia histórico-social, em que os indivíduos são capazes de apreender a
realidade, partiremos para nosso ponto de vista específico sobre a produção de
conhecimento na Segurança Pública. Como nosso objetivo é produzir uma crítica
ao artigo do “especialista” Aurílio, nosso posicionamento sempre aparecerá aqui
como um confronto ao posicionamento. Em um momento fundamental do texto do
“especialista”, ele defende a ideia de que, a partir de um conjunto de
pré-requisitos que o nosso iluminado articulador estabelece, é possível
classificar um “especialista” em Segurança Pública como uma farsa. Vamos
observar quais são esses pré-requisitos:
1 -
Exerceu por pouco tempo algum cargo na segurança pública ou militar sem nenhum
destaque.
2 - Nunca
investigou um crime ou prendeu um criminoso.
3 - Nunca
compareceu a um tribunal para auxiliar o Ministério Público na acusação de
marginais.
4 - Nunca
participou efetivamente de operações policiais.
5 - Todo
o seu conhecimento tem origem na leitura de relatórios.
6 -
Jamais interrogou um acusado.
7 - Leu
três livros sobre o assunto.
8 - Tem
raciocínio rápido para enrolar nas respostas.
9 - Nunca
portou armas.
10 - Fala
demais.
E ele
segue com:
“Além dos dez pontos acima elencados, outros
fatores criam uma aura de conhecimento infinito nos autoproclamados
"especialistas, consultores e estudiosos". Sempre falar o óbvio,
criticar a parte mais fraca, apontar erros em condutas sabendo apenas de poucos
detalhes. É essencial na farsa um bom conhecimento da natureza humana, falando
sempre o que as pessoas querem ouvir.”
De
imediato o leitor compreende que para o “especialista”, o problema dos
especialistas está condicionado à prática da atividade policial, como se a
afirmação da prática como critério de verdade pudesse vir acompanhada de um
condicionamento da apreensão de realidade do sujeito à essa prática. Isto é,
somente o policial é capaz de apreender a realidade efetiva da Segurança
Pública. É claro que na visão imediatista e limitada do nosso especialista,
todos os policiais surgem como uma unidade, não existe o antagonismo entre
delegados e investigadores, não surge o antagonismo entre oficiais e praças,
tampouco existe o processo de decisão política e suas etapas. Os interesses dos
policiais surgem como um “bem comum” para a Segurança Pública, desaparecem os
interesses privados de oficiais e delegados, a influência dessas categorias no
processo de formulação de políticas públicas na área, bem como desaparecem os
exemplos desastrosos de secretários de Segurança Pública que são delegados de
polícia, como foi Fernando Francischini com Beto Richa e como é atualmente
Maurício Barbosa com Rui Costa. Desaparecem, por óbvio, os candidatos e
políticos que são policiais com propostas absolutamente surreais e que não
contribuem em absolutamente nada para a Segurança Pública no país, como
projetos de lei para serem tratados por vossa excelência, para serem
reconhecidos como carreira jurídico-policial, para receber 95% do subsídio
mensal fixado para membros do Supremo Tribunal Federal. Isso sem contar os
projetos de mesma natureza que são propostos por meio de acordos de natureza no
mínimo duvidosa entre associações como a Associação Nacional de Delegados da
Polícia Federal (ADPF) e políticos de todo tipo. O senador Humberto Costa que o
diga.
Lembremos
portanto, das cinco etapas da decisão política estabelecidas por Charles
Lindblom:
1 –
Agendamento
2 –
Formulação
3 –
Implementação
4 –
Avaliação
5 –
Finalização
Sabemos
que é na primeira etapa, isto é, na constituição da agenda, que determinados
pontos são considerados problemas públicos. Sabemos que os burocratas exercem
forte pressão nessa área e que são responsáveis pela implementação, sobretudo
os chamados “burocratas de rua” (onde se enquadram os policiais). Isso serve
como base para analisarmos a seguinte declaração do “especialista”:
“Se
a existência dos autoproclamados "especialistas, consultores e
estudiosos" da segurança fosse positiva, agregando soluções mínimas,
estaríamos muito bem, não iríamos perder nem para o Jardim do Éden, onde não
havia controle de acesso e alguém entrou disfarçado, estragando tudo.”
O que faz
o nosso “especialista” é reduzir o processo de decisão política apenas à livre
vontade dos que ele qualifica como “especialistas, consultores e estudiosos”.
Na cabeça do “especialista”, mas só dentro dela, existe uma relação orgânica
entre os pesquisadores da área de Segurança Pública e a formulação de políticas
públicas. Mas isso acontece porque o nosso “especialista” segue a cartilha
daqueles que ele diz criticar no ponto fundamental: não sabe nada de coisa
alguma. Reproduz em seu discurso uma distorção da realidade conforme lhe
convém, excluindo e acrescentando elementos conforme lhe interessa. O leitor
menos atento poderia dizer que há no discurso do “especialista” Aurílio uma
diferenciação entre o pesquisador sério e a farsa, evidenciada pelo exemplo que
ele utiliza no primeiro parágrafo sobre os falsos negociadores. Mas é evidente,
nos pontos em que apresenta, sobretudo nos pontos 1, 2, 3, 4, 6 e 9 que o
“especialista” visa construir uma identidade, cujo portador teria critério de
verdade para se posicionar diante do tema da segurança. Essa identidade, por
óbvio, é a identidade do policial. Nenhum pesquisador sério reduz seu
conhecimento a relatórios (embora observe a importância deles), lê apenas três
livros sobre o assunto e enrola nas respostas. Na verdade, esse tipo de
pesquisador é atropelado em debates de diversos níveis por pesquisadores
sérios, como evidenciam vários confrontos em todo tipo de espaço entre a
brilhante Jacqueline Muniz e, esses sim, “especialistas” de todo tipo, como
nosso inimigo Aurílio. Há em Aurílio ainda a defesa de uma natureza humana
nunca confirmada sob a ótica da antropologia, diretamente relacionada à sua
incapacidade de enxergar as relações entre sujeito e objeto, sujeito e
realidade e mais que isso, as relações que os sujeitos estabelecem entre si.
Como diria o nosso amigo alemão supracitado:
“Este indivíduo do século
XVIII é produto, por um lado, da decomposição das formas de sociedade feudais,
e por outro, das novas forças produtivas desenvolvidas a partir do século XVI.
E, aos profetas do século XVIII, (sobre cujos ombros se apoiam ainda totalmente Smith e Ricardo), este indivíduo aparece como
um ideal cuja existência situavam no passado; não o veem como um resultado
histórico, mas sim como ponto de partida da história. E que, segundo a
concepção que tinham da natureza humana, o indivíduo não aparece como produto histórico,
mas sim como um dado da natureza pois, assim, está de acordo com a sua
concepção da natureza humana. Até hoje, esta mistificação tem sido própria de
todas as épocas novas. Stuart, que se opôs em muitos aspectos ao século XVIII e
que, dada a sua condição de aristocrata, se ateve mais ao terreno histórico,
evitou esta puerilidade.”
Por fim,
o que defendemos efetivamente é a construção de um projeto nacional de
Segurança Pública que integre os conhecimentos de diferentes setores da
sociedade. Integração é fundamental porque os policiais têm conhecimentos
profundos e de altíssima relevância sob o trabalho que realizam que não só
podem como devem servir de fundamento para a construção de propostas de
políticas de Segurança Pública, amplamente fundamentadas em pesquisas sérias e
um rigor técnico primoroso, como são as pesquisas de Dillon Soares em “Não
matarás” e “Por que cresce a violência no Brasil?”, esse último em parceria com
o excelente Luís Flávio Sapori. Consideramos que esse identitarismo juvenil
misturado com um empirismo vulgar do “especialista” tende, na verdade, a
agravar os problemas da Segurança Pública porque parte de um princípio de
negação de uma forma de produção de conhecimento socialmente relevante. Parte
do princípio de que os fenômenos apreendidos pelos indivíduos são suficientes
para fundamentar a produção de políticas públicas. O nosso especialista
substitui o governo de filósofos de Platão pelo governo de policiais, os
iluminados que trarão o conhecimento a todos nós. Defendemos como fundamento
necessário para a construção do projeto nacional de Segurança Pública a
participação dos policiais, defendemos que tragam seus conhecimentos, que se
tornem também pesquisadores, que enriqueçam seu conhecimento com as produções
de pesquisadores de Segurança Pública assim como enriquecem o conhecimento
desses mesmos pesquisadores. As maravilhas que um pesquisador pode aprender
sobre Segurança Pública estabelecendo um diálogo constante com policiais são
quase de natureza poética, mas se configuram como um conhecimento fundamental
para a atividade de pesquisa. O que não podemos, no entanto, é recusar o
conhecimento científico como faz o “especialista”, confundir o pesquisador
sério com a farsa, e afirmar um empirismo vulgar como critério de verdade,
porque:
“... toda
ciência seria supérflua se houvesse coincidência entre a essência e a aparência
das coisas.”.
Mas não
defendemos a participação de quaisquer policiais. Sabemos e fazemos questão de
denunciar aqui o antagonismo entre delegados e investigadores e o antagonismo
entre oficiais e praças. Defendemos a participação dos praças e dos
investigadores contra os interesses dos oficiais e delegados, porque sabemos
que nesse momento os interesses dos praças e dos investigadores são interesses universais
porque suas consequências resultam em ganhos universais. Carreira única (ou
ingresso único, se quiser chamar), ciclo completo de polícia, fim do inquérito
policial e outras pautas produzem resultados públicos positivos para a
segurança e portanto, representam um interesse social universal que entra em
confronto com os interesses privados de oficiais e delegados anteriormente
denunciados no nosso texto. Convidamos esses policiais a se integrarem para a
construção do projeto nacional de Segurança Pública. Mas convidamos também o
nosso “especialista” a citar nomes da próxima vez. Se assim o for, e a depender
dos nomes, pelo menos podemos confirmar que não se trata de covardia e sim de
falta de conhecimento.
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