Carlos Zacarias é graduado em
História pela Universidade Católica do Salvador (1993), mestre em História pela
Universidade Federal da Bahia (1998) e doutor também em História pela
Universidade Federal de Pernambuco (2007). Entre janeiro e setembro de 2006 esteve
na Universidade do Porto, Portugal, realizando um estágio de doutorado como
bolsista da CAPES. Integra o Conselho Editorial das revistas Outubro, Crítica Marxista, História &
Luta de Classes, Tempos Históricos e
Germinal. Publicou em co-autoria O
Estado Novo: as múltiplas faces de uma experiência autoritária (Salvador:
EDUNEB, 2008), Contribuição à crítica da
historiografia revisionista (Rio de Janeiro: Consequência, 2017). Organizou
Capítulos de história dos comunistas no
Brasil (Salvador: Edufba, 2016) e, como autor, publicou Os impasses da estratégia: os comunistas, o
antifascismo e a revolução burguesa no Brasil. 1936-1948 (São Paulo:
Annablume, 2009), De tédio não
morreremos: escritos pela esquerda (Salvador: Quarteto, 2016) e Foi golpe! O presente como história
(Salvador, Quarteto, 20018. É professor Associado 1 do Departamento de História
e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia
(PPGH-UFBA), onde coordena o Grupo de Pesquisa História dos Partidos e
Movimentos de Esquerda na Bahia e atua como pesquisador no
Centro de Estudos e Pesquisas em Humanidades (CRH).
Acervo Crítico – Um exercício de
autorreflexão me parece ser a forma mais apropriada de iniciar essa entrevista.
Sua vida profissional tem girado sempre entre dois polos principais, a Teoria e
Metodologia da História e os estudos sobre o Brasil Contemporâneo e sua relação
com o mundo. Seria possível estabelecer um percurso das escolhas profissionais
e/ou pessoais que o levaram a trilhar este caminho?
Carlos Zacarias – Carlos Zacarias – Bom, essas escolhas têm relação com minha vida profissional desde a
UNEB, universidade em que ingressei em 1994, quando era um professor muito
jovem e ainda fazia mestrado na época, e fiz um concurso para a História do
Brasil. Ensinei por 16 anos História do Brasil na UNEB. Então, essa minha
atenção ao Brasil contemporâneo foi se configurando no curso dessa minha
formação que se deu, sobretudo, na UNEB. Formei-me como mestre e depois como
doutor, e nesse tempo lecionei a história do Brasil I, II, III e IV. Depois do
doutorado, concentrei minhas intervenções praticamente em Brasil III e IV, que
era o período que estudava (estudei o Partido
Comunista).
Quando vim para a UFBA, fiz
concurso para Teoria da História e minhas reflexões terminaram se voltando para
essa área de Teoria, que inclui Historiografia e Metodologia da História. Pela
área que abracei aqui na UFBA, fiz a ponte com a História do Brasil que tinha
ensinado na UNEB. Então, minha reflexão hoje tem muita relação com a
historiografia brasileira, a historiografia dos últimos anos, historiografia
debruçada sobre o campo da esquerda; a forma como que intelectuais ao longo das
décadas constituíram uma visão da esquerda, como que eles perceberam essa
esquerda que existia; e como que alguns intelectuais tiveram uma visão transformada
em virtude da forma como a memória ressignificou essa própria esquerda. Então,
esse tema, Brasil e Historiografia, foi se conjugando, e hoje estou saindo para
fazer um pós-doutorado na UFF, com supervisão de Marcelo Badaró, com estudos
focados. na historiografia do golpe de 1964 à luz da relação entre História e
Memória. Minha investigação, atual, portanto, ocorre articulando o Brasil
contemporâneo com a Teoria e a Metodologia da História, algo que tem muita
ligação com meu percurso profissional.
Nos últimos anos, continuo
investigando os partidos e movimentos de esquerda, mas à luz da conjuntura e a
forma como também a conjuntura vai se modificando e, por conseguinte, como a
memória vai se transformando em função dessa conjuntura. Isso coloca para mim
novos desafios de estudar como é que o campo acadêmico e os intelectuais na
historiografia, e também as pessoas de maneira geral, percebem esse passado
recente e o Brasil contemporâneo.
AC – Em vários de seus artigos você aborda a
questão da “memória histórica”. Atualmente, estamos presenciando um grau de
anti-intelectualismo histórico enorme, muito em função das redes sociais. Em
sua visão, as mídias alternativas podem ter alguma valia na contra-hegemonia
reacionária e revisionista?
CZ – Sem dúvida! Fazendo uma apreciação mais política do que estamos
vivendo, parece evidente que este movimento que, ao que parece, ocorria nos
“subterrâneos” e sobre o qual nós não percebemos, se consolidou de tal forma
que quando nós nos demos conta, já estávamos praticamente derrotados. Esse
movimento é de mentiras, de reinventar o passado, de defender que a Terra é
plana, de questionar o evolucionismo. Um movimento que põe em dúvida a ciência e
que acaba funcionando, porque é muito difícil para um intelectual falar
diretamente com as pessoas comuns, acho que é um exercício que nós temos que
fazer. Existe em alguns campos científicos uma literatura de divulgação
científica, mas essa literatura também tem suas limitações. Estamos falando de
um país que tem quantidade imensa de pessoas analfabetas e analfabetas
funcionais, gente semi-alfabetizada, sem acesso aos livros. Então, essa
literatura de divulgação científica tem dificuldade de alcançar esse público.
Mas tem outras áreas que não
há essa literatura de divulgação científica, então a inexistência dessa
literatura nessas áreas, abriu espaço para os discursos fáceis. Com a chegada
das mídias alternativas (YouTube, Facebook, WhatsApp), formas muitos fáceis de
acessar as pessoas que estavam desassistidas e que não tinham acesso à
Universidade, foram acionadas. Essas pessoas não conseguiam encontrar as
discussões ou compreender como elas se davam em outros espaços, então, muito
dificilmente, um intelectual formado pela Universidade se propunha a fazer esse
papel junto a pessoas comuns e foi nesse vácuo que um bando de charlatão passou
a ocupar. Você vê rapazes e moças recém-saídos da puberdade fazendo discussões
muito complexas e de maneira muito simples: a forma que simplificam é a forma
rasa como eles veem a coisa. A questão é que eles acessam o grande público. Os
canais contam com inscrições de milhares de pessoas, de modo que quando nos
demos conta, isso teve um efeito nefasto, devastador. Falo daquele tipo de canal
que é criado por aquele adolescente que resolveu discutir política; por aquela
‘tia’ que hoje é deputada federal e que, até outro dia, só conseguia “arrotar”
ódio na internet. Essa “tia” e esse adolescente de repente se meteram a
discutir política, e como tinham habilidade na comunicação, suas páginas
passaram a serem vistas por milhões de pessoas, consagrando essas pessoas como aquelas
que detém a verdade.
Contudo, a ciência não
funciona dessa forma. Quando nós nos demos conta tudo isso já tinha sido feito.
Temos desde essas pessoas que viraram celebridades instantâneas, até Olavo de
Carvalho, que é alguém que vem falando há mais de 10 anos, falando absurdos e
bobagens, mas nós apenas ríamos e desprezávamos. Pessoalmente, tive
conhecimento de Olavo de Carvalho há cerca de 5 ou 6, mais ou menos. Antes,
tinha ouvido falar, mas não me interessava. De uma hora para outra me dei conta
que seus livros se tornaram best-sellers, mas ainda assim não tinha me
interessado em ler (eu e boa parte das pessoas que estão na Academia). Quando
nos demos conta o mal já estava feito. Quem estava lendo, seguindo e vendo os
vídeos de Olavo de Carvalho, já estava completamente contaminado por suas
ideias absurdas e reverter isso, nessa altura, é uma tarefa muito difícil. É difícil
porque é um terreno em que atuamos em um nível de desigualdade profunda. Os
canais de direita e extrema-direita são absurdamente mais eficazes e mais
populares que quaisquer canais feitos pela esquerda. É um problema da esquerda?
Talvez, não saberia dizer se isso é verdade. Também temos que ver a forma de
como a direita se apropria de discursos e os divulga de maneira fácil e sem nenhum
compromisso com a verdade. Enquanto da parte da esquerda, e mesmo dos
intelectuais acadêmicos sem qualquer ligação com a esquerda, além do
compromisso com a verdade, a forma como essas pessoas trabalham, dificilmente
criaria condições de concorrer com o que já existe e que é dominado pela
direita.
Não sei como se isso vai se
modificar. Sei, conheço e vejo algumas iniciativas de canais com pessoas
comprometidas e com capacidade de comunicação que muitos de nós não temos. Vejo
gente que fala fácil de temas complexos com a devida profundidade que a internet
pode comportar. Mas vejo essas pessoas fazendo o que esses canais de
extrema-direita, baseadas em fake news, fazem. Não sei os efeitos que essa
forma de fazer política e disputar espaços na internet da parte da esquerda vai
ter a médio e a longo prazo, mas efeito há de ter. De alguma maneira vamos ter
que disputar esse terreno.
AC – Com a chegada de Jair Bolsonaro à presidência
aconteceram diversos ataques ao ensino de História no Brasil por parte do seu
Ministro da Educação, Ricardo Velez Rodriguez, e de seus asseclas na tentativa
de normalizar um passado funesto do Brasil: A Ditadura Empresarial-Militar.
Assim, desenvolveu-se um debate de narrativa intenso sobre a matéria em seu uso
público. Em vista disto, como você enxerga atualmente a utilização da História
fora do âmbito acadêmico?
CZ – Olha, a História hoje está muito “pop”. A começar pelas manifestações que
sucederam às “Jornadas de Junho de 2013”, que é para nós uma grande incógnita,
um grande ponto de interrogação, algo que provoca muita divergência e que vamos
discutindo e debatendo muito nesses últimos anos. Há muita divergência do que
foram as Jornadas de Junho, não há dúvida, mas sobre elas, há mais consenso
sobre o que veio depois. Para as esquerdas e para a maioria dos intelectuais
que atuam na Academia o maior consenso está na compreensão do que veio depois
de 2013, sobre o fato de que há o entendimento de que as direitas desceram para
as ruas e passaram a protagonizar o processo. É justamente nesse contexto que a
História se populariza, ocupa os debates, porque nós acusávamos as pessoas que
foram às ruas para pedir “intervenção militar” e que homenageavam torturadores;
lembrando com nostalgia da ditadura etc., nós dizíamos que aquelas pessoas só
poderiam estar ali porque não tinham conhecimento histórico. Isso pode ter sido,
de certa forma, uma forçação de barra, pois as direitas podem ter, também,
conhecimento histórico. Um dos principais dirigentes da Ku Klux Klan, por
exemplo, é o historiador David Duke, alguém que recentemente elogiou Bolsonaro.
Ou seja, não é que as direitas não conhecem a história, é que elas também fazem
suas próprias narrativas, gostemos ou não.
Esse debate público, de certa
forma, tornou a história popular. Portanto é um debate que vai prosseguir ainda
mais agora, com o ministro da Educação, Ricardo Velez Rodriguez, que já disse,
em várias entrevistas, que 1964 tem que ser lembrado, comemorado, celebrado;
que a forma como 1964 foi retratada nos livros de História, especialmente, nos livros
didáticos, não é a forma adequada, como se alguém pudesse saber qual é a forma
adequada e ele acha que sabe. Antes disso, há membros da equipe técnica de
Bolsonaro para a educação, como o general Aléssio Ribeiro Souto, por exemplo,
que desde a época da campanha que dizia que aquilo que estivesse errado nos
livros de História tinha que ser modificado. Obviamente que para essas pessoas
da equipe técnica, uma parte dela ligada ao generalato, aos militares, a alta
oficialidade do Exército, para eles está errado é a caracterização de 1964 como
um golpe e o período de 1964-1985 como Ditadura. Imagine que nós já tínhamos
suficientes problemas dentro da própria academia, pois ao lidar com esse tema, muitos
debates foram feitos, já que existem historiadores que não caracterizam da
forma como hegemonicamente se caracteriza e que consta na memória histórica,
muito embora essa memória histórica seja muito débil, mas existe uma memória
histórica de que houve uma ditadura no Brasil, isso existe em função do razoável
consenso que se estabeleceu.
O fato é que há historiadores
dentro da academia que acham que a ditadura não foi tão ditadura, algo que o
jornal Folha de São Paulo terminou por reverberar num pensamento que surge
também da parte de alguns intelectuais, professores universitários. Por conta
disso, em 2009, a Folha chamou a ditadura de ditabranda. De outro lado, há historiadores que acham que a
ditadura só existiu enquanto durou o AI-5, já outros acham que ela foi iniciada
em 1964 e que acabou em Dezembro de 1978, quando o AI-5 foi revogado, enfim, o
que não falta é polêmica. Todavia a maioria dos historiadores acha que a
Ditadura durou 21 anos e prevalece uma apreciação ainda muito crítica sobre a
ditadura, especialmente em função dos primeiros 20 anos em que esses estudos foram
realizados, algo que culminou na obra que me parece ser a obra decisiva e
seminal sobre a Ditadura, mais especificamente, sobre o golpe de 1964, que é a
obra de René Armand Dreifuss, 1964, a
conquista do Estado. Nessa coisa de transformação da memória da qual
falava, noss 30 anos seguintes à obra de Dreifuss, que foi publicada em 1981, é
nesses 30 anos, as últimas três décadas, que a história, de alguma maneira,
reconcilia com a Ditadura. É verdade que nenhum historiador deixou de dizer que
houve ditadura, que houve um golpe, mas muitos relativizaram uma série de
questões da ditadura. Relativizaram não apenas a forma como a ditadura se estabeleceu,
se consolidou e avançou sobre os setores democráticos da sociedade,
especialmente a oposição, mas muitos historiadores relativizaram sobre, muito
especialmente, sobre a forma como a esquerda atuou nesse período. Então, nos
últimos 30 anos, o que nós vimos na maior parte do tempo, foram intelectuais,
professores universitários, acusando a esquerda de não ser democrática, de
apresentar posições golpistas, não falar em democracia, o que me parece uma
distorção, o que alguns de nós chamamos, inclusive, de revisionismo, uma forma
distorcida de escrever a história. Ou seja, nós já tínhamos um problema imenso que
era os de enfrentar esse debate dentro da academia. Nós que tínhamos que lidar
com esse tipo de abordagem, que cada vez mais conquistava espaço e novas
gerações, mas que, apesar de tudo, era um debate aberto, ainda em curso e que
vem sendo feito, embora de maneira incipiente. Um debate que certamente vai ter
outros momentos.
Mas não fosse esse debate
suficiente, agora a gente tem que debater para fora da universidade, tem que
debater não com colegas nossos, com os professores e com gente que vem com as
suas pesquisas e interpretações, com a legitimidade da empiria e das hipóteses
que levantaram em razão disso. Agora não, pois o debate saiu da Academia e
agora é feito com pessoas que não tem nenhuma empiria, nenhuma evidencia,
nenhuma nova documentação. O debate agora precisa ser feito com pessoas que
estão simplesmente dizendo que não foi assim, porque não é possível que tenha
sido, pois foi a esquerda que disse que foi assim, e a esquerda não tem
legitimidade. Isso já tinha acontecido na Europa, quando os debates sobre o
fascismo e o nazismo, alcançaram o tom daqueles que dizia que o nazifascismo
não podia ser discutido por quem era antifascista e antinazista. Então é mais
ou menos assim: quem está lá dentro da discussão, parte do pressuposto de que
toda versão construída sobre a ditadura foi feita por pessoas que eram
adversárias da ditadura, então não é possível que seja correto.
No entanto, o problema é o
seguinte: os historiadores vão ser sempre adversários de momentos da história
que nos parecem tristes, momentos em que a humanidade pareceu sucumbir frete a
barbárie. Os historiadores não vão modificar o passado, mas parece ser
impossível que não tenham posição sobre cada assunto, especialmente os assuntos
relacionados a temas controversos, que inspiram partidarismos. Nesse sentido,
parece ser inconcebível imaginar alguém que possa discutir escravidão sem ser
antiescravista. Da mesma forma, eu também não concebo a alguém que possa
discutir fascismo, sem ser antifascista. E se alguém aponta o antifascismo de
algum autor como um problema, tem que dizer o porquê de estar preocupado com o
antifascismo, o porquê de o antifascismo lhe parecer uma ameaça. Eu penso que
alguém que está preocupado com o antifascismo tem o pezinho dentro do fascismo.
Então é essa discussão que vai ser feita em uma situação muito mais adversa
como a de agora, pois são pessoas que tem a caneta, que tem a justiça, são
pessoas que estão no poder e que vão utilizar de todos os mecanismos
disponíveis para impor um tipo de discussão muito distinto do que a gente
fazia, e a gente vai ter que resistir da forma como a gente resistiu em tantos
momentos. Mas vamos precisar ser pacientes, vamos precisar aprender a aguardar,
porque a verdade há de novamente voltar a se estabelecer no Brasil e em outras
partes do mundo também, disso eu não tenho dúvida.
AC – O imperialismo faz com que países de
periferia tenham um aspecto contraditório: se, por um lado, países centrais
advogam pelo liberalismo de mercado, mas tomando-se medidas protecionistas; na
periferia do capitalismo é o inverso, como é o caso do Brasil. Outro aspecto é
a desindustrialização forçada pelo imperialismo no Brasil desde Collor. Sabemos
do poder da ideologia que está por detrás desta infraestrutura. No caso brasileiro
isso vem desde a Guerra Fria com Vargas tomando lado pelos estadunidenses ou há
mais algum elemento central nisso?
CZ – Bom, imperialismo é o momento da história da
humanidade, é o momento do desenvolvimento da história do capitalismo, não quer
dizer que seja o último momento, como tantas vezes o livro de Lênin foi
traduzido. Na verdade, a obra de Lênin, Imperialismo
fase superior do capitalismo, foi traduzido em muitas circunstâncias como a
última fase do capitalismo, mas não quer dizer que seja a última fase. E o
imperialismo desde Lênin, ou desde o século XIX, imaginando também que Lênin,
Bukharin, Hilferding, Rosa Luxemburgo, Trotsky, esses que são clássicos do
marxismo e também de fora do marxismo que estudaram o imperialismo, se
debruçaram sobre esse fenômeno que era mais característico no final do século
XIX e início do século XX e que passou a ser uma característica normal do
sistema internacional de estados, a forma que ele existe. O imperialismo se
transfigura, se modifica, pode industrializar a periferia do capitalismo,
especialmente a partir daquele tipo de industrialização que os países do
capitalismo central não comportam mais. Esse processo aconteceu quando na
década de 1970 e 1980, houve um período de desindustrialização dos países que
fazem parte do capitalismo central. Nessa época, as economias transitaram para
formas outras de desenvolvimento, formas outras de incorporação do trabalho.
Enquanto isso acontecia na Europa e em algumas cidades norte-americanas, um
período de industrialização da periferia se configurava, com indústrias muito
mais onerosas ao meio ambiente, muito mais onerosas à vida das populações,
industrias que exigiam um grau de envolvimento de força de trabalho intenso e
de exploração cada mais maior. Agora, o que nós estamos vendo é novamente o
contrário, esse processo de desindustrialização está se configurando em países
que são periféricos, como movimentos de desindustrialização e industrialização
de um país para outro, com gradações de desenvolvimento distintos.
Veja, por exemplo, o Brasil
como país periférico. No entanto, em relação ao restante da América Latina, o
Brasil é um país com maior complexidade industrial, então esse processo, que
impacta para um país como o Brasil, mas não impacta de maneira igual um país
como a Bolívia, que tem uma indústria muito mais precária, ou a Venezuela, que
tem uma indústria quase restrita ao petróleo, pois o Brasil tem uma indústria
muito mais complexa. O que estou dizendo é que esses processos de
industrialização e desindustrialização impactam efetivamente todos os países,
mas de maneira distinta, de forma a não prejudicar a expansão da economia
mundial nem alterar a correlação de forças nternacional. Logo, o que a gente
assistir é o imperialismo se reconfigurando, comportando elementos estranhos a
esse imperialismo. Hoje, por exemplo, temos a China despontando como uma grande
força econômica mundial, mas que tipo de relação a China tem com esses países,
cujas economias são absurdamente inferiores a sua e com os quais ela pretende
comercializar? Que tipo de efeito deletério o comércio praticado pela China que
explora seus trabalhadores em níveis desconhecidos ou em patamares semelhantes
ao século XIX, que níveis de efeitos deletérios a chegada dos produtos chineses
nos mercados podem ter em economias como a economia brasileira?
Então a gente vai ver o
imperialismo se reconfigurando e os países tentando sobreviver a essa nova lógica
sem romperem com as práticas existentes.
AC – Depois da queda de todos os muros, a seu ver
qual a validade teórico-metodológica do marxismo para o estudo dos fenômenos
sociais e dos processos históricos?
CZ – Eu acho que o marxismo continua sendo a
principal ferramenta de explicação do mundo, mesmo após a queda do Muro de
Berlim, que de alguma maneira demarcou o século XX, usando a linguagem e a
concepção de Eric Hobsbawm que, em sua Era
dos extremos, definiu o breve século XX, como existindo entre 1914 e 1989,
ou 1991 se consideramos a desintegração da URSS. Quando o Muro de Berlim caiu,
Hobsbawm publicou esse livro, datado de 1995, quatro anos depois da
desintegração da URSS e seis anos depois da queda do Muro. Hobsbawm tinha uma
apreciação que era bastante arriscada para ser dita naquele contexto de euforia
liberal e neoliberal. O livro que mais vendia, na época, era o livro de Francis
Fukuyama, O fim da história e o último
homem, obra em que seu autor defendia a ideia de que a história tinha
chegado ao fim, uma ideia hegeliana, diga-se de passagem. Já que o marxismo
nunca percebeu a história com um fim, com finalidade, com sentido e com um
termo, a não ser o marxismo estalinista, vulgar, uma concepção sobre o fim da
história só podia recorrer a bases não marxistas.
Mas o marxismo como
ferramenta de interpretação nunca concebeu esse fim, então quando Hobsbawm
escreve esse livro e diz que qualquer um que tenha visto, cito de cabeça:
“qualquer um que tenha visto um século interior em que as transformações foram
feitas na base de golpes, revoluções, contrarrevoluções, guerras, apostaria um
centavo do seu dinheiro que o mundo que entra no século XXI vai ser um mundo de
de sociedades e Estados estáveis”. Então Hobsbawm estava dizendo ali em 1995,
que qualquer um que entrasse no século XXI apostando que o mundo seria estável,
estava fadado a ter insucesso, pois o mais provável era que o século XXI
repetisse os dois séculos anteriores.
Veja: Eric Hobsbawm, está
escrevendo de uma forma trágica sobre uma experiência com a qual ele
compartilhou, ele viveu, abraçou, acreditou como um marxista que era. O livro
de Hobsbawm levou dez anos para ser traduzido na França, pois em 1994 tinha
sido publicado naquele país um livro de François Furet, um historiador que
tinha sido marxista, mas que tinha abandonado o marxismo e quando rompeu saiu
de uma maneira muito virulenta, batendo a porta – como a gente diz – e acusando
o marxismo de tantas tragédias que a humanidade tinha vivido, inclusive a sua
tragédia pessoal. François Furet tinha publicado o livro um ano antes do de
Eric Hobsbawm. Seu livro se chama O passado de uma ilusão, que é uma obra
que tem características autobiográficas evidentes. O livro de Hobsbawm levou dez
anos para ser traduzido na França, poois muita gente diz que não teria sentido
publicar esse livro, já que existia por lá o livro de François Furet. Pierre
Nora, um historiador Francês bastante importante, chegou a se referir à obra de
Eric Hobsbawm como anacrônica, um livro que funciona para uma ideologia que
existia no século XX e não funcionava mais para o século XXI. Esse fato é
narrado por Enzo Traverso, historiador italiano, que é um dos estudiosos mais
importantes do mundo pós-queda do Muro de Berlim. Estudioso da relação entre a
História e a memória, Traverso discute a forma como o mundo se configura e a
forma como as ideias, a história das ideias, é transmutada como ela se
transforma nesse período.
Enzo Traverso tem alguns dos
livros mais importantes sobre o assunto, mas apenas agora começa a ser publicado
no Brasil. Seu primeiro livro traduzido por aqui, editado no fim do ano
passado, chama-se “A melancolia de
esquerda’’. A análise de Enzo Traverso é a análise de um historiador
marxista e, como a análise de Hobsbawm, como analise de todos os bons marxistas,
segue sendo as análises que hoje permanecem iluminando nossa reflexão sobre o
que é esse período pós-queda de Berlim. E o resultado disso é que quando eu
chego às minhas turmas de História e pergunto quem conhece os livros de
François Furet, ninguém conhece. Em seguida, quando eu pergunto quem conhece os
livros de Eric Hobsbawm, todo mundo conhece. São dois livros publicados no
Brasil na década de 1990, e o fato de o livro de François Furet já estar
esquecido, já não ser mais lembrado por ninguém, é uma demonstração da
sobrevivência das teses do marxista Hobsbawm, pois seu permanece ensinando com
grande capacidade de explicar o século XX. Não que seja uma explicação definitiva,
porque não a nenhuma explicação definitiva sobre o que existe, mas um livro de
um marxista que escrevendo no meio de um revés profundo que foi a queda do Muro
de Berlim, especialmente para ele, conseguiu enxergar e dizer coisas que
ninguém diria em 1995, uma vez que, os liberais estavam celebrando a queda do
Muro de Berlim, dizendo que o mundo estava se organizando em meio da paz, que
não haveria mais guerra nem imperialismo. E foi justamente Hobsbawm que intuiu
dos riscos que a humanidade corria, riscos que repetiam, em larga medida, o que
tinha se passado nos últimos dois séculos. Foi justamente por isso que Hobsbawm
seguiu sendo um historiador consagrado, pois o mundo continua sendo um mundo de
guerra, de imperialismo, de intervenções, de golpes e de contragolpes, mas de
revoluções também.
AC – Professor, sua linha de pesquisa se concentra
acerca da história dos movimentos populares e de lutas transformadoras.
Atualmente, quais têm sido as dificuldades desses movimentos, seus impasses,
estratégias e “táticas”?
CZ – A esquerda, na verdade, os partidos de esquerda, os movimentos de
esquerda têm essa vinculação com os movimentos populares. O tema vinha de um
longo ostracismo, de um grande silencio para um momento de exposição ao sol, já
que muita gente passou a estar interessada em estudar o assunto no início do
século XXI, afinal de contas a América Latina e outros países vinham assistindo
experiências de governos identificados com a esquerda, como o de Hugo Chavez na
Venezuela, o de Lula no Brasil, de Rafael Correa no Equador, de Evo Morales na
Bolívia, de Fernando Lugo no Paraguai, entre outros. Portanto, estudar a
esquerda nesse contexto era também ter conexões com a realidade. Toda a minha
pesquisa recente tenta enxergar como é que as transformações do mundo
reconfiguram a forma como as pessoas, os intelectuais, inclusive os
historiadores, percebem o mundo ao seu redor e também o passado. Então, o tema
das esquerdas foi um tema também impactado pelas transformações do mundo, desde
a queda do Muro de Berlim até o início do século XXI, quando governos populares
começaram a se estabelecer na América Latina.
Entretanto, hoje o movimento novamente
contrário. Considerando que esquerdas perderam espaços, perderam governos, considerando
que muitos governos de esquerda estão sendo derrotados, como acontece hoje com
a crise ai na Venezuela, como aconteceu na Argentina, e como ocorreu aqui no
Brasil, quando através de um golpe contra a Dilma 2016, um governo golpista,
com pauta de antipopular, como o de Michel Temer, se estabeleceu, o que estamos
vendo é interesse pela esquerda como tema de estudo, novamente sofre um
refluxo. Para completar, após dois anos de governo desastroso de Temer, temos a
ascensão de Jair Bolsonaro, que é um governo de extrema-direita, o que coloca
para os estudiosos a necessidade de compreender esse fenômeno.
O meu interesse em estudar o
fascismo surgiu na época que estudei a esquerda, mas era apenas em função do
antifascismo, porque a esquerda, os partidos comunistas, foram protagonistas
das correntes antifascistas que existiram no mundo todo, nos anos 1930 e 1940. A
propósito, o próprio Eric Hobsbawm é filho dessa experiência, algo que ele
registra no livro autobiográfico, Tempos
Interessantes.
Portanto, a minha disposição
de estudar o fascismo era para compreender como o antifascismo existia. Já hoje
é o contrário. Hoje a necessidade de estudar o fascismo advém do fato de que
esta ideologia está viva e presente no governo de extrema direta no Brasil. Justamente
por isso, vai ter, na UFBA, uma disciplina sobre o assunto funcionando nos
mesmos moldes da disciplina do golpe, coordenada pelos colegas Graça Druck e
Antonio Câmara. O fato é que há muita demanda de se estudar o fascismo, uma vez
que nós fomos pegos desprevenidos em relação às novas direitas. Precisamos
saber como funciona essa corrente, saber se ela está vinculada ao fascismo
histórico, ao movimento, à ideologia, as formas como os fascistas atuais se
assemelham ao fascismo estabelecido na Itália ou na Alemanha e seus congêneres,
chamados de fascismos genéricos, ou o protofascismo da Romênia, da Grécia, da
Espanha, de Portugal e mesmo do Estado Novo de Vargas, do Brasil, ou do
peronismo na Argentina, enfim.
A necessidade de se estudar o
Fascismo hoje é a necessidade dada pela conjuntura e essa conjuntura coloca
para a gente essa urgência de ao lado de estudar, ser capaz de organizar e
resistir ao fascismo, porque nós não sobreviveremos se o fascismo vencer em
toda sua extensão. Nós não temos um governo fascista, mas temos um governante
com um discurso abertamente fascista e observamos setores do seu governo que
são também fascistas, que tem disposições fascistas e se eles obtiverem
sucesso, será efetivamente o nosso fracasso como seres humanos, como pessoas,
como intelectuais, como professores, como qualquer coisa que implique em
existir contrário ao que está posto.
AC – Já que estamos falando de movimentos sociais,
gostaria de saber por parte do senhor, qual é o futuro do trabalhador? E
alongando mais um pouco, qual é o futuro do capital no governo do atual
Presidente da República Jair Bolsonaro?
CZ – O futuro do trabalhador, pelo o que foi anunciado por esses dias com a
proposta da Reforma da Previdência, será o pior possível. Caso a Reforma da
Previdência venha a vingar, muita coisa estará perdida para os trabalhadores.
Entretanto lembremos também que Michel Temer apresentou uma Reforma da
Previdência, não tão draconiana como essa, mas já bastante ruim, lembremos que
outros governos também já fizeram reforma da previdência, ou seja, Fernando
Henrique Cardoso, Lula e Dilma, que foram perniciosas para os trabalhadores,
mas nada parecido pelo o que foi colocado por Temer e agora por Jair Bolsonaro,
então lembremos que também podemos derrota-la ou reduzir os seus efeitos
perversos.
O futuro do trabalhador, da
classe trabalhadora, depende, em larga medida, de a gente ser capaz de barrar essa
reforma. Eu falo do futuro físico, no sentido de existência, pois poucos vão
ser aqueles que no regime de previdência proposto vão poder se aposentar, mas falando
assim seria só meu lado pessimista. Como Frei Betto disse outro dia, “devemos guardar o nosso pessimismo para
dias melhores’’: Como sempre fui otimista, vou fazer como um colega que
outro dia disse prefirir olhar o copo cheio. Portanto eu creio que o futuro
imediato será de organização, de luta, de resistência e que em breve seremos
novamente capazes de retomar o curso da democracia e da justiça social.
Por que eu acho isso? Porque
logo no dia em que Bolsonaro foi ao Congresso, houve uma manifestação de 10 mil
pessoas em São Paulo, houve manifestação em Salvador, houve manifestações em
outros locais do Brasil contra a reforma da previdência. Também as centrais
saíram imediatamente com um discurso de que irão preparar uma greve geral, e lembremos
que em 28 de Abril de 2017, houve uma grande Greve Geral no Brasil, algo que não
acontecia há quase 30 anos. Fizemos uma Greve
Geral de grandes proporções e a ela foi importantíssima para barrar a Reforma da Previdência de Temer, que nem
chegou a ser posta em votação no Congresso.
Então, penso que o futuro
imediato será de organização, de resistência, de juntar gente, de pegar aquela
parte que perdemos, aquelas franjas de pessoas que estão desorganizadas ou
semi-organizadas e que descolaram das bases dos movimentos sociais. E aqui eu
não estou falando dos partidos de esquerda, estou falando dos sindicatos e dos
movimentos sociais. Lembro que o sindicato não é necessariamente de esquerda,
os sindicatos representam os interesses dos trabalhadores e toda desconfiança
que foi projetada em relação ao partido que estava no governo também contaminou
a relação das pessoas com os sindicatos. Nessa altura, eu espero, imagino e
creio, que isso vai acontecer, que as pessoas paulatinamente vão voltar aos
sindicatos, que essas bases que se encontravam dispersas, vão engrossar as
fileiras daqueles movimentos que vão resistir as propostas da reforma da
previdência e outras políticas que são nefastas no país, como a Lei Anticrime
de Sergio Moro, que é uma lei absurdamente antipopular, absurdamente
facilitadora do genocídio do povo negro que se efetiva no Brasil há tantos
anos, uma lei que é criminalizadora das populações mais pobres. Nós sabemos por
dados, por pesquisas, por trabalhos sérios que a guerras às drogas fracassaram
e as policias para enfrentar as drogas que são trazidas até aqui não funcionam,
porque leva a matança, aos efeitos colaterais que são 63 mil pessoas mortas no
Brasil nos últimos 12 meses.
Enfim, eu acho que se não
chegamos ao fundo do poço estamos perto. E se estamos perto de chegar ao fundo
do poço, estamos perto, também, de começar a cavar os buracos nas paredes para
poder sair desse poço que, apesar de tudo, parece não ter fundo.
Como historiador eu vislumbro
que não há momento que não possa ser revertido, nem momento bom que fique
eternamente, nem momento ruim que não acabe. Foi assim na Ditadura e está sendo
assim agora. É importante dizer que nós, os trabalhadores, os professores, o
campo popular, os movimentos sociais, a esquerda, sofremos uma derrota atrás da
outra neste último período, mas ainda não sofremos uma derrota histórica.
Porque se essa entrevista está sendo realizada, se a disciplina do fascismo
está funcionando, se a disciplina do golpe foi ofertada, se os sindicatos
preparam uma greve geral e se nós continuamos usando a nossa voz, ainda que em
condições muito adversas e muito difíceis, se estamos sendo capazes de
resistir, é porque permanecemos vivos e estamos lutando.
Enquanto
nós continuarmos vivos e atuantes, nós seremos capazes de preparar o caminho
para o retorno da razão, do progresso, da concórdia, das expectativas todas que
foram criadas em momento que me tornei adulto, que foi exatamente o momento da
saída da Ditadura Militar. E olha que eu não imaginei que fosse voltar atrás,
mas se eu tivesse o cuidado de olhar para esse período da minha vida como
historiador, eu poderia compreender que as coisas poderiam voltar atrás, e foi
justamente isso que aconteceu. Mas eu acredito que somos capazes de voltarmos a
dar um passo adiante, e depois dar outro, e mais outros, até sermos capazes
superar essas mazelas todas que nós estamos vivendo esse momento. Eu acredito
nisso e também luto para que seja assim.
Agradecemos
ao Historiador e professor Carlos Zacarias pela gentil entrevista e disposição
para esta plataforma de crítica e reflexão!