Samuel é mestrando em Sociologia na
Universidade de Brasília. É graduado em Ciência Política pela Universidade de
Brasília (UnB). Concentrou estudos durante a graduação sobre a Guerra às Drogas
nas Américas e no Mestrado pesquisa os efeitos ideológicos do Discurso
Punitivo. Tem interesse nas seguintes áreas: Crítica da Ideologia; Análise de
Discurso Crítica; Criminologia Crítica (Sociologia Política do Sistema Penal),
Medo e Insegurança Pública, Controle Social e Dominações Sociais, Abolicionismo
Penal, Teoria do Estado, Violência do Estado, Política de Drogas e Uso Cultural
de Drogas, Teoria Sociológica Marxista, Estudos Latino-Americanos.
Acervo Crítico – Samuel, em sua
proposta de pesquisa você aborda temas como o que chamou de “Utopia da
Abolição”. Poderia comentar um pouco sobre essa perspectiva em tempos em que o
capitalismo engendra formas de violência cada vez mais estruturais?
Samuel: Bem resumidamente, os estudos críticos
sobre o controle social do sistema penal vem demonstrando há mais de meio
século que esse sistema é um embuste. Uma grande enganação da sociedade que
acha que o Sistema de Justiça Criminal tem algo a ver com justiça, redução de
crimes e violência, enquanto na verdade ele é marcado por uma “eficácia
invertida” (conceito da criminóloga Vera Andrade). Quer dizer que por trás dos
seus objetivos declarados, aparentes e socialmente positivos, seu funcionamento
concreto e essencial é de um controle social seletivo, sobretudo pela
criminalização racista de pessoas pobres, e pela própria reprodução daquilo que
visa combater, seja por evitar que se promova o que de fato pode cumprir essa
promessa de redução de práticas sociais nocivas, seja por promover pela
instituição prisional um fomento à criminalidade (o chamado caráter criminógeno
do cárcere). Se esse é caso (e há muitos trabalhos que fundamentam isso, dentre
eles meu TCC sobre a “Eficácia Invertida da Guerra às Drogas”) então não
podemos entrar nesse debate público com timidez, sussurrando nossos protestos,
mas sim com uma postura denuncista e militante: como se não bastasse nosso
sistema penal ser um fiasco no que se propõe, ele ainda é um fator que piora
muito mais a vida social, necessitando ser reposto por um sistema de justiça
alternativo. Isso é o que chamo de Utopia da Abolição. Mas o que vemos nas
últimas décadas na maioria dos países não é um movimento de redução e
transformação do SJC, mas de contínua hipertrofia, como é o caso do Brasil.
Isso é analisado, por autores como Loic Wacquant, como algo relacionado ao
período neoliberal do capitalismo, com a máxima retração das políticas sociais
que reduzem desigualdades e aumentam o bem-estar social, a desregulação
econômica que permite uma mais agressiva exploração do trabalho e de
concentração de renda em níveis abismais e a expansão máxima da repressão e
punição como forma de gestão social dos marginalizados e descontentes. Em suma:
o sistema penal é um instrumento de dominação social, intimamente relacionado à
estruturas como o capitalismo e a supremacia racial branca. Ele se legitima por
uma distorção ideológica, que manufatura um consentimento social às suas
práticas dado o fortíssimo apelo social das suas promessas declaradas (quem não
quer viver com mais segurança?) e de todas instituições sociais, como a mídia
convencional, que militam continuamente para reproduzir esse consentimento. O
que temos, então, é uma disputa incessante de discursos por preponderância no
entendimento social sobre crime e de como devemos reagir a ele. É basicamente o
que pesquiso no mestrado: a disputa de hegemonia criminológica e
político-criminal dentre discursos punitivos (legitimadores desse sistema
penal) e antipunitivos (que deslegitimam esse sistema penal), com ênfase na
crítica da ideologia punitiva. É também o que comecei a promover no projeto
Cifra Oculta no Youtube e Facebook, tentando trazer o discurso da criminologia
crítica de maneira didática para disputar hegemonia nas redes sociais. Até o
momento é um projeto em fase experimental, mas devo retomá-lo em alguns meses
assim que as atividades acadêmicas me possibilitarem um tempo livre para isso.
AC – Você tem mencionado
que a crítica à ideologia dominante é um
esforço discursivo teórico para compreender como essa complexa engrenagem
funciona, envolvendo linguagem, epistemologia, sentidos e poder, intervindo na
mesma e tensionando a hegemonia visando a mudança social. Diante disso,
quais têm sido suas impressões acerca dessa luta até aqui pela hegemonia (em
termos gramscianos)?
S: Desde minha pesquisa anterior sobre a
guerra às drogas, em que encontrava evidências sobre o fiasco dos objetivos
declarados e da eficácia invertida do sistema penal eu ficava um tanto chocado.
Como pode haver uma disparidade tão grande entre a realidade concreta e os
discursos hegemônicos sobre ela? Como pode um sistema ilegítimo possuir tanta
organicidade no senso comum? Por isso eu decidi que devia aprofundar no estudo
do discurso punitivo a partir de uma teoria crítica da ideologia. No meu
arcabouço teórico e metodológico predomina uma matriz marxista. O conceito
marxista de ideologia é um dos mais controversos na história das ciências
sociais, e eu sabia que precisava fazer uma revisão teórica robusta para
conseguir fundamentar uma crítica da ideologia punitiva. Daí, o que eu faço na
minha análise de discurso (ancorado em autores como Norman Fairclough) é
identificar elementos discursivos centrais do discurso punitivo (por exemplo,
que a impunidade é um dos principais fatores explicativos da nossa crise de
segurança pública) e investigo sua semiose (a produção de sentidos) no nosso
contexto sociohistórico de crise (caos político-econômico, caos carcerário,
altíssimas taxas de homicídios e de letalidade policial etc.). Seguindo uma
teoria crítica da ideologia (como de Jorge Larrain, John Thompson, Terry
Eagleton) eu olho para como esses elementos colaboram para sustentar relações
de dominação social, conforme diferentes modos de operação que a dominação
ideológica dispõe, por exemplo, a dissimulação da realidade. Mas faço isso sem
ignorar contribuições de uma teoria neutra da ideologia (sobretudo Stuart
Hall), que me faz procurar entender as razões de ser desse discurso e da sua
capilaridade no senso comum, que anseios ele responde, o que ele eficazmente
consegue explicar da vida social, das relações vivenciadas dos sujeitos que, em
contrapartida, o discurso antipunitivo não consegue. Esse tipo de análise tem a
finalidade explícita de me permitir elaborar uma estratégia de disputa de
hegemonia, seja desconstruindo e refutando o discurso punitivo, seja
aperfeiçoando o discurso antipunitivo para torná-lo mais orgânico no senso
comum. Toda questão aqui remete à força socio-política dos discursos. Eu sei
que é algo ambicioso para uma pesquisa de mestrado, mas essas são as questões
que mais me inquietam e derivam de um senso de urgência para uma transformação
social. A injustiça punitiva acontece incessantemente, na violência policial,
na tortura carcerária, nas opressões de classe, raça e gênero que se entrelaçam
ao poder punitivo. Não dá pra pesquisar isso sem se revoltar e querer mudança;
mas, infelizmente isso ainda é norma nas ciências sociais que tem medo de ser
engajadas porque corromperia a pesquisa. Essa veia de positivismo científico é
um conforto para quem se encontra em posições dominantes. Já eu acho que todo
intelectual tem que ter a Tese Onze sobre Feuerbach na mente constantemente,
temos a responsabilidade de não só de interpretar mas de procurar mudar a
sociedade.
AC – Você aponta em sua
pesquisa sobre o papel preponderante que a luta de classes e a ideologia
repressora que proporciona a exclusão e repressão social na criminalização das
drogas. O que pode nos dizer acerca disso?
S: No meu TCC eu tentei abordar de
maneira interseccional as principais vulnerabilidades ao poder punitivo. No
caso, abordei as clivagens de classe, raça, gênero e geopolítica (ainda não
encontrei uma boa categoria para expressar essa questão, que não se refere só à
divisão dos países entre os com desenvolvimento dependente e autônomo, mas das
dinâmicas de centro/periferia interna a cada país e cidade, que também são
determinantes de vulnerabilidade/imunidade penal). Enquanto o sistema penal
promete punir todos os crimes existentes (criminalidade real), ele só atua de
fato numa pequena fração (criminalidade aparente) enquanto deixa imune e impune
uma maioria (criminalidade oculta). Os principais determinantes de quem é
reprimido e quem não é, são as características do suspeito em uma sociedade
desigual e com estereótipos criminais já cristalizados. Quer dizer, não é
surpresa a ninguém que uma pessoa pobre tenha menos recursos para uma defesa
adequada se comparado a alguém de classe média ou alta. Na questão das drogas a
arbitrariedade é mais gritante. Como não há critérios objetivos para discernir
usuários de traficantes (art. 28 e 33 da Lei 11.343/2006) cabem aos policiais e
depois aos juízes indicar e sentenciar se a posse de droga era para consumo ou
venda. Os termos utilizados que explicam os critérios dos juízes ou do
“tirocínio” policial são terríveis, falam em “famílias desestruturadas”, “kit
péba”, quando não termos completamente vagos como “atitude suspeita”. A lógica
é simples: quão mais privilegiado você é, mais cidadão de bem é considerado
pelo SJC, quão mais subalterno, ferrado nessa sociedade desigual, mais suspeito
de crime você é. Daí, você pode tanto contar como uma Defensoria Pública
sucateada ou com advogados de ponta que são bons amigos do juiz e do promotor
do seu caso. Daí que não há afirmação mais ideológica que “a lei é para todos”.
A lei só é igualitária formalmente. Na prática, impera desigualdades gritantes.
E no ciclo de se prender mais os vulneráveis se produz o estereótipo que
retroalimenta essa seletividade: os crimes passam a ser vistos realmente como
coisa de gente pobre, negra e periférica, em vez de disseminados também na
população branca, rica que vive nos centros e em condomínios fechados. É essa
bizarrice que permite que Rafael Braga seja um condenado pela Lei de Drogas
enquanto as empresas e bancos que lavam dinheiro desse negócio multibilionário
fiquem imunes, não raro diretamente corrompendo instâncias do Estado como o
SJC.
Dado isso, foi apenas recentemente que
eu cheguei numa teorização criminológica que colocasse a luta de classes como
um fator central no debate político-criminal, e isso foi depois de conhecer a
obra de Georg Rusche Otto Kirchheimer ‘Pena e Estrutura Social’ que é bem
convincente sobre como o modo de produção capitalista demanda o cárcere e a
repressão policial como formas de disciplinar a força incluída e excluída do
mercado de trabalho. Por isso, me parecer inviável pensar a superação
estrutural das injustiças punitivas sem pensar na superação do nosso próprio
modo de produção como condição disso. Daí pensar que a luta de classes é uma
luta essencial do abolicionismo penal. No meu trabalho eu articulo uma teoria
das dominações e lutas sociais de inspiração gramsciana com a teoria
criminológica de autores como Juarez Cirino dos Santos e Alessandro Baratta,
que também têm forte influência marxista e socialista. Outro autor fundamental
é Thomas Mathiesen, considerado um dos pioneiros do abolicionismo penal. Mais
recentemente venho me aprofundando no chamado realismo de esquerda, que também
tem inspiração marxista e socialista mas apresenta análises e propostas bem
mais recuadas daqueles que chamam de “idealistas”. Venho procurando sínteses de
um debate entre radicais e moderados para chegar em uma proposição discursiva
que consiga satisfatoriamente articular um horizonte revolucionário com táticas
realistas de dialoguem com o senso comum e permitam incidir para mudar a
correlação de forças nessa direção.
AC – As mídias sociais,
com suas plataformas próprias, tem influenciado bastante no discurso
reacionário, moralista e punitivo, como por exemplo, o MBL, Instituto Liberal,
etc., para o chamando populismo penal, não apenas os programas diários com a “espetacularização da violência” como já
sabemos. Até que ponto isso tem influenciado o debate público mais sério
acerca da criminalidade, repressão e perpetuação da violência (visto que ela
também é lucrativa)?
S: Penso que é um discurso bastante
influente. Talvez muito mais nas instâncias governamentais do que no senso
comum brasileiro, que possui mais complexidade e contradições do que se costuma
crer. Já no Estado brasileiro, impera o discurso repressivo-punitivo. Temos
juízes que se negam a empregar penas alternativas quando elas cabem. Que abusam
do uso da prisão preventiva, que deveria ser para casos excepcionais de risco à
sociedade e ao processo penal. Que acham o problema do Brasil é que se prende
pouco, ignorando o crescimento estratosférico do encarceramento no país. Que
acham que colocar militares para fazer segurança pública é alternativa melhor
do que estrangular a fonte de dinheiro do tráfico a partir da regulamentação do
comércio de drogas. Que propagam o mantra da ideologia neoliberal que o mercado
é sempre mais eficiente que o governo, portanto as prisões deveriam ser
privatizadas. A situação é complicada, mas para ter uma ideia da influência
desse discurso punitivista nas instituições, em Agosto de 2017, cerca de cem
Promotores de Justiça do Rio Grande do Sul (com representantes da esfera
estadual, federal e militar do MP) lançaram um manifesto “contra a impunidade”,
o desencarceramento e o garantismo penal. Em Setembro de 2017, no Rio de
Janeiro, o MP-RJ promoveu o evento “Segurança Pública como direito
fundamental”, contando com Kim Kataguiri e Roberto Motta, porta-vozes do
Movimento Brasil Livre (MBL) e Alexandre Borges, do Instituto Liberal,
representando a sociedade civil, além de contar com o lançamento do livro
“Bandidolatria e Democídio”, cuja tese é que limitar o poder punitivo
(fundamento do garantismo) significa o “extermínio do povo”. Outro exemplo que costumo
dar é o sucesso eleitoral que populistas penais nas últimas eleições à Câmara
Federal. Jair Bolsonaro, Delegado Waldir e Alberto Fraga foram todos
recordistas de votos em seus estados. Mas como disse, na sociedade a coisa é
mais complexa, e em 2014 se teve Bolsonaro campeão de votos como deputado
federal e Marcelo Freixo, com um discurso diametralmente oposto, campeão de
votos para deputado estadual, ambos no Rio de Janeiro. Se a situação é grave,
isso não pode nos fazer ignorar que há muito espaço de disputa. Algumas
pesquisas de opinião pública mostram que há grande desconfiança sobre as
polícias, o judiciário e também percepção de seletividade penal de classe e
raça. Interpreto disso que o discurso crítico tem sim incidência, e que poderia
ser mais eficaz se houvesse uma boa política de comunicação dessa eficácia
invertida do sistema penal e de uma construção de alternativas atraentes. É
nessa direção que venho caminhando.
AC – Alguns debates por
aí tem dito que não é a gravidade da pena, mas a certeza da punição que
inibiria o crime. Esses usam de dados que, segundo constam, apenas 5% dos
crimes são “solucionados”. Mas, se vermos outros dados, furto e roubo
constituem 37% da população carcerária. Crimes até de certa forma torpes
compõem a maioria das celas brasileiras. Essa possível “certeza” da punição não
estaria tomando o efeito pela causa?
S: Ambas as questões citadas, da
severidade e da probabilidade pena, se relacionam à chamada “prevenção geral”,
uma das funções da pena. A ideia que a certeza da pena tem mais potencial
preventivo que a severidade está presente na teoria clássica da criminologia
(cujos nomes mais conhecidos são Cessare Beccaria e Jeremy Bentham), mas já foi
verificado em diversas pesquisas empíricas contemporâneas. Mas não se trata de
realmente punir todos os crimes, que é uma meta impossível, delirante, mas de
criar a expectativa de que a probabilidade de ser pego em um delito é muito
alto, as pesquisas mostram que isso pode sim prevenir crimes. Já a severidade
penal não possui influência detectável, provavelmente porque as pessoas não se
importam com isso, porque é irrelevante a pena ser severa se sua expectativa é
não ser punido.
A questão dos crimes toscos é
fundamental e me leva à outra questão. Eu acho irracional que uma sociedade
gaste mais seus recursos na prisão de suspeitos/condenados de furto do que de
homicídio. Mas esse é o Brasil. O que isso diz sobre nossas prioridades? Veja,
eu não acredito que a prisão seja apropriada nem para crimes violentos (apesar
de servir de incapacitação em alguns casos, como assassinos em série) por
várias razões, cuja maioria é sintetizada no livro de Thomas Mathiesen The
Prison on Trial. Mas acho que uma política penal alternativa passa pela
descriminalização de crimes não violentos (como uso e venda de drogas, que
deveria ser regulamentado) e despenalização com pena de prisão para crimes não
violentos (como furto, que deveria ser lidado com penas alternativas,
indenização da vítima e assistência social para o criminoso em situação de
privação de necessidades básicas), o que teria um impacto muito importante no
desencarceramento e redução da superlotação no Brasil, o que é uma condição
para conseguir combater as facções que proliferam e se fortalecem nesse
contexto hiperpunitivo. Se a prioridade do SJC não fosse a criminalização
racista da pobreza, focando em crimes de drogas e patrimoniais, talvez
pudéssemos investir na resolução de crimes violentos como homicídios,
sequestros, violência doméstica e estupros. Alguns podem querer confiscar minha
carteirinha de abolicionista, mas acho inviável empregar um discurso
antipunitivo que defenda a não prisão de condenados por esses crimes muito
violentos. Talvez seja aqui que fique mais evidente a influência dos realistas
de esquerda sobre mim. Acho que é necessário adequar o discurso radical para
disputar e alterar nossa correlação de forças. Isso significa mediações táticas
que não correspondem ao “programa máximo” do fim das prisões. Acho que como
mediação, a descriminalização e despenalização de crimes de potencial social
nocivo baixo e a priorização da repressão do SJC a crimes de alto potencial
social nocivo, como os exemplos que já dei, é um discurso político-criminal
alternativo mais racional e que possui um potencial melhor de disputar o senso
comum do que, digamos, querer abolição de todo sistema penal imediatamente.
Enfim, é um debate complexo que o campo progressista e radical tem que ter
sobre táticas e estratégias para enfrentar a hegemonia punitiva.
AC – Maria Lúcia Karam,
em um conhecido artigo, intitulado “A Esquerda
Punitiva”, afirmou que ao mesmo tempo em que a esquerda pede por menos
seletividade e discriminação, primitivamente, ao passo que pedir mais rigor na
punição dos privilegiados da sociedade, de certa forma, apenas reproduz e
mantém os anseios por um sistema penal ainda mais repressor. Você concorda com
isso? E por quê?
S: Não concordo, mas acho que essa é uma
questão central que ainda está aberta para mim. Como disse, há complexidades aí
sobre táticas e princípios que aqueles que defendem uma política antipunitiva
tem que realizar. Acontece que há poucos anos eu concordava plenamente com a
tese da Karam e outros abolicionistas penais sobre a total ilegitimidade do
clamor punitivo sobre opressores (pensando aqui nas violências racistas,
sexistas, LGBTfóbicas etc.) e exploradores (crimes de colarinho branco, de
agentes poderosos no mercado e no Estado). Mas gradualmente eu cheguei numa posição
diferente, que articula um minimalismo tático com um abolicionismo estratégico.
Nessa visão, o minimalismo permite sim a punição de criminosos de colarinho
branco, de racistas, estupradores, pedófilos, LGBTfóbicos etc. Eu vejo
abolicionistas rotulando movimentos sociais progressistas como se fossem
idênticos aos punitivistas de direita e só consigo pensar como isso é
contraprodutivo. Não deveriam os abolicionistas focar mais suas energias em
apresentar propostas antipunitivas para as violências e opressões estruturais
que temos na nossa sociedade do que em apontar o dedo para a cara de militantes
que só tem esse imperfeito, problemático e ideológico instrumento punitivo ao
seu dispor para reagir à essas violências? Sem contar na falta de empatia que
costuma acompanhar isso. Acho que um discurso abolicionista que afugenta até a
esquerda nunca será hegemônico e se aprisiona numa irrelevância política. Eu e
a Sabrina Fernandes já escrevemos sobre isso no contexto do clamor punitivo
sobre o “ejaculador do ônibus” e ela também produziu um vídeo para o canal dela
(Tese Onze) sobre alternativas não prisionais para a violência de gênero e
sexual em específico, ambos no final de 2017. No que cabe à minha posição como
criminólogo crítico, posso contribuir com esclarecimentos sobre as contradições
existentes nessa alternativa punitiva, mas já passou minha época em que era
intransigente com a esquerda punitiva. Ela tem sua razão de ser e como
abolicionista minha tarefa é de construir com ela alternativas antipunitivas mais
atraentes e apropriadas aos nossos objetivos comuns, de uma sociedade menos
injusta e violenta.
Sobre a prisão de criminosos
poderosos, dos grupos dominantes, como banqueiros, latifundiários entre outros
capitalistas, minha posição mudou bastante com a leitura das proposições de
Cirino dos Santos e Baratta, que defendem a criminalização desses sujeitos. Em
tempos de lava-jatismo, pode parecer que a proposta deles era furada. Que essa
política é facilmente instrumentalizada na mão das elites do bloco dominante,
que só serve para legitimar a seletividade penal como se houvesse, na verdade,
uma “democratização penal”, um “panpenalismo”. Ainda que esse seja o caso, se é
impossível a reconfiguração punitiva no capitalismo para penalizar os
dominantes e despenalizar os subalternos, isso é mais um motivo para a defesa
da alternativa antipunitiva radical que englobe a luta pela superação do
capitalismo. A questão, portanto, é menos se é factível a implementação dessa
política criminal alternativa na nossa correlação de forças atual e mais se tal
discurso tem eficácia para incidir sobre a correlação de forças presente para
transformá-la. O realismo político inspirado por Gramsci não é um que se aceita
passivamente as condições desfavoráveis em que os sujeitos políticos se
encontram, mas sim um que se atua para modificar os constrangimentos impostos.
Para tanto, pode ser necessário disputar com afinco os sentidos da “impunidade”
no Brasil, sobretudo a impunidade dos poderosos, e isso é algo tocado pelas
proposições supracitadas. A aversão de um abolicionismo “puro” a incorrer na
“esquerda punitiva” não pode se sobrepor ao realismo dinâmico que disputa os
sentidos da punição, com horizonte abolicionista, mas faz mediações táticas
práticas e/ou retóricas sobre o acionamento do sistema penal. Não cabe à teoria
uma prescrição detalhada d‘o que fazer’, mas penso que mais válido que um apego
intransigente à coerência a princípios é uma análise prática e justificada do
que se pretende estrategicamente e que táticas podem ser empregadas. Nesse
sentido, a proposição de Cirino e Baratta não me parecem superadas.
AC – Sabemos que a
incerteza do futuro, quanto a emprego e seguridade social, tem-se o aumento dos
índices de criminalidade. Em sua visão, quais medidas em curto prazo podemos
trabalhar, trazer ao debate, para evitar que cada vez mais estes índices
aumentam ou ao menos traçar estratégias (mesmo sabendo das complexidades
envolvidas)?
S: Honestidade intelectual é uma das
coisas mais importantes pra mim, o que me leva a evitar reproduzir argumentos
convenientes para minha posição social que não são plenamente embasados em
pesquisas confiáveis. Digo isso porque, nesses 4 anos que venho pesquisando
criminologia, segurança pública etc. Ainda não me deparei com uma receita
infalível do que funciona para garantir o que queremos: segurança pública de
qualidade sem discriminações e outras violências seletivas que só reproduzem as
desigualdades e dominações sociais que estruturam nossa sociedade. O que temos
são diversas correlações que examinamos a partir de pontos particulares que são
nossas teorias da vida social. O grande problema é que a criminalidade (esse
ente social que abrange diferentes práticas em diferentes contextos sócio-históricos,
desde práticas não violentas até práticas opressoras e até organizações e lutas
sociais) é um fenômeno extremamente complexo e não há suficiente regularidade
nas correlações para inferir causalidade do tipo: X necessária e
inevitavelmente leva a Y. Se tivéssemos esse conhecimento nossa vida seria muito
mais fácil. Na prática, o que temos de mais fundamentado são estudos que
identificam e explicam o que não funciona, como leis penais mais severas e a
própria instituição prisional. Sobre o que funciona, é necessário ter a
humildade de reconhecer que temos não respostas incontestáveis, mas sim
hipóteses mais ou menos fundamentadas. Uma delas é que a redução das
desigualdades sociais e a elevação do bem-estar geral da sociedade – ou seja, a
promoção de igualdade social nivelada “por cima” - reduz a criminalidade,
principalmente os tipos que se considere a “criminalidade comum” como assaltos
e homicídios. Perceba então que aponto duas causas gerais entrelaçadas para a
violência patrimonial e contra a vida: a desigualdade (não só econômica, mas
foquemos nela aqui), a chamada “privação relativa”, e a pobreza, ou “privação
absoluta”. Ambas são elevadíssimas no Brasil e ajudam a explicar nosso cenário
terrível de segurança pública (como em vizinhos latino-americanos como Colômbia
e México), enquanto ambas são baixíssimas em países como Japão, Alemanha e
Canadá. Qualquer política criminal alternativa
(antipunitiva) deve priorizar a prevenção pela efetivação de direitos sociais e
elevação do bem-estar social, isso significa priorizar as políticas sociais
sobre as políticas penais, por exemplo. Isso seria uma reconfiguração radical e
plenamente viável (se não secundarizamos a construção de hegemonia como
condição para a mudança social) na nossa política, que só foca em repressão e
punição, e nem compreende política social como algo que impacta a questão
criminal. Também acho que a pauta aglomera outras propostas mais famosas, como
a desmilitarização das polícias. No âmbito penal, acho que devemos investir em
concepções restaurativas e reparativas de justiça. Uma das contribuições mais
importantes do abolicionismo é essa: focar nas demandas das vítimas, dando
agência a elas, em vez de instrumentalizar a vitimização para produzir
sofrimentos estéreis sobre os agressores, que também merecem um olhar
humanizado quanto a sua situação social e possíveis necessidades. Essa proposta
enfrenta a noção de justiça como uma de “soma zero”, segundo a qual o ganho
social é inversamente proporcional ao prejuízo do condenado. Ao contrário, aqui
o foco é em processos individuais e comunitários de cura e restauração, visando
uma responsabilização integrativa do sentenciado. Uma política penal de apoio
às vítimas em vez de tortura aos criminosos, como Mathiesen sintetiza abaixo, é
o que acho digno de defender.
“Eu procuro — e isso é apenas uma lista resumida — o apoio às
vítimas de diversas formas: compensação econômica (do Estado) quando isso for
pertinente, um sistema de seguro simplificado, apoio simbólico em situações de
luto e pesar, abrigos para onde levar as pessoas quando necessitarem de
proteção, centros de apoio para mulheres espancadas, solução de conflitos
quando isso for possível, e assim por diante. As vítimas não recebem
absolutamente nada do sistema atual, nem da aceleração e ampliação do sistema
presente no entanto poderiam receber muito se houvesse a mudança de direção do
sistema na forma como sugeri. Uma ideia e um princípio fundamental seria
guinar o sistema em 180 graus: ao invés de aumentar a punição do transgressor
de acordo com a gravidade da transgressão, o que é básico no sistema atual, eu
proporia o aumento de apoio à vítima de acordo com a gravidade da transgressão.
Em outras palavras, não uma escala de punições para os transgressores, mas uma
escala de apoio às vítimas. Certamente, esta seria uma mudança radical, mas que
seria racional do ponto de vista das vítimas e, provavelmente, também, útil
para superar a resistência ao desmantelamento do sistema atual” (MATHIESEN,
“Sonho de Abolição”, 2003, p. 96).
AC – Para finalizar:
Samuel, você vê um horizonte favorável quanto ao debate sobre as políticas
criminais, ideologia, Direito, etc., às relações sociais vivenciadas pela
população dos países de capitalismo periférico, incluindo o Brasil, sobre a
segurança pública?
S: Sinceramente, sou daqueles que oscila
entre mais ou menos pessimismo. Mas muitos conhecidos meus estranham quando eu
falo isso, porque meu pessimismo não transparece em um cinismo ou imobilismo
discursivo. A questão é que eu acredito na possível transformação radical da
sociedade, só que o cenário para quem sonha em utopias sem desigualdades e
dominações sociais é bem negativo. Qualquer análise realista tem que lidar com
isso. Os sujeitos em posição dominante têm muito mais recursos para reproduzir
as condições da sua dominância, enquanto os dominados enfrentam muitas
dificuldades para criar as condições de transformação social estrutural.
Enfrentamos, sobretudo, o desafio de construção de hegemonia, que demanda um
esforço discursivo enorme, da crítica das ideologias dominantes e da construção
coletiva de uma nova hegemonia direcionada para a emancipação social:
socialista, antirracista, feminista etc. Também enfrentamos o desafio da
organização política e trabalho de base nesse período de trabalho precário,
desregulado, com uma classe trabalhadora pulverizada. A meu ver, o debate sobre
política criminal é uma instância desse debate mais amplo sobre nossa
sociedade, sobre nossa condição de periferia dependente, dos interesses
inconciliáveis entre a maioria da população e uma elite antipopular associada
ao imperialismo. Nessa instância como muitas outras, como política de educação
e de saúde, há muito espaço para crítica das ideologias dominante e disputa de
hegemonia. Mesmo que nossa chance de sucesso seja ínfima, é algo pelo qual vale
a pena dedicarmos nossa vida na luta.
Agradecemos ao cientista político Samuel Silva Borges pela gentil entrevista e disposição para esta plataforma de crítica e reflexão!
"Eu que agradeço pela oportunidade de
diálogo e exposição! Sigamos!"
Batalha dificil, mas necessária.
ResponderExcluirEspero que o senso comum do "bandido bom é bandido morto" não perdure.
Muito interessante esse enfoque no aumento de apoio a vítima. Até mesmo pra descontruit aquele outro tipo de pensamento do tipo "direitos humanos é pra defender bandido'