por Prabhat Patnaik –
economista e cientista político indiano
Artigo extraído da
página Café
Socialista
O facto de que os efeitos
socioeconómicos das mudanças tecnológicas dependem das relações de propriedade
dentro das quais tais mudanças ocorrem é óbvio, porém frequentemente passa
despercebido.
Consideremos um exemplo
simples. Suponhamos que em uma certa área cem trabalhadores tenham sido
contratados para a realizar a colheita ao custo total de 5.000R$; entretanto, o
proprietário capitalista decide-se a utilizar uma colheitadeira mecânica em lugar
do trabalho manual. Desta forma, o ingresso dos trabalhadores reduzir-se-á em
5.000R$. O proprietário capitalista reduzirá sua folha salarial em 5.000R$, que
se agregarão ao lucro que auferir. Suponha, no entanto, que a colheitadeira
fosse agora propriedade de um colectivo de trabalhadores agrícolas. Eles
poderão receber as mesmas Rs 5.000, não mais como trabalhadores, mas sim como
proprietários colectivos da colheitadeira; o que viessem a perder em salários
seria recuperado como receita pelo uso da colheitadeira. Seu ingresso total
permaneceria inalterado, enquanto o tempo de descanso se tornaria maior e o
trabalho penoso se reduziria.
A utilização da colheitadeira
desloca trabalho vivo em ambas as instâncias; mas a sua propriedade faz
diferença crucial para as implicações socioeconómicas do seu uso. A
substituição do trabalho vivo por trabalho morto, engendrada por esta mudança
tecnológica, tem o efeito de empobrecer os trabalhadores quando ocorre sob a
égide do proprietário capitalista; mas tem o efeito de libertar os
trabalhadores do trabalho penoso sem afetar-lhes os rendimentos, quando ocorre
num colectivo de trabalhadores, que opera sob a ética da divisão do trabalho e
da partilha dos resultados.
O exemplo acima é
microeconómico. Mas a conclusão permanece inteiramente válida quando adoptamos
uma perspectiva macroeconómica, isto é, quando comparamos a mudança tecnológica
sob o capitalismo e sob o socialismo, que é um sistema imbuído da ética da
divisão do trabalho e partilha dos resultados.
Suponha que a produtividade do
trabalho dobre com a introdução de uma determinada mudança tecnológica dentro
de um arranjo capitalista. Antes, 100 trabalhadores eram capazes de produzir
100 unidades de produto, das quais 50 eram pagas como salários e as outras 50 compunham
o lucro do capitalista. Agora, apenas 50 trabalhadores são necessários para
produzir as mesmas 100 unidades de produto; os outros 50 serão, portanto,
despedidos. Devido a este desemprego, os salários reais dos trabalhadores que
permanecem empregados não podem subir à medida que a produtividade sobe; na
verdade provavelmente cairão, mas para simplificar assumiremos que permanecerão
iguais. A duplicação da produtividade do trabalho irá assim reduzir a parcela
dos salários de 50 para 25, enquanto o excedente dos capitalistas se elevará de
50 para 75.
Este “deslocamento dos
salários para os lucros” criará um problema de demanda agregada (uma vez que
mais salários do que lucros desaparecem), dado que o excedente produzido de 75
pode não se “realizar” (isto é, o produto correspondente pode não ser vendido
[NT]). Neste caso, haverá uma crise de “superprodução” e mesmo o output de 100
não mais será produzido. Assim, o desemprego será ainda maior, isto é, o
desemprego adicional causado pela mudança tecnológica não será somente de 50, e
sim maior.
Por contraste, uma vez que
numa economia socialista não se apresenta a questão do desemprego involuntário
(pessoas a procurar por trabalho nas condições prevalecentes num dado momento),
a duplicação da produtividade do trabalho terá ou o efeito de dobrar o output
total para 200 enquanto se mantém o emprego em 100 e o rendimento recebido por
trabalhador dobrará (e isto, sem dúvida, teria de ocorrer durante um certo
período de tempo durante o qual o estoque de equipamento teria de dobrar); ou o
efeito de manter o output em 100, como antes, porém a reduzir pela metade o
input-trabalho de cada trabalhador, que passaria a ter maior tempo de lazer com
o mesmo salário; ou mesmo de uma combinação das duas possibilidades, isto é, um
aumento combinado de salários e do tempo de lazer para os trabalhadores.
Num dos casos – o do
capitalismo – a mudança tecnológica provoca o empobrecimento absoluto (com o
rendimento dos trabalhadores a cair de 50 para 25 e até menos), enquanto no
outro caso a mesma mudança tecnológica melhora a condição dos trabalhadores. E
isto acontece devido à lógica operativa dos dois sistemas, e não por nenhuma
malevolência particular de um em oposição ao outro.
Muitas pessoas, hoje em dia,
expressam preocupação com o desemprego que poderá surgir devido à automação que
já ocorre nos processos de produção. Esta preocupação é perfeitamente
justificável sob o capitalismo; mas estaria completamente fora de lugar sob o
socialismo. Na verdade, tal automação constitui uma razão particularmente
poderosa para que a Humanidade abrace o socialismo. Se queremos evitar as
tenebrosas consequências da automação, não há alternativa ao socialismo.
A lógica do capitalismo não
somente traz a reboque a mudança tecnológica, que desloca trabalho vivo e
consequentemente possui o efeito de empobrecer e desempregar a força de
trabalho, como também o facto de que tal mudança tecnológica ocorre a uma taxa
que não pode ser controlada e é ditada exclusivamente pela competição entre
capitais no mercado. E isto tem implicações importantes para nossa própria
economia.
Frequentemente ouvimos líderes políticos e ministros a exortar o país a elevar
a produtividade do trabalho de modo a que este permaneça competitivo no mercado
mundial. E eles estão certos à medida que, sob o capitalismo neoliberal, em que
a economia é aberta à competição estrangeira, não permanecer competitivo pode
ter sérias consequências. Mas o que se omite é que, quanto maior a taxa de
crescimento da produtividade do trabalho, tanto maior, para qualquer taxa dada
de crescimento, será a escala do desemprego e da pobreza naquela economia. Se a
taxa de crescimento da economia for de, digamos, 8%, então um crescimento de 7%
na produtividade do trabalho expandirá o emprego à taxa de 1% ao ano, enquanto
uma taxa de crescimento de 5% na produtividade significará uma expansão de 3%
ao ano no emprego.
Pode-se pensar que se a
produtividade do trabalho crescesse rapidamente então o produto em si também
cresceria, de modo a que o emprego não fosse uma preocupação; porém, de
qualquer modo há limites à taxa de crescimento do produto, especialmente numa
economia aberta cujo dinamismo depende da taxa de crescimento das exportações
líquidas. Isto é assim porque os demais países não irão simplesmente se sentar
e assistir aos próprios mercados serem ocupados por uma economia em crescimento
rápido. Eles retaliariam de formas diversas, de modo a restringir o crescimento
das exportações daquele país em particular, e assim limitariam o seu desempenho
económico.
Assim, mesmo que o crescimento
do produto seja alto, esta taxa de crescimento terá de se manter dentro de
certos limites. A alta taxa de crescimento da produtividade do trabalho que
tipicamente ocorre devido à competição no mercado mundial num universo neoliberal
frequentemente acaba por assegurar que a taxa de crescimento do emprego seja
insuficiente para prevenir uma elevação do desemprego e da pobreza.
Uma comparação entre a
economia indiana sob o neoliberalismo e sob o planeamento económico é instrutiva
dentro deste contexto. No período neoliberal, enquanto a taxa de crescimento do
PIB aparentemente se acelerou para 7% ao ano e até mais, a taxa de crescimento
do emprego foi de apenas 1%, enquanto sob a era do planeamento a taxa de
crescimento do PIB era cerca da metade da taxa actual, isto é, cerca de 3,5% ao
ano, mas a taxa de crescimento do emprego era o dobro da do período actual, ou
seja, 2% ao ano.
A taxa de crescimento do
emprego sob o neoliberalismo é inferior até mesmo ao crescimento natural da
força de trabalho. Isto é obviamente muito menor do que o crescimento da força
de trabalho quando incluímos os camponeses deslocados e pequenos produtores
trazidos ao desespero pelo ritmo fortemente acelerado do processo de
“acumulação primitiva de capital” desencadeado pelo neoliberalismo e que
procuram por trabalho fora de suas ocupações tradicionais.
Não surpreende que sob o
neoliberalismo, muito ao invés dum ajustamento do mercado de trabalho,
precisamente o oposto tenha acontecido: o tamanho relativo das reservas de
trabalho [exército industrial de reserva, NT] tenha se expandido fortemente, o
que contribui para uma piora absoluta das condições de vida, não somente
daqueles que pertencem directamente a tais reservas, como também daqueles que,
mesmo em actividade, perdem poder de barganha, graças ao inchaço das reservas.
A elevação galopante da
desigualdade de rendimento e riqueza na era neoliberal, que é um facto
absolutamente inegável, é o resultado directo de tudo isto. Assim também é o
crescimento absoluto da “pobreza”, que o governo assiduamente nega, mas que é
igualmente incontestável mesmo quando a “pobreza” é definida por critérios do
próprio governo, que utiliza padrões nutricionais.
A razão para a diferença entre
o período de planeamento económico e a época neoliberal reside no facto de que
durante o período anterior havia certas restrições à taxa de mudança
tecnológico-estrutural, assim como sobre a magnitude das quebras de preços às
quais os camponeses estavam sujeitos (e que são uma importante causa de suas
dívidas e empobrecimento actuais). Um exemplo óbvio da situação anterior era a
reserva de mercado para tecelagem manual, assim como um óbvio exemplo da
situação actual é o isolamento dos preços agrícolas domésticos das violentas
flutuações do mercado mundial através de tarifas, restrições quantitativas ao
comércio, compras de grãos pela FCI(1) e intervenções no mercado feitas por
várias câmaras de commodities no caso de produtos comerciais agrícolas.
O neoliberalismo remove todas
estas restrições e restaura a “espontaneidade” do capitalismo, incluindo-se aí
a introdução das mudanças tecnológicas. Não surpreende, portanto, que a
perspectiva de que o capitalismo esteja perpetuamente aberto à mudança
tecnológica, a abrir espaço para o crescimento relativo das reservas de
trabalho e, portanto, do empobrecimento, tenha já se manifestado em nossa
economia.