Por Alex Agra - Graduando em Ciência Política pela UFBA
Introdução
Nosso objetivo com esse artigo é produzir uma dimensão qualitativa do
debate sobre Segurança Pública colocando em discussão questões essenciais para
a modernização desse sistema. Acreditamos que embora tenhamos um conjunto de
políticas públicas interessantes e capazes de produzir bons resultados a curto
e médio prazo, urge a necessidade de uma transformação geral no sistema de
Segurança Pública. Nosso artigo está dividido em quatro partes além dessa
introdução: primeiro investigaremos o caráter do poder político, sua
determinação de classe, como se conecta com o Estado e com a violência. Uma vez
cumprido esse objetivo, buscamos compreender qual é a relação da polícia com
todas essas categorias. Em segundo lugar, partimos para uma investigação do
inquérito policial e uma exposição sobre como esse inquérito está ou não
relacionado com a modernização da Segurança Pública, bem como denunciamos seu
caráter inquisitorial e revelamos o seu papel no processo histórico. Revelamos
também sua conexão com a dimensão funcional da polícia e com a dimensão
organizacional. Como derivado da análise da dimensão organizacional da polícia
e do inquérito policial, chegamos a nossa terceira parte do artigo: um exame da
carreira única na polícia no Brasil. O que é carreira única? O que é ingresso
único? Como isso está conectado com as posições formais de mando e a qualidade
das polícias brasileiras? Tudo isso será objeto de nossa investigação. Por
último, o nosso foco recai sobre a seguinte reflexão: é utópico falar em outra
Segurança Pública no país? Acreditamos que não e buscamos alguns elementos para
justificar nossa posição.
Poder político, Estado e violência – o
que tem a polícia a ver com isso?
O poder político pode ser definido como o poder organizado que uma classe
utiliza para oprimir a outra. Essa opressão se configura como uma forma de
dominação, que é mediada pelo Estado. Mas “por que classe?” Nosso crítico
perguntará. Quando falamos do ser humano, falamos de um ser biológico que
transforma a natureza para a sua sobrevivência. Chamamos essa transformação –
ou melhor – essa mediação entre o homem e
a natureza para a produção e reprodução da vida humana, de trabalho. Esse
trabalho é diferente do trabalho que realizam os animais, porque enquanto para
os animais o trabalho é limitado ao imediato pelo seu caráter biologicamente
determinado, para o ser humano o trabalho é constituído por dois elementos: a
ideação prévia e a teleologia. O trabalho humano se diferencia do trabalho
animal porque é um trabalho universal, é um trabalho com um planejamento
prévio, com um objetivo final consciente. O trabalho humano se diferencia do
trabalho dos animais porque o trabalho humano tem um caráter social. As autoras do livro “Para
compreender a ciência” sintetizam bem essa visão quando dizem que:
“A
criação de instrumentos, a formulação de ideias e formas específicas de
elaborá-los – características identificadas como eminentemente humanas – são
fruto da interação homem – natureza”1
Até aqui, o nosso crítico pergunta: mas o que isso tem a ver com as
classes? Ora, a forma que os seres humanos se organizam em uma divisão social
do trabalho é o que produz as classes sociais. Os seres humanos ao realizarem
trabalho, produzem uma divisão organizacional de uma série de funções aos indivíduos
que participam da comunidade. Essa interação dos homens entre si, essa divisão
social do trabalho, é o que dá origem à propriedade privada. Mais uma vez,
recorremos ao didatismo das autoras do livro “Para compreender a ciência”,
dessa vez retirando um trecho do seu livro em que dizem que:
“Na
base de toas as relações humanas, determinando e condicionando a vida, está o
trabalho – uma atividade humana intencional que envolve formas de organização,
objetivando a produção dos bens necessários à vida humana. Essa organização
implica uma dada maneira de dividir o trabalho necessário à sociedade e é
determinada pelo nível técnico e pelos meios existentes para o trabalho, ao
mesmo tempo em que os condiciona, a forma de organizar o trabalho determina
também a relação entre os homens, inclusive quanto à propriedade dos
instrumentos materiais utilizados e à apropriação do produto do trabalho.
As relações de trabalho – a forma de
dividi-lo, organizá-lo – , ao lado do nível técnico dos instrumentos de
trabalho, dos meios disponíveis para a produção de bens materiais, compõem a
base econômica de uma dada sociedade.
É essa base econômica que determina as formas políticas, jurídicas e o conjunto
das ideias que existem em cada sociedade.”2
O que afirmam as autoras nesse último trecho é tão somente uma verdade
histórica muito bem documentada, não só pelos marxistas, mas até mesmo nas
obras (e porque não, na história das obras) de Tocqueville, Hobbes e Rosseau: o
Estado moderno é um produto da sociedade civil. O Estado nasce dos conflitos de
classe existentes dentro da sociedade civil e têm uma relação de dependência em
relação a ela. Afirmamos aqui, recuperando as palavras do professor Ivo Tonet,
que o Estado tem “uma dependência
ontológica entre fundante e fundado”. O Estado é o ordenamento da
sociedade, e com as formas de complexificação da vida social, por exemplo, a
criação das cidades – surge a necessidade da polícia, da administração, dos
impostos, e com essas demandas, surge o Estado. Max Weber já identificava: o
que diferencia o Estado das outras instituições e, portanto, o que define o
Estado, é o monopólio legítimo da
violência organizada. Mesmo quando o Estado passa - para utilizar a
terminologia gramsciniana - de Estado
Restrito a Estado Ampliado, isto
é, passa a ocupar funções que antes eram exclusivas do conjunto de instituições privadas da sociedade (o que, na linguagem
de Gramsci, era a sociedade civil), o que define o Estado é esse monopólio
legítimo da violência organizada.
Deste modo, não é possível para nós falar de poder político sem falar de
classes sociais. E não é possível falar de Estado sem falar do caráter de
classe que ele tem. Com isso, não queremos repetir o argumento mecânico e preguiçoso
que aponta que todas as decisões produzidas no Estado e todas as suas
instituições são controladas pelos interesses das classes proprietárias. É
preciso diferenciar o poder de Estado
do aparelho de Estado, e compreender
que existe uma dimensão de abordagem
funcional e uma de abordagem
institucional do Estado, seguindo a pista que nos foi dada por Renato
Perissinotto e Adriano Codato em “O marxismo como ciência social”. Não é nosso
objetivo, no entanto, aprofundar essa diferenciação aqui, mas tão somente
apontar e demarcar qual é a nossa visão sobre o Estado e o poder político. Para
nós, esse é um tema de extrema importância porque não é possível pensar
Segurança Pública sem pensar nas instituições do Estado que promovem a
Segurança Pública e sem pensar, sobretudo, na instituição central disso que se
concebe como “Segurança Pública”: a polícia. Nossa argumentação consiste aqui
em observar qual é o papel da polícia
em relação ao Estado, em relação às classes sociais e como ela se comporta no
mundo moderno, sempre tendo como horizonte uma análise institucional do
funcionamento interno da polícia é um elemento fundamental para cumprimos nosso
objetivo.
Sendo o poder político um poder organizado para a opressão de uma classe sobre
a outra, e o Estado moderno o elemento de mediação desse poder, ou seja, o
mecanismo utilizado para exercer esse poder político, é correto falarmos que o
poder político na sociedade moderna é o poder
de Estado. Mas como garantir a manutenção desse poder? Em primeira instância, por meio da violência.
Surge aqui, então, nossa primeira constatação: o que garante historicamente a
existência do Estado moderno é a utilização da violência. Maquiavel, em “O Príncipe”, reforça nossa posição
quando, ao justificar a sua dedicação à observação de “quantos são os gêneros
de milícia e sobre os soldados mercenários” diz que:
“Tínhamos
dito acima como é necessário a um príncipe ter boas fundações, pois de outro
modo irá necessariamente arruinar-se. As principais fundações que têm todos os
estados, tanto novos como velhos ou mistos, são as boas leis e as boas armas: e
porque não podem existir boas leis onde não existem boas armas, e onde existem
boas armas têm de existir boas leis, deixarei de lado o discutir as leis e falarei
das armas”3
Nosso posicionamento não apresenta absolutamente nenhuma novidade histórica. A
nossa utilização de Maquiavel serve aqui para – justamente – reafirmar que se
trata de um fato histórico consolidado, que pode ser confirmado por outro
trecho do autor florentino:
“Deve,
pois, um príncipe não ter outro objetivo, nem outro pensamento, nem tomar por
sua arte outra coisa, a não ser a guerra e as suas ordens e disciplina: porque
essa é a única arte que se espera de quem comanda, e é de tamanha virtude que
não só mantém aqueles que nasceram príncipes, como faz muitas vezes os homens
de fortuna privada ascenderem a esse posto. Em contrapartida, vê-se que os
príncipes, quando pensaram mais nos luxos do que nas armas, perderam o seu
Estado: e a primeira causa que te faz perdê-lo é negligenciar essa arte, e a
causa que te faz adquiri-lo é ser mestre dessa arte. Francisco Sforza, por
estar armado, de privado tornou-se duque de Milão, os filhos, por fugirem aos
incômodos das armas, de duques tornaram-se privados.” 4
Não ignoramos, é claro, as constatações de Antônio Gramsci em relação à
hegemonia. Sabemos que a hegemonia em um bloco histórico é por um lado dada
pela dominação (por meio da força) exercida no âmbito do Estado, e pela direção
(por meio do consenso) exercida no âmbito da sociedade civil (concebida aqui
como o conjunto de instituições privadas da sociedade). Não acreditamos que
hoje o Estado é apenas o Estado restrito,
isto é, um aparelho jurídico – político de natureza coercitiva. Concebemos o Estado
como um Estado ampliado, porque
sabemos que na sociedade de classes o Estado se transforma e adquire novas
funções, passando a assumir funções antes pertencentes às instituições
privadas, se tornando também regulador da vida social. O nosso crítico poderia
contrapor dizendo que ora acreditamos que o Estado garante o poder político por
meio da violência, e ora acreditamos que o Estado utiliza a hegemonia.
Respondemos a essa crítica com a seguinte afirmação: a hegemonia é sempre a hegemonia de uma classe sobre a outra. A
estabilidade do bloco histórico é que depende da hegemonia, não a estabilidade
do Estado. E afirmamos também que o Estado garante a sua manutenção, em primeira instância, por meio da
violência. Primeira instância porque sem a violência, não seria possível o
Estado. Essa violência é encarnada nas burocracias militares e policiais.
Atualmente, as Forças Armadas (embora cumpram também outras pequenas funções)
continuam sendo o conjunto de instituições (já que falamos de Exército, Marinha
e Aeronáutica) que o Estado convocará para concretizar a razão de Estado, isto
é, concretizar a manutenção do poder de Estado. Mas quando falamos disso,
falamos ou em bonapartismo, isto é, o
momento em que a burguesia não consegue mais governar porque não tem mais
direção (não consegue, portanto, produzir o consenso) e assim convoca as
burocracias militares para assumir o Estado, ou em situações concretas
específicas nas quais o Estado está ameaçado por alguma outra força. Em nosso
cotidiano, a instituição que está presente encarnando em si o poder de Estado é
a polícia. Portanto, será a polícia o nosso foco de análise. Com o
surgimento do Estado ampliado, a polícia parou de ter a função restrita de proteção do Estado, e passou também a promover a
segurança dos indivíduos. O discurso hobbesiano que dava crédito à ideia de que
o contrato social veio para a segurança dos indivíduos que entregavam sua
soberania ao Leviatã passou a ganhar força e com ele, a ideia de uma Segurança
Pública. Aqui, chegamos a nossa segunda conclusão: a instituição central da
Segurança Pública, a polícia, foi criada para garantir a manutenção do poder
político. Essa constatação revela então um caráter ontológico da Segurança
Pública. Não pretendemos apresentá-la aqui como novidade, já que Karl Marx no
18 de Brumário já cumpriu o papel de revelar esse caráter, como podemos ver no
seguinte trecho:
“A
Constituição, por conseguinte, refere-se constantemente a futuras leis
orgânicas que deverão por em prática aquelas restrições e regular o gozo dessas
liberdades irrestritas de maneira que não colidam nem entre si nem com a
segurança pública. E mais tarde essas leis orgânicas foram promulgadas pelos
amigos da ordem e todas aquelas liberdades foram regulamentadas de tal maneira
que a burguesia, no gozo delas, se encontra livre de interferência por parte
dos direitos iguais das outras classes. Onde são vedadas inteiramente essas
liberdades “aos outros” ou permitido o seu gozo sob condições que não passam de
armadilhas policiais, isto é feito sempre apenas no interesse da ‘segurança
pública’, isto é, da segurança da burguesia...” 5
Agora
que constatamos a relação entre Estado e
violência e qual é a função da
polícia, devemos partir para uma análise da instituição. Isso porque uma
vez observada a dimensão funcional dessa instituição, é preciso revelar a sua
dimensão organizacional. Nossa análise terá foco, em dois aspectos da polícia
brasileira que consideramos fundamentais: o inquérito policial e a ausência de
carreira única. Escolhemos o inquérito policial porque acreditamos que é um
aspecto organizacional da polícia que revela uma conexão com sua dimensão
funcional, tendo em vista as origens históricas do inquérito policial. Já a
ausência de carreira única nós escolhemos porque compreender o que consideramos
um defeito na forma de seleção e recrutamento de elites dentro das polícias
brasileiras nos parece fundamental para determinar os aspectos qualitativos da
nossa polícia e mais ainda, para apontar para reformas necessárias que devem
ser pautadas não só pelo conjunto de trabalhadores das instituições policiais,
mas também pelo conjunto de trabalhadores de todo o país, vítimas da falência
completa do sistema de Segurança Pública.
O inquérito policial: caráter
inquisitorial e razão de existência
A polícia no Brasil surgiu a partir de uma única razão de Estado, que era a
manutenção do domínio escravista colonial da Coroa Portuguesa. Diante disso, a
superestrutura jurídica criada era concomitante com a necessidade da razão de
Estado referente àquela época. Como revela Andrea Slemian e João Paulo Pimenta
em “O nascimento político do Brasil: as
origens do Estado e da nação”, a unidade política e territorial do país foi
conquistada por meio da violência. O Inquérito Policial e seu caráter
inquisitorial é uma parte constitutiva dessa superestrutura jurídica, uma parte
que permaneceu ao longo do processo histórico de desenvolvimento do Estado
brasileiro. Observar como funciona o inquérito policial e como foi
historicamente construído é, para nós, um elemento essencial para o
desenvolvimento dos nossos argumentos. Em “O
inquérito policial no Brasil”, o pesquisador Michel Misse nos fornece dados
para começar a nossa breve investigação:
“No
império, inicialmente, cabia aos juízes de paz lavrar auto de corpo de delito e
formar a culpa dos delinquentes (sumário
de culpa), função que lhes ficou consignada em nosso primeiro Código de
Processo Penal, de 1832. A formação da culpa incluía a inquirição de
testemunhas, mas também o direito do acusado de contestar as testemunhas. Em
1841, nova lei passou a atribuir aos chefes
de polícia e a seus delegados e
subdelegados (por delegação dos chefes de polícia), em concorrência aos
juízes municipais (que assumiam as atribuições dos antigos juízes de paz), a
preparação do sumário de culpa,
acumulando assim funções criminais e policiais. No entanto, já se começa a
separar essas funções, ao obrigar os delegados que pronunciassem (a pronúncia substituía o sumário de
culpa) o suspeito a enviarem o processo ao juiz municipal, para a manutenção ou
não da decisão. Finalmente, em 1871, por meio da Lei 2.033, a formação da culpa
passou a ser atribuição exclusiva dos juízes de direto e juízes municipais,
cabendo a polícia (delegados e subdelegados) apenas proceder ao inquérito policial, assim definido:
‘O inquérito policial consiste em todas
as diligências necessárias para o descobrimento dos fatos criminosos, de suas
circunstâncias e dos autores e cúmplices, deve ser reduzido a instrumento
escrito’. No art. 10 do regulamento n. 4.824, do mesmo ano, no entanto,
afirmava-se: ‘As atribuições do chefe, delegados e subdelegados de polícia subsistem (grifo de Michel Misse) com as seguintes redações: 1º. A da formação da culpa e pronúncia nos
crimes comuns (grifos de Michel Misse).’
A tradição inquisitorial se mantinha, assim, como função auxiliar da polícia,
através do inquérito policial, do que derivou o poder do indiciamento dos suspeitos, sem contrariedade nessa etapa
preliminar.” 6
Essa recuperação histórica do inquérito policial por parte de Michel Misse
revela aquilo que buscávamos ao analisar o inquérito policial: seu caráter
inquisitorial. Chamamos de inquisitorial porque nessa etapa, apesar de haver
uma formação de culpa (inerente ao poder de indiciar), não há participação do
contraditório nem a produção de provas que busquem provar a inocência do
investigado. Trata-se então, de uma imputação
criminal preliminar, como evidenciado por Johnny Guimarães em sua brilhante
obra “Imputação Criminal Preliminar e
Indiciamento”. Em um país em que 74% das prisões em flagrante por tráfico
têm apenas policiais como testemunha do caso, e 91% dos processos decorrentes
dessas detenções resultam em condenação (segundo pesquisa do Núcleo de Estudos
da Violência da USP) e que 40% dos presos ainda não foram julgados (segundo a
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, essa reflexão não é de menor
monta. Em quase todos os países modernos, podemos encontrar dois modos
diferentes de conduzir a fase preliminar da persecução penal: o modelo que segue
a tradição inglesa de common law, e o
modelo que segue a tradição continental de civil law. Michel Misse, na obra supracitada, define da seguinte maneira:
enquanto no primeiro a fase preliminar pode ser exclusivamente da polícia, no
segundo há o protagonismo do Ministério Público, que para tanto dispõe da
Polícia Judiciária. No caso brasileiro, há uma amálgama desses dois sistemas
que produz determinadas assimetrias com implicações do ponto de vista da
legalidade democrática. Isso porque, apesar de ser o Ministério Público o
titular da ação penal, a formação de culpa precede de maneira informal a
denúncia através de uma imputação criminal preliminar, porque no ato do
indiciamento presente no inquérito o contraditório e a produção de provas em
favor da defesa não existem. Portanto, na figura do delegado por meio do
inquérito policial mistura-se o estatuto da neutralidade da investigação
policial com o poder de indiciar, enquanto a denúncia só pode ser decidida pelo
Ministério Público. Aqui, o afastamento do Ministério Público no inquérito
policial merece nossa atenção não somente pela concentração de poder na figura
do delegado, mas pela pressuposição de legitimidade de toda morte decorrente de
letalidade policial. A pesquisa do delegado da Polícia Civil Orlando Zaccone
aponta, através da análise dos autos de resistência, que há um critério de
classe estabelecido pelas autoridades policiais na qualificação de homicídios.
A legitimidade jurídica de uma morte é estabelecida não pelos fatos a serem
apresentados no processo investigativo, mas sim de acordo com a condição da
vítima, constituindo assim o chamado “direito
penal da vítima”. Essa posição de Zaccone, que nós seguimos, pode ser
encontrada por exemplo no seguinte trecho do livro “Indignos da vida – forma jurídica da política de extermínio na cidade
do Rio de Janeiro”:
“A
resposta também não se dará no campo jurídico, mas sim no campo político. É a
partir de decisões administrativas, com força de lei, no arquivamento dos autos
de resistência, que a vida é incluída ou afastada da esfera de proteção. Uma
das hipóteses que queremos apresentar é a de que a inclusão/exclusão jurídica
do homicídio, perpetrado por agentes policiais, se manifesta por conta da
condição do morto e não na forma de como o fato efetivamente ocorreu.” 7
Quando fala de decisão administrativa, Zaccone está se referindo ao fato de
que os inquéritos policiais são arquivados por meio de um ato administrativo do
Ministério Público. Em sua pesquisa, Zaccone encontrou também que em determinados
casos, os membros do Ministério Público sequer leram o inquérito policial.
Deste modo, o Ministério Público serve mais para legitimar a letalidade
policial do que realizar o controle externo de sua atividade, já previsto
constitucionalmente no art. 129, inciso VII. Tendo isso em vista, a proximidade
do Ministério Público do processo de investigação – e com proximidade falamos
necessariamente de participação – não significará o controle da atividade
policial (que, vale dizer, acreditamos que deve ser feito por uma corregedoria externa, embora não seja
nosso objetivo desenvolver essa discussão). Acreditamos que investigação
criminal pelo Ministério Público, nos termos colocados pelo procurador Vladimir
Aras*[*],
é capaz de saltar um salto qualitativo para o processo investigativo no Brasil.
Isso significaria seguir apenas a
sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que acerca do caso da
Favela Nova Brasília, aponta nos pontos resolutivos 16 e 19 8:
16. O Estado, no prazo de um ano contado a partir da notificação da
presente Sentença, deverá estabelecer os mecanismos normativos necessários para
que, na hipótese de supostas mortes, tortura ou violência sexual decorrentes de
intervenção policial, em que prima facie policiais apareçam como possíveis
acusados, desde a notitia criminis se delegue a investigação a um órgão
independente e diferente da força pública envolvida no incidente, como uma
autoridade judicial ou o Ministério Público, assistido por pessoal policial,
técnico criminalístico e administrativo alheio ao órgão de segurança a que
pertença o possível acusado, ou acusados, em conformidade com os parágrafos 318
e 319 da presente Sentença.
19. O
Estado deverá adotar as medidas legislativas ou de outra natureza necessárias
para permitir às vítimas de delitos ou a seus familiares participar de maneira
formal e efetiva da investigação de delitos conduzida pela polícia ou pelo
Ministério Público, no sentido disposto no parágrafo 329 da presente Sentença.
O
leitor que tiver interesse em compreender mais sobre a condução das
investigações por parte do Ministério Público, deve recorrer ao livro
supracitado de Johnny Guimarães, sobretudo no capítulo 4, seção 4.2.2.1., “A entrega da imputação criminal preliminar
ao Ministério Público: mudança de rota”. Uma vez que nos debruçamos sobre a
temática do Ministério Público, pretendemos voltar para a análise do caráter
inquisitorial do Inquérito Policial. E é com essa mesma obra que vamos
defender nossa posição quanto ao nosso objeto de investigação. Como dissemos
acima, não há no inquérito a participação do contraditório nem a produção de
provas que busquem provar a inocência do investigado. Isso acontece porque
atrelado ao inquérito policial está o dispositivo do indiciamento, isto é, o ato formal de imputação criminal, de atribuir um crime a alguém. O trecho que
retiramos da obra de Johnny servirá aqui para reforçar nosso posicionamento:
“Em
princípio, é de se notar que, identificado o provável autor do crime, a rota da
investigação é alterada, normalmente com a condução de diligências que
confirmem ou aprofundem a convicção sobre as evidências angariadas. Ainda
segundo Antônio Scarance Fernandes, ‘a partir da imputação, as diligências têm
finalidade determinada: coleta de elementos a respeito de eventual prática
delituosa pelo indiciado.
Deveras, a legislação autoriza, diante de fundados indícios e ordem judicial
(sendo que, em alguns casos, tal ordem é despicienda), uma série de atos
invasivos que fragilizam a esfera de proteção do indiciado, sujeitando-o a
medidas restritivas excepcionais a seu patrimônio, domicílio, privacidade e
liberdade (art.125, art. 136 do CPP – sequestro arresto e hipoteca legal; art.
240 e seguintes do CPP – busca e apreensão, Lei n.9.296/1996, Lei n.12.683/2012
e Lei n.12.965/2014 – quebra do sigilo de dados cadastrais, registros de
conexão, acesso e conteúdo de comunicações privadas e sigilo das comunicações
telefônicas; art.317 e 319 do CPP e Lei n.7.960/1989 – restrições à liberdade,
entre outras).” 9
Que papel cumpre, então, o Inquérito Policial? O papel de criminalizar o
indivíduo antes do seu julgamento por lei. Todos aqueles que têm o mínimo de
compromisso com o direito de defesa devem se pronunciar contra o inquérito
policial. O Código de Processo Penal brasileiro herda, quanto ao indiciamento,
a lógica da Escola Técnico-Jurídica da Itália fascista, sendo ele um mecanismo
para anular a presunção de inocência e atenuar o direito de defesa. A justificativa para
existência do inquérito hoje é muito mais de natureza política do que de
natureza jurídica. Não à toa, instituições como a Associação Nacional dos
Procuradores da República (ANPR) e a Federação Nacional dos Policiais Federais
(FENAPEF) já se declararam publicamente a favor da extinção do inquérito
policial, a exemplo da proposta de extinção do IPL apresentada em 7 de
fevereiro de 2002 pela vice-presidente da ANPR na época, Valquíria Quixadá. Decorrente
da existência do IPL existe uma centralização da investigação na figura do
delegado, e com esta, uma impossibilidade prática da resolução das
investigações. Afinal, como concentrar todos os IPLs instaurados em apenas um
indivíduo? Ou pior, em apenas um cargo? Isso configura não apenas em uma
impossibilidade prática de resolução das investigações, mas também nos remonta
a outro problema: a concentração de poder no processo investigativo. A série de
artigos de O Antagonista intitulada “A
guerra suja da PF” 10 e a de Veja
intitulada “PF x PF: policiais vão pedir
a Janot que mantenha investigações contra Humberto Costa” 11 nos fornecem elementos para compreender como
os delegados se utilizam das informações sigilosas presentes nos inquéritos das
investigações para barganhar projetos de lei e um conjunto de benefícios a seu
favor no Congresso Nacional. Não são poucos os projetos de lei propostos por
delegados de polícia e associados que propõe o reconhecimento da natureza
jurídica do cargo de delegado: a PEC 549 de 2006 e a lei nº 12.830/2013 propostas
pelo deputado Arnaldo Faria de Sá, o PLS 124 de 2011 proposto pelo senador
Humberto Costa figuram como alguns exemplos a serem citados, que caminham na
contramão da modernização da Segurança Pública e afirmação da democracia
brasileira. Além delas, a própria PEC 37, que reivindicava às polícias civis
dos estados e a Polícia Federal a exclusividade
das investigações caminha no sentido contrário do que deve ser realizado na
Segurança Pública do Brasil. Mais que isso, pretende-se sepultar de vez o
controle externo da atividade policial através da PEC 412 de 2009, que visa
implantar uma autonomia funcional e administrativa para a Polícia Federal. Em
nosso horizonte, qualquer reforma do sistema de Segurança Pública deve passar
necessariamente pelo fim do Inquérito
Policial. Essa é uma bandeira fundamental não só para os que se proclamam
revolucionários e que buscam construir um programa mínimo, mas para qualquer um
que defenda um horizonte democrático para o povo brasileiro. Mas, uma vez que
evidenciamos aqui os interesses dos delegados, precisamos nos debruçar sobre o
nosso segundo objeto de investigação: a ausência
de carreira única nas polícias brasileiras.
Carreira Única: o ingresso único e o fim dos delegados e oficiais
Consideramos aqui como elite o conjunto
de indivíduos que tomam diretamente as decisões institucionais das polícias,
porque são indivíduos que ocupam posições formais de mando dentro das
instituições policiais. Utilizando da concepção de método posicional para
definição de elite, entendido como o método que concebe apenas “aqueles indivíduos ou grupos que preenchem
as posições formais de mando em uma comunidade (diretorias de grandes empresas,
cúpulas do Executivo, posições superiores nas organizações políticas e
militares)”****,
pretendemos analisar se os indivíduos que ocupam essas posições formais são ou
não uma elite qualificada. Essa
qualificação será referenciada não de acordo com a racionalidade procedimental
da própria elite, isto é, de acordo com a sua eficiência em – por meio dos
meios disponíveis – alcançar seus objetivos particulares, mas sim em relação às
funções das instituições policiais. Com isso, pretendemos lançar o seguinte
questionamento: será que os indivíduos que ocupam as posições formais de mando
nas instituições policiais são realmente os indivíduos mais capazes para cumprir essas funções? Acreditamos que não.
Para que o nosso leitor compreenda como funciona a carreira única, façamos um
paralelo: em uma polícia X, de um país Y, o policial ingressa por meio de
concurso público ou mecanismo semelhante de seleção. Passa por um curso de
formação que o qualifica para exercer a atividade
policial. Após esse curso de formação, o policial deverá ir a campo,
começando por cargos mais baixos (o popular “guarda de rua”) e galgando até as
posições mais altas da polícia, de acordo com seu mérito e experiência. Perceba
que o mecanismo de recrutamento – isto é – o que define sua capacidade de
progredir na carreira e ocupar posições formais de mando, é a sua produtividade
e seu conhecimento de campo, o seu domínio da prática da atividade policial. No caso brasileiro, não é isso que acontece. No
Brasil, o que ocorre é que as polícias brasileiras realizam um concurso para
chefe. Nossa crítica aqui não é ao universalismo de procedimentos, nossa
perspectiva não é contrária ao concurso público. Nossa defesa presente nesse
discurso, na verdade, é uma defesa que compreende que o indivíduo deve ingressar na corporação através do
concurso público para então, de acordo com os critérios de mérito, experiência
e produtividade, chegar ao cargo de chefe de polícia. Trata-se na verdade, de evitar que o concurso público seja uma
porta de entrada direta para a chefia. Essa
na verdade é uma crítica ao processo de recrutamento de elites feito pelas
instituições policiais brasileiras: não existe concurso público que capacite um
policial para a chefia da organização policial. As competências exigidas para o
concurso público são de natureza acadêmica, não de natureza policial. A ciência policial, isto é, o saber fazer
da atividade policial exige um conjunto de métodos próprios que são apreendidos
de acordo com a prática dessa atividade. O conhecimento acadêmico não é
descartado após o ingresso, mas é incorporado de acordo com o que é
aproveitável à prática da atividade policial. É preciso questionar também qual
conhecimento acadêmico é relevante para qual área. É melhor uma polícia com
bacharéis em Direito ou uma polícia com múltiplas formações acadêmicas e
múltiplas possibilidades de contribuição? É preferível ter um policial formado
em Tecnologia da Informação para Crimes Cibernéticos e um policial formado em
Contabilidade ou Economia para Crimes Fazendários do que um policial formado em
Direito. A realidade se choca com o modelo quando percebemos que no cotidiano
policial, o importante é a experiência do indivíduo em trabalhos de natureza
policial, ou seja, o indivíduo adquire experiência através do trabalho, e as
contribuições que trás de sua formação são contribuições diretamente ligadas à
natureza da atividade que ele exerce no momento. O bacharel em Direito não deve
ser privilegiado em relação a outras formações acadêmicas, e em determinados
casos até se apresenta como um ônus para a realização da atividade policial. Defendemos
então que a Polícia Militar quando em alguns estados define que o cargo de
oficial deve ser condicionado ao bacharel em Direito, está em movimento
contrário à modernização das polícias. Resolvem seguir o modelo antigo já
praticado pela Polícia Civil e pela Polícia Federal e com isso, vai a contramão
da modernização das instituições. Vimos então que o mecanismo de seleção e recrutamento para posições
formais de mando nas instituições policiais brasileiras é um mecanismo
ineficiente porque escolhe mal as competências que devem ser valorizadas na
ocupação desses cargos. Há então uma assimetria entre as competências
necessárias para ocupar as posições formais de mando e as competências exigidas
pelo processo de seleção e recrutamento dessas posições. De forma sintética: o
modelo brasileiro privilegia concursados ao invés de policiais experientes.
Desvaloriza os profissionais com competência e experiência. Defendemos que o
modelo correto compreende somente uma
carreira policial e, portanto, deve compreender também em seu processo de
entrada na instituição o ingresso único.
Como decorrência lógica também, o fim dos cargos de delegado e oficial nas
polícias brasileiras. Em 1808, com a chegada da Corte portuguesa no Brasil, foi
criada a Intendência Geral de Polícia, cuja chefia era desempenhada por um
desembargador, nomeado Intendente Geral de Polícia, com status de ministro de
Estado, o cargo de delegado foi criado tendo em vista as peculiaridades e
extensão do território nacional. Para contornar esses fatores, o intendente
podia autorizar outra pessoa a representá-lo nas províncias, surgindo desta
atribuição cargo de "delegado" no Brasil. Nessa época, essa lógica de
dar a chefia da polícia para um delegado fazia sentido. Atualmente, tendo em
vista o desenvolvimento histórico, não faz mais sentido essa associação. O
delegado de polícia é só mais um cargo entre tantos outros cargos dentro da
polícia, com uma questão particular: não tem mais razão de ser. Enquanto o fim
dos oficiais se daria necessariamente pelo fim da cisão entre oficiais e praças
(por meio do ingresso único, que virá com a carreira única), o fim do cargo de
delegado se daria não só pelo ingresso único, mas também pela completa
inutilidade do ponto de vista prático. A categoria que mais ganha bem na
polícia brasileira também é a categoria que menos tem utilidade para a
realização da atividade policial e, portanto, deve acabar. Os delegados que se
reivindicam por um lado carreira jurídica, por outro carreira policial, devem
na verdade se tornar carreira extinta. Ora, se desejamos o fim do Inquérito
Policial e defendemos também o Ingresso Único na carreira, por que então desejaríamos
a manutenção do cargo de delegado? Com que propósito? Trata-se apenas de jogar
na lata de lixo da história aquilo que não serve mais para a modernização. Não
são poucos os projetos de lei em que os delegados defendem seus próprios
interesses. Através de lobby e de chantagem no congresso nacional, os delegados
estão sequestrando uma série de atribuições de outras instituições e fazendo
com que a Polícia Federal se aproprie dessas atribuições. Em parte se
aproveitando do prestígio social que a Polícia Federal tem, em parte se
aproveitando da omissão de outras instituições para o crescimento da classe
(vide Polícia Rodoviária Federal e Ministério Público), através de lobby e
chantagem no congresso nacional os delegados estão sequestrando uma série de
atribuições de outras instituições e fazendo com que a Polícia Federal se
aproprie dessas atribuições. Um exemplo que pode ser dado é a Lei 13.124/2015,
que faz com que a investigação de determinados crimes passe do Ministério
Público do Estado para a Polícia Federal. Um outro exemplo que também pode ser
dado é a declaração dos delegados acerca das atribuições da Polícia Rodoviária
Federal. Segundo o portal do Supremo Tribunal Federal, na visão dos delegados
da Polícia Federal: “ao permitir que policiais rodoviários federais executem
atos privativos da polícia judiciária – como interceptações telefônicas,
cautelares de prisão, busca e apreensão, quebra de sigilos e perícias – o
decreto invadiu reservada à Polícia Federal pela constituição”***. Como citamos acima, a PEC
549 de 2006 e a lei nº 12.830/2013 propostas
pelo deputado Arnaldo Faria de Sá, o PLS 124 de 2011 proposto pelo senador
Humberto Costa, também são exemplos de lobby dos delegados de polícia. Basta
analisarmos o conteúdo desses projetos que estão revelados os seus interesses:
TÍTULO DO
PROJETO
|
TEXTO DE
INTERESSE DOS DELEGADOS
|
PEC 549/2006 12 |
“Art.
251. Os Delegados de Polícia organizados em carreira, no qual o ingresso
depende de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem
dos Advogados do Brasil, admitido o provimento derivado na forma da lei, são
remunerados de acordo com o disposto no art. 39, § 4º e o subsídio da classe
inicial não será inferior ao limite fixado para o membro do Ministério Público
que tenha atribuição para participar das diligências na fase investigatória criminal,
vedado o exercício de qualquer outra função pública, exceto uma de
magistério.”
|
LEI Nº 12.830/2013 13 |
Art.
2º - As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais
exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e
exclusivas de Estado.
|
LEI Nº 13.047/2014**** 14 |
Art.
2o-A. Parágrafo único: “Os ocupantes
do cargo de Delegado de Polícia Federal, autoridades policiais no âmbito da
polícia judiciária da União, são responsáveis pela direção das atividades do
órgão e exercem função de natureza jurídica e policial, essencial e exclusiva
de Estado.”
|
PLS 124/2011 15 |
Art.
2º - A atividade de investigação criminal do Delegado de Polícia é de
natureza jurídica e será exercida com autonomia, isenção e imparcialidade.
|
PEC 240/2013 16 |
Art.
2º. O art. 144, da Constituição Federal, passa a vigorar com o acréscimo dos
seguintes §§ 10 e 11:
§ 10. O subsídio do nível máximo da carreira de delegado de polícia federal corresponderá a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal fixado para os Ministros do Supremo Tribunal Federal. O subsídio dos demais delegados federais será fixado, de forma escalonada, em lei, não podendo a diferença entre um e outro ser superior a dez por cento ou inferior a cinco por cento, nem exceder a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal fixado para os Ministros do Supremo Tribunal Federal, obedecido, em qualquer caso, o disposto nos artigos 37, XI, e 39, §4º. |
PEC 412/2009 17 |
Art.
1º O parágrafo 1º do art. 144, da Constituição Federal passa a vigorar com a
seguinte redação:
“Art. 144. § 1º Lei Complementar organizará a polícia federal e prescreverá normas para a sua autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de elaborar sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias, com as seguintes funções institucionais:” |
PEC 37/2011 18 |
Art.
1° - O art. 144 da Constituição
Federal passa a vigorar acrescido do
seguinte
§ 10:
"Art.
144 .....................................
§
10. A apuração das infrações penais de que tratam os §§ 1° e 4°
deste
artigo, incumbem privativamente às polícias federal e civis dos Estados
e
do Distrito Federal, respectivamente.”
|
Lei 13.124/2015 19
|
Art.
1º - O art. 1º da Lei no 10.446, de 8 de maio de 2002, passa a vigorar
acrescido do seguinte inciso VI:
“Art.1º
VI - furto, roubo ou dano contra
instituições financeiras, incluindo agências bancárias ou caixas eletrônicos,
quando houver indícios da atuação de associação criminosa em mais de um
Estado da Federação.
|
PEC 131/2015 20 |
Art.
5º Os atuais integrantes das polícias rodoviária e ferroviária federal serão
enquadrados no quadro da polícia federal, no Distrito Federal ou nos Estados
que sediam a circunscrição em que estão lotados, observado o que dispõe o
art. 4º desta Emenda Constitucional.
|
O que revela o conteúdo desses projetos senão uma expressão continuada de
interesses particulares? Deriva dessa análise nosso segundo argumento em torno
da qualificação da elite que administra as instituições policiais no Brasil:
seus interesses particulares são contrários à modernização da Segurança Pública
no país. O interessante é que enquanto os oficiais da Polícia Militar se
escondem sob a fachada da militarização e da defesa da “disciplina”, os
delegados de polícia não fazem questão de esconder a representação de seus
interesses particulares. Fernando Francischini, deputado federal e delegado da
Polícia Federal disse em entrevista ao jornal Folha de São Paulo sobre a
aprovação da Medida Provisória 657:
“O
governo teve que editar uma MP ontem a noite porque sabia que hoje ia ser uma
pancadaria. Botamos o governo de joelho. Fazer uma MP na calada da noite, a dez
dias das eleições, mostra claramente que o governo não estava dando atenção
para a Polícia Federal como gosta de alardear na propaganda eleitoral” 21
Não há constrangimentos para os delegados de polícia. No caso dos delegados
da Polícia Federal – que por posição política, nos rejeitamos a qualificar como
policiais – eles se organizam por meio de sua associação, a Associação Nacional
dos Delegados de Polícia Federal (ADPF) para realizar todo tipo de articulação
política escusa. Por exemplo, enquanto o país lutava contra a aprovação da PEC
37, seus diretores divulgavam em entrevistas, artigos e por meio do site da
associação22 a ideia de que a PEC 37 era associada à legalidade e
garantia de direitos do cidadão. Da mesma forma, divulgaram a vergonhosa PEC
412 como a PEC da “autonomia”23 da Polícia Federal. Embora não
tenham nenhum constrangimento em defender seus interesses privados, ainda
buscam apresentar seus interesses como interesses gerais da sociedade. A quem
pretendem enganar os delegados? Por isso, dizemos: a modernização da Segurança
Pública deve acontecer e deve trazer em seu bojo o ingresso único nas polícias.
Sem mais. Devemos permitir que os ventos da história afastem o atraso e o
retrocesso que representa esse modelo de ingresso nas instituições policiais
vigente no país. Chegou a hora de renovar a nossa elite policial, instituindo critérios objetivos relativos à prática
cotidiana da atividade policial como critérios de seleção e recrutamento para
as posições formais de mando.
Seria utopia acreditar em outra Segurança
Pública?
Primeiramente, o que vemos como de fato utópico é acreditar que com a atual
ordem das coisas é possível o vislumbre de alguma chance de concretização dos
nossos problemas atuais simplesmente aumentando os dispositivos jurídicos de
punição e o investimento na área de Segurança Pública. Se ser radical
significa, de fato, ir até a raiz, precisamos ir até a raiz dos problemas da
Segurança Pública e resolvê-los. Não é correto acreditar em outra Segurança
Pública simplesmente cobrindo com um véu a realidade atual. Não adianta, por
exemplo, acreditar que o ciclo completo (pauta que nós defendemos) resolverá
nossos problemas sem o ingresso único, ou que o ingresso único resolverá nossos
problemas sem a desmilitarização (pauta que também defendemos). O que colocamos
aqui são pautas de um programa mínimo, um programa que visa uma dimensão
pragmática, porém conectada com uma dimensão de longo prazo, uma dimensão
revolucionária de transformação completa do sistema de Segurança Pública no
país. É correto, portanto, dizer que buscamos construir aqui um programa mínimo para a Segurança
Pública, ou seja, um programa que tem uma dimensão pragmática, mas que não se
esgota nela porque compreende a necessidade de mudança estrutural completa do
sistema. Destruir o atual para construir o novo.
Mas qual é o caráter desse projeto? Se criticamos a elite das instituições
policiais pela representação de interesses particulares expressos como gerais,
faz-se mister que nosso projeto recuse esses interesses particulares e tenha
como horizonte o interesse geral do povo brasileiro. Para isso, pautamos a
construção de um projeto nacional de
Segurança Pública com participação de todas as instituições da sociedade em
busca dos interesses do povo brasileiro. Achamos que os sindicatos e
associações de praças e EPAs (Escrivães, Papiloscopistas e Agentes) devem
participar dessa construção, porque não é possível construir outra Segurança
Pública sem os trabalhadores que estão cotidianamente exercendo as funções
relativas a essa área. Sem dialogar com os policiais, não é possível construir
Segurança Pública. A Federação Nacional de Policiais Federais (FENAPEF) e os
Policiais Antifascismo são dois exemplos concretos de instituições de caráter
amplamente diferente que devem ser chamadas a discutir Segurança Pública.
Movimentos sociais no geral, fóruns de segurança (como o Fórum Brasileiro de
Segurança Pública), espaços de deliberação de todo tipo, mesmo a nível
municipal, tudo isso está colocado em nosso horizonte. Acreditamos que o
sujeito central da transformação da Segurança Pública é o policial, mas ser sujeito central não significa que os policiais
devem construir esse projeto sozinhos. Chamar a população para construir esse
projeto não é somente uma forma de democratizar o processo (sem cair nas
ilusões da teoria participativa e deliberativa aqui), mas também uma forma de
controlar quais interesses serão representados e colocados dentro do projeto.
Isso porque a Segurança Pública – como interesse do povo brasileiro – deve ter
o povo como horizonte de discussão. Os dados que o FBSP vem colhendo, os
trabalhos feitos nas universidades (inclusive pelos próprios policiais), as
experiências empíricas de Luiz Eduardo Soares, Ricardo Balestreri, Marcos Rolim
etc., juntam-se com as pesquisas fenomenais de órgãos como o IPEA (vejam o
trabalho sensacional de Daniel Cerqueira) e com as pautas que levantam as
associações e sindicatos da polícia, e assim servem como um subsídio altamente
qualitativo para a discussão pública. Cabe a nós, militantes da área de
Segurança Pública, fazer um trabalho de conscientização cada vez maior dessas
pautas e criar iniciativas cada vez maiores de diálogo entre essas forças. Se a
polícia é, antes de tudo, uma instituição produzida pela sociedade – ela é
passível de transformação. A polícia não é um elemento místico, associada a uma
soberania imaginária do Estado. A polícia é uma instituição da sociedade
constituída por um conjunto de indivíduos. Justamente por ser também a polícia
um produto da história, afinal, a civilização humana é muito mais antiga que a
polícia - e mesmo atualmente existem um conjunto de civilizações que existem
sem uma instituição como a polícia, é possível almejarmos a transformação dessa
instituição. Portanto, não há nada de utópico na defesa de outra Segurança
Pública, ao contrário, os argumentos contra a modernização é que são cada vez
mais distantes e desconexos com a realidade. Uma vez que os interesses privados
são revelados e o que apresentado como geral sob o véu da manipulação torna-se
privado através da verdade, não há como parar a mudança. Somente retardá-la.
“Os
homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob
circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as
gerações mortas oprime com um pesadelo o cérebro dos vivos” 24
Referências:
1 - Para compreender a Ciência: uma
perspectiva histórica. ANDERY, Maria Amália. MICHELETTO, Nilza. Et al.
Editora EDUC e Editora Espaço e Tempo. Pág. 10.
2 – Para
compreender a Ciência: uma perspectiva histórica. ANDERY, Maria Amália.
MICHELETTO, Nilza. Et al. Editora EDUC e Editora Espaço e Tempo. Pág. 11.
3 – O Príncipe. MAQUIAVEL, Nicolau.
Editora 34. Pág. 165.
4 – O Príncipe. MAQUIAVEL, Nicolau.
Editora 34. Pág. 179
5 - O 18 de Brumário de Luís Bonaparte.
MARX, Karl. Editora Paz e Terra. Pág. 31.
6 – O inquérito policial no Brasil: uma
pesquisa empírica. MISSE, Michel. Et al. Págs. 11 e 12.
7
– Indignos de vida: a forma jurídica da
política de extermínio na cidade do Rio de Janeiro. ZACCONE, Orlando.
Editora Revan. Pág. 29.
9 – Imputação Criminal Preliminar e
Indiciamento: legitimidade e conformação constitucional. GUIMARÃES, Johnny
Wilson Batista. Editora D’Plácido. Pág 80.
10 – Parte 1: https://www.oantagonista.com/brasil/a-guerra-suja-da-pf-1/
Parte 2: https://www.oantagonista.com/brasil/a-guerra-suja-da-pf-2/
Parte 3: https://www.oantagonista.com/brasil/a-guerra-suja-da-pf-3/
Parte 4: https://www.oantagonista.com/brasil/a-guerra-suja-da-pf-4/
Parte 5: https://www.oantagonista.com/brasil/a-guerra-suja-da-pf-5/
11 - https://veja.abril.com.br/blog/radar/pf-x-pf-policiais-vao-pedir-a-janot-que-mantenha-investigacoes-contra-humberto-costa/
16 - http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1061574&filename=PEC+240/2013
17 - http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=697312&filename=PEC+412/2009
24 - O 18 de Brumário de Luís
Bonaparte. MARX, Karl. Editora Paz e Terra. Pág. 17.
[*]Nos referimos ao
artigo publicado por Vladimir Aras intitulado “A investigação criminal pelo MP”, publicado no site da Associação
Nacional dos Procuradores da República. O artigo pode ser encontrado no site:
http://www.anpr.org.br/artigo/80.
** Aqui, seguimos
a orientação e definição dos professores Adriano Codato e Renato Perissinotto,
no livro “Como estudar elites”, da
editora UFPR.
*** A declaração a
qual nos referimos foi publicada no site do Supremo Tribunal Federal: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=157976
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