Quais os limites da crítica ao capital rentista?


Thiago Martins Jorge é graduado em Administração pela FEARP-USP, mestrando também em Administração pela FACC-UFJF e membro do grupo de pesquisa Trabalho e Marxismo (TraMa). 

            Com a economia brasileira ainda longe de mostrar sinais de recuperação, temos visto o aumento do tom da crítica ao chamado “capital rentista”, sendo que se entende por “capital rentista” aquele capital que se expande independentemente da produção de riqueza, isto é, expande-se por meio da cobrança de juros, alugueis ou via atividades financeiras especulativas.        
A crítica ao rentismo intensifica-se na medida em que um número crescente de pesquisas aponta para a ocorrência de uma virada na trajetória da economia capitalista durante as décadas de 1970 e 1980, virada que teria culminado no surgimento de um “regime de acumulação predominantemente financeiro”. Tal regime teria dado ensejo para que (1) as empresas não-financeiras menosprezassem suas atividades fins e mergulhassem irrefletidamente no mar da especulação financeira – e , para isso, se endividassem em níveis historicamente inéditos -; (2) empresas produtivas criassem subsidiárias dentro do setor financeiro; (3) corporações usassem seu caixa para quitar dívidas, recomprar e valorizar ações, aumentar o pagamento de dividendos e pagar altos bônus no setor financeiro, ao invés de investirem em equipamento produtivo, estrutura ou inovação; (4) bancos comerciais, reconhecidos por serem tomadores e emprestadores de recursos, dessem lugar a bancos de investimentos e bancos múltiplos, especialistas em operações de securitização e intermediação no mercado de títulos.
Um dos primeiros pesquisadores a falar no surgimento de um regime de acumulação financeirizado, e dele depreender esses resultados, foi o economista francês Francois Chesnais. Desde então, uma série de pesquisadores se debruçaram sobre esse fenômeno gerando uma extensa bibliografia sobre o tema: Chesnais (2001; 2002; 2005; 2016) Duménil e Lévy (2011), Husson (2008), Lapavitsas (2009), Soares (2017), Dowbor (2015), etc.
Um traço comum à maioria desses trabalhos é identificar a financeirização como resultado de ações e acordos políticos efetuados ao longo da década de 1970: desregulamentação e mundialização do sistema financeiro, revogação do sistema de Bretton Woods, flexibilização cambial, aliança entre gestores e capitalistas (esse ponto é muito específico ao trabalho dos autores franceses: Duménil e Lévy), etc. De forma mais explícita para alguns, e implícita para outros, ele bebem na fonte da Escola Regulacionista.
Retornando ao nosso tema, o que nos interessa da discussão acima é a relação entre os fatos e a relação de causalidade. Na tradição regulacionista e, consequentemente, entre os adeptos da teoria da financeirização, o momento decisivo está na atuação dos gestores (principalmente dos gestores políticos). Para eles, os anos dourados do modo de produção capitalista – iniciados após a 2ª Guerra Mundial e encerrados com a crise dos anos 1970 – se devem a intervenção dos gestores criando um ambiente saudável para a expansão do capital produtivo (não coincidentemente, denominam esse período como a fase “fordista-keynesiana”).
Entretanto, os homens não agem livremente ou nas condições por eles desejadas, mas sim nas condições que encontram. Essa máxima é ainda mais verdadeira sob o modo de produção capitalista, uma vez que os movimentos da economia não estão sob o controle dos homens. Obviamente que os homens reagem conscientemente aos seus movimentos e, com maior ou menor assertividade, podem intervir sobre sua dinâmica. Contudo, como já identificado por Marx, muitas das ações rotineiras dos gestores do capital geram resultados não previstos. A Lei da Queda Tendencial da Taxa de Lucro é o exemplo mais bem acabado dessa dinâmica: gestores do capital buscando a todo custo maximizar o seu lucro individual, mas, com isso, gerando a redução da taxa de lucro global (Marx (2016) e Kliman (2015)).
Desse modo, só podemos entender o conjunto de decisões tomadas pelos gestores do capital produtivo, ao longo da década de 1970 e seus resultados, quando entendemos os movimentos da economia aos quais estavam buscando responder. Para isso, a primeira pista importante pode ser encontrada no gráfico abaixo:

Gráfico 1.
A taxa de lucro no “Centro” (Economias Capitalistas Avançadas), %


Fonte: Roberts (2016)
 
            O gráfico indica uma queda histórica na taxa de lucro de 1855. Contudo, uma importante recuperação teve início nos anos 1930, mas se encerrou na virada dos anos 1960-1970. Nesse momento, encontramos as menores taxas de lucro da história do modo de produção capitalista e, como podemos notar, apesar de tímidas oscilações, ela se manteve nesse patamar pantanoso desde então.
            Outra importante pista pode ser encontrada no gráfico 2 (abaixo). Nele verificamos como a taxa de acumulação de capital (máquinas, equipamentos, plantas industriais, etc.) tende a seguir de perto a taxa de lucro. Essa relação é inclusive muito fácil de ser entendida: os gestores do capital produtivo somente ampliam investimentos se encontram estímulos para isso, e esse estímulo, obviamente, é a lucratividade.

Gráfico 2.
Taxa de lucro e taxa de acumulação (EUA)

Fonte: Kliman (2011)
 
Com essas duas pistas, podemos vislumbrar o contexto em que se deu a desregulamentação do mercado financeiro. Com a queda da taxa de lucro, os gestores do capital produtivo não encontravam estímulos para efetivarem novos investimentos. Por outro lado, o ganho dos acionistas (dentre os quais podemos incluir os próprios gestores do capital produtivo) segue dependendo da valorização dos papeis das empresas. Com o circuito de produção do capital parcialmente bloqueado, a única possibilidade de obtenção de ganhos elevados é por meio da especulação financeira. Nessa direção, uma possibilidade imediata de expandir os ganhos ficcionais (sem lastro de riqueza real) se dava pela valorização artificial das ações. Para isso, os gestores aproveitaram o excesso de capital ocioso, tomaram empréstimos e os destinaram para a recompra de suas próprias ações. Desse modo, aumenta-se a demanda por esses papeis, gerando um novo impulso de valorização. No entanto, uma série de amarras jurídico-legais impediam a adoção em larga escala desse tipo de empreendimento, portanto fazia-se necessário que os gestores políticos do capital desregulamentasse o sistema financeiro.
Estes, por sua vez, se deparavam com duas alternativas: (1) atender à pressão dos gestores econômicos e liberalizar o sistema financeiro ou (2) buscar criar um novo ciclo de expansão econômica e, com isso, gerar novos investimentos produtivos (isso significava encontrar uma solução para a crise de lucratividade). Ao contrário do que é destacado pelos adeptos da teoria da financeirização, os gestores políticos não se renderam facilmente à primeira alternativa. Como destaca Brenner (2006), paralelamente à desregulamentação do sistema financeiro, muitas tentativas foram feitas no sentido de recuperar a taxa de lucro (a flexibilização cambial, inclusive, é uma ação chave nessa direção, uma vez que é condição necessária para ampliar a competitividade no mercado mundial). Contudo, novamente vemos aquela dinâmica em que os resultados contrariam ao objetivo da ação inicial.
Para combater a crise dos anos 1970, os gestores políticos disponibilizaram massivos recursos para as empresas em dificuldades. Com isso, esperava-se que os gestores destas empresas quitassem suas dívidas e voltassem a investir. No entanto, o resultado alcançado foi unicamente minimizar o volume das falências e isso é altamente negativo para a dinâmica da economia capitalista. Essa questão é aparentemente contraintuitiva, mas a questão aqui é entender aquilo que já mencionamos anteriormente: o modo de produção capitalista possui uma lógica própria, e o que é melhor para ele não necessariamente é melhor para os homens. Evitar uma quebradeira geral é altamente desejável para os proprietários, gestores demais funcionários das empresas em dificuldades, mas do ponto de vista do modo de produção capitalista, a falência empresarial significa destruição de capital o que, por sua vez, significa o arrefecimento da competição. Um mercado menos competitivo permite que as empresas obtenham taxas de lucro mais elevadas, além disso, empresas em processo de falência são facilmente adquiridas por empresas saudáveis, o que também é um importante impulso para a lucratividade (ganhos de escala, redução de custos, etc.).
Desse modo, diante da incapacidade dos gestores políticos em recuperar a lucratividade, restou-lhes apenas ampliar a liberalização do sistema financeiro e dar asas para a imaginação dos gestores econômicos do capital, os quais prontamente criaram uma miríade de novas atividades especulativas (ver Dowbor, 2015).     
Posto esses elementos, podemos retornar a pergunta que embasa esse texto: quais os limites da crítica ao capital rentista? Os limites estão postos ao depositar no rentismo o problema a ser enfrentado, enquanto, na realidade, ele é apenas o resultado – ou uma derivação - da crise de lucratividade que aflige o modo de produção capitalista. Impedir que empresas não financeiras sigam criando subsidiárias no setor financeiro, que os bancos acumulem lucros exorbitantes, etc., por si só, não indica a possibilidade de recuperação da lucratividade da economia como um todo. Portanto, a critica ao rentismo, por si só, não indica nem um caminho de recuperação dentro dos limites do modo de produção capitalista, nem fora dele.  

Referências

BRENNER, Robert. The economics of global turbulence: the advanced capitalist economies from long boom to long downturn, 1945-2005. Verso, 2006.

CHESNAIS, François. Finance capital today: corporations and banks in the lasting global slump. Brill, 2016.

CHESNAIS, F. Mundialização: o capital financeiro no comando. Tradução de Ruy Braga. 5. ed. Revista Outubro. 2001. Disponível em: <http://outubrorevista.com.br/wp-content/uploads/2015/02/Revista-Outubro-Edic%CC%A7a%CC%83o-5-Artigo-02.pdf>. Acesso em 14 de agosto de 2017.

______. O capital portador de juros: acumulação, internacionalização, efeitos econômicos e políticos. In: Chesnais, F. (Org.). A finança mundializada. São Paulo: Boitempo, 2005.

______. Teoria do regime de acumulação financeirizado: conteúdo, alcance e interrogações. Tradução do francês e revisão técnica por Catherine Marie Mathieu (FACAMP – Campinas) e Adriana Nunes Ferreira (FACAMP – Campinas), Economia e Sociedade, Campinas, v.11, n.1 (18), p. 1-44, jan./jun. 2002.

DOWBOR, Ladislau. O pão nosso de cada dia: processos produtivos no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2015.

DUMÉNIL, Gérard; LÉVY, Dominique. A crise do neoliberalismo. São Paulo: Boitempo, 2014.

HUSSON, Michel. A Systemic Crisis, Both Global and Long-Lasting. 2008. Disponível em: <tinyurl.com/6bk2c29>. Acesso em 22 de agosto de 2017.

KLIMAN, Andrew. A Grande Recessão e a teoria da crise de Marx. Tradução de Patrick Galba de Paula. 24. ed. Revista Outubro. 2015. Disponível em: <http://outubrorevista.com.br/a-grande-recessao-e-a-teoria-da-crise-de-marx/>. Acesso em 28 de outubro de 2017.

LAPAVITSAS, Costas. El capital financiarizado: expansión y crisis. Tradução de Diego Guerrero. 1. ed. Madri: Maia Ediciones, 2009.

MARX, Karl. Marx’s Economic Manuscript of 1864–1865. Boston: Brill, 2016.

ROBERTS, Michael.  The long depression. Chicago: Haymarket Books, 2016.

SOARES, Fabrício Pereira. Os debates sobre a Educação Financeira em um contexto de financeirização da vida doméstica, desigualdade e exclusão financeira. 2017. 302 f. Tese (Doutorado) – PUC-Rio/Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 2017.


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Wesley Sousa

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