Mises: o “economista” de ideal racista e aristocrático




Por André Guimarães Augusto (confira artigo completo com referências)

Extraído do site Crítica Ontológica

Data 16 de fevereiro de 2019.

Von Mises admite que o liberalismo clássico fundava-se na igualdade natural de todos os homens; as desigualdades seriam fruto das condições sociais. Esse argumento do liberalis­mo clássico encontra-se em Adam Smith, por exemplo. Ao tratar da divisão do trabalho, Smi­th admite que todos os homens têm as mesmas capacidades e que não há diferença natural en­tre um filósofo e um carregador. Smith recorre à comparação entre pessoas antes e depois da idade de trabalhar e entre países com divisão do trabalho pouco desenvolvida e mais desenvolvi­da para validar sua afirmação de que as diferen­ças de capacidades são causadas pela divisão do trabalho (Smith, 1985, p. 483).

Von Mises afirma que os homens são natural­mente desiguais e que, mesmo entre irmãos, há desigualdade de capacidades físicas e mentais (von Mises, 1985, p. 27). Afirma também o cará­ter hierárquico dessa diferença, sentenciando que a partir da desigualdade natural, “Podemos – sem nenhum juízo de valor – distinguir entre homens superiores e inferiores” (von Mises, 1990a, p. 21). Note-se a falácia no argumento de von Mises, uma vez que as diferenças entre indivíduos ou grupos humanos não implica necessariamente a superioridade in toto de uns sobre outros. Para deduzir a suposta superiori­dade das diferenças, von Mises inclui um juízo de valor implícito.

Não é possível inferir essa desigualdade do con­ceito formal de ação de von Mises. Além disso, ao contrário de Smith, von Mises não apresenta evidências empíricas capazes de comprovar sua afirmação. Sendo uma diferença natural, isso seria violar seus princípios, pois se refere ao mundo da matéria. Se há desigualdade natural em capacidades mentais, isso significaria admi­tir um efeito causal da matéria sobre a mente imaterial.

A aparente contradição entre a negação ab­soluta do materialismo e a explicação das diferenças naturais dos homens com base em “fatos biológicos” pode ser entendida como um resultado de comprometimentos ontológicos de natureza religiosa sem uma teologia. Sem uma teologia, não se pode apelar para a providên­cia divina para justificar a existência de uma predestinação dos indivíduos. Tal predestinação é incompatível também com a proclamação da livre escolha movida pela vontade não causada. Assim, resta apenas a violação de um princípio epistemológico para manter um compromisso ontológico.

Von Mises mobiliza explicitamente o argu­mento da causa biológica em sua defesa da desigualdade natural dos homens (von Mises, 2007, p. 327-328). Deste modo, afirma sobre os indivíduos que “as capacidades mentais que circunscrevem as potencialidades de seus atos mentais e de sua personalidade” são herdadas de seus pais, e que “há uma correlação entre a estrutura corporal e as características mentais” (ibidem). Von Mises fundamenta a diferença en­tre “o gênio e o idiota” nos “fatos da biologia e da história” (ibidem, p. 331). Mas, como veremos a seguir, “os fatos da biologia” são descartados pelo autor austríaco com base no ceticismo epistemológico.

Para justificar com os “fatos da biologia” a di­ferença natural dos homens, von Mises assume uma teoria biológica das “raças”. Afirma que “a espécie humana é subdividida em grupos raciais com distintas caraterísticas biológicas hereditárias. A experiência histórica não impe­de o pressuposto de que alguns grupos raciais são mais bem-dotados que outras raças para conceber ideias mais sensatas” (ibidem, p. 161).

Von Mises assevera que é possível conceber que determinadas “raças” possam alcançar o nível cultural de outras pelo processo de evolução biológica (ibidem). Mas a evolução biológica das “raças” dar-se-ia em uma direção pré-determi­nada para o nível alcançado pelas “raças” que produziram “ideias mais sensatas” e que foram “mais bem-sucedidas que outras na busca das finalidades de todos os homens” (ibidem, p. 333). Deste modo, von Mises afirma que “a moder­na civilização é um feito dos homens brancos” (ibidem, p. 334). Cabe assinalar que esse é mais um aspecto do caráter teleológico da teoria da história de von Mises.

Mas von Mises sustenta que a teoria “racial” biológica e a superioridade da “raça branca” no atual momento da história não justificam as doutrinas políticas racistas (ibidem). Não have­ria, segundo ele, como garantir que a suposta superioridade da “raça branca” permanecerá no futuro, pois isso só seria garantido por uma descoberta biológica “de características anatô­micas dos membros das raças não-caucasianas que contivessem naturalmente suas faculdades mentais”, o que segundo ele não teria aconteci­do até aquele momento (ibidem, p. 336).

Von Mises, no entanto, afirma que não é seu objeto na discussão da história “a análise dos problemas controversos da pureza racial e da miscigenação”, nem “investigar os méritos do programa político do racismo” (ibidem). Dessa forma, embora assumindo o racismo biológico como um dado a priori, posto que não calcado em qualquer evidência além de afirmações va­gas, von Mises livra-se de ter que fundamentar sua teoria da história na biologia.

Apesar de descartar as políticas racistas como consequência de sua teoria da história, ao admitir o racismo biológico como ponto de partida, von Mises afirma, no mínimo, a compatibili­dade de sua teoria da história com as políticas racistas. Se a teoria da história de von Mises não deve se pronunciar sobre tais pressupostos biológicos, se o mundo da mente humana é separado do mundo material no qual se in­cluem os fatos biológicos e se, de acordo com von Mises, a história afirma a “superioridade da raça branca”, resta apenas uma teoria racista da história no autor. Livre dos fatos biológicos, os “fatos da história”, segundo von Mises, corroboram que “até o momento” se estabeleceu a “superioridade da raça branca”.

Ao colocar de forma cética o argumento do racismo biológico e ao mesmo tempo afirmar a superioridade de uma suposta “raça” sobre as outras na história, a refutação da teoria das raças pela biologia – algo já estabelecido hoje – não levaria à negação de políticas racistas. Sob esse aspecto, o racismo contido na teoria de von Mises revela-se ainda mais profundo e pernicio­so que o racismo biológico. O racismo cultural, característico da extrema direita contemporânea, é uma conclusão implícita no argumento de von Mises.

A manutenção da civilização capitalista, que seria um feito da “raça branca” segundo von Mises, implicaria políticas racistas que con­tivessem os “não-caucasianos” que “odeiam e desprezam o homem branco”, que “planejam sua destruição e se comprazem no orgulho extravagante de sua civilização” (ibidem, p. 332). Tais afirmações de von Mises, em que pese sua recusa em se pronunciar sobre políticas racistas, não deixam de ser uma defesa implícita de tais políticas.

O racismo é apenas a faceta mais repugnante do argumento aristocrático de von Mises. A defesa das diferenças naturais e da superioridade de alguns em relação a outros estende-se da relação entre as supostas “raças” para a relação entre governantes e governados na política e entre indivíduos na economia.

Segundo von Mises, a defesa Iluminista da democracia baseava-se na defesa da superio­ridade intelectual e moral do povo frente aos monarcas e à aristocracia. (von Mises, 1985, p. 42) Von Mises vê na defesa da democracia pelo liberalismo antigo um equívoco, pois “o povo é a soma de todos os cidadãos individuais; e se alguns indivíduos não são inteligentes e nobres, então todos juntos também não o são” (ibidem). Com base nisso, von Mises defende a democra­cia como “o governo dos melhores”, ainda que os melhores aqui sejam aqueles capazes de con­vencer os outros de que são qualificados para governar. (ibidem, p. 42-43)

Outra diferença apontada por von Mises entre o liberalismo clássico e o neoliberalismo é a concepção da evolução histórica. O liberalismo clássico acreditava em uma evolução progressiva, iluminada pela razão e pelo conhecimento, que levaria a sociedade a se conformar aos prin­cípios do liberalismo, supostamente naturais e derivados da razão. (ibidem, p. 157) O liberalis­mo clássico defendia essa progressão da aplica­ção de seus princípios com base na igualdade natural das capacidades intelectuais de todos. (ibidem)

Aqui o argumento da desigualdade natural é mobilizado por von Mises para contrapor-se ao argumento do liberalismo clássico, afirmando que “as massas carecem da capacidade de pen­sar logicamente” (ibidem). Von Mises acrescenta que o programa do liberalismo não poderia se realizar por uma evolução natural, porque mesmo que a sua suposta racionalidade fosse reconhecida, “os ganhos momentâneos” decor­rentes de “vantagens especiais” pareceriam mais importantes que os “ganhos maiores e duradou­ros que devem ser adiados” (ibidem). Von Mises atribui isso à falta de “força de vontade”, que, ao lado da “incapacidade intelectual da maioria das pessoas” (ibidem), as impediria de suporta­rem o “sacrifício provisório que toda ação social demanda” (ibidem, p. 158).

Claro está que se alguns são naturalmente mais capazes que outros, alguns são predestinados a governar. Mas a democracia política liberal é um incômodo para o argumento aristocráti­co. Os “melhores” devem convencer as massas “intelectualmente incapazes” de que são os melhores. Tal tarefa inglória das pobres elites estaria sempre fadada ao fracasso pela ignorân­cia “natural” das massas. A democracia política liberal nunca é uma democracia perfeita em um argumento aristocrático. A democracia perfeita para as elites deve ser buscada em outro lugar e não na política. É na economia neoliberal que o governo dos supostamente melhores poderia se dar sem amarras.

Von Mises defende a desigualdade da pro­priedade como a única forma de aumentar o produto e o bem-estar material. Deste modo, a manutenção da propriedade privada não repre­sentaria a manutenção de um privilégio, argu­menta von Mises, mas “uma instituição social para o bem e o benefício de todos, mesmo que esta seja especialmente agradável e vantajosa para alguns” (ibidem, p. 30). Ou seja, a desi­gualdade beneficiaria a todos, mas beneficiaria mais alguns do que outros. Sendo natural, essa desigualdade não constituiria um privilégio, mas uma predestinação.

A mesma lógica de argumentação se dá em relação à desigualdade na distribuição da renda. Novamente, o argumento é subordinado à eficiência econômica, entendida no sentido de proporcionar o crescimento do produto (ibidem, p. 31). Von Mises vai mais longe nesse ponto, ao defender o consumo de luxo como um indutor de inovações tecnológicas e, portanto, do cresci­mento econômico (ibidem, p. 32). Deste modo, von Mises está mais próximo de Malthus na defesa da necessidade econômica da aristocra­cia e distante das advertências do liberal Adam Smith contra a prodigalidade dos ricos.

De acordo com von Mises, a origem da de­sigualdade econômica está na desigualdade natural. Alguns se beneficiam mais da proprie­dade privada que outros, têm uma renda maior que outros e consomem bens de luxo por serem naturalmente mais capacitados que outros. São predestinados pela natureza a serem proprie­tários e ricos. O argumento de von Mises com relação à origem natural da desigualdade eco­nômica, no entanto, é ocultado pela aparente defesa da soberania do consumidor.

Von Mises afirma que na economia de mercado são os consumidores que selecionam os vence­dores no mercado. Os lucros “derivam sempre de uma correta previsão da situação futura” (von Mises, 1990, p. 928-929); portanto aqueles que conseguem se manter como proprietários são os naturalmente mais bem-dotados em suas capacidades mentais. Mas estes estariam subor­dinados à vontade dos consumidores. Von Mises afirma que “é o consumidor que faz algumas pessoas ricas e outras pobres” (von Mises, 1990a, p. 50), e os que obtêm lucros são os que “estão em condições de atender as necessidades mais urgentes do público” (von Mises, 1990, p. 927).

Tal capacidade de “atender as necessidades” do público, sendo oriunda de uma desigualdade natural, não pode ser atribuída ao mérito, mas a uma predestinação. Em segundo lugar, os em­preendedores parecem fugir do conceito formal de ação como livre exercício da vontade, pois suas vontades são determinadas pelo público, identificado por von Mises com os consumido­res. Assim, von Mises, em um artifício de retóri­ca, coloca aparentemente os empreendedores não como homens que exercem a sua vontade autodeterminada, mas como subordinados a um mestre, à massa dos consumidores. (von Mises, 1990a, p. 22)

Os artifícios de retórica para a apologia do neoliberalismo não são capazes de ocultar o argumento aristocrático de von Mises. Apa­rentemente, uma economia de mercado seria uma democracia governada pelas massas. A democracia de mercado, afirma von Mises, é “aquela em que cada centavo significa um voto” (ibidem, p. 81). Como os empreendedores que detêm a propriedade dos meios de produção e têm uma renda maior também são consumido­res, a retórica da soberania do consumidor é a retórica de um populismo elitista.5 Aqueles que são predestinados por sua maior capacidade na­tural de antecipar os desejos dos consumidores têm um “voto” de maior peso na “democracia do mercado”. A democracia do mercado é uma democracia aristocrática, um oximoro.

O populismo elitista de von Mises no que se refere à “democracia do mercado” é explicitado quando confrontado com a afirmação de que “as massas carecem da capacidade de pensar logicamente” (von Mises, 1985, p. 157). Sendo co­erente com os argumentos de von Mises, como os consumidores são a massa da economia, estes careceriam de tal capacidade e, portanto, uma economia de mercado em que os consumi­dores são os mestres seria irracional. O argu­mento aristocrático da superioridade natural das elites, portanto, deve “corrigir” a soberania das massas. Von Mises afirma que os “consu­midores como seres humanos são dados ao erro” (von Mises, 1990a, p. 28) e “é dever da elite induzi-los a alterar seu modo de vida ‘volunta­riamente’” (ibidem).

Mais a elite econômica é formada pelos em­preendedores, cujo voto no mercado tem maior peso. Assim, quem deve ensinar as massas dos consumidores qual deve ser o modo de vida cor­reto são os empreendedores – ou seja, os capi­talistas. Obviamente, a vontade das massas dos consumidores nesse caso não é autodetermina­da, mas induzida. Sua liberdade é a liberdade de ser manipulado pelas elites. Não há dúvida sobre quem é o “mestre” e “soberano” na econo­mia de mercado.

Von Mises mobiliza aqui o argumento de Pareto de que no capitalismo as elites estão em con­tínua mudança. (von Mises, 2009, p. 34) No entanto, se as desigualdades de capacidades são naturais, a mudança contínua dos indiví­duos que compõem as elites só pode se dar no restrito limite dos naturalmente predestinados a fazer parte da elite.

Com o argumento da circulação das elites, von Mises avança o argumento do caráter merito­crático do capitalismo. Cada um só pode “cul­par a si mesmo” se não chega à elite. (ibidem, p. 35) Mas sendo as capacidades humanas natu­ralmente diferentes e hierárquicas, segundo o próprio autor, ninguém poderia culpar a si mes­mo pelas dotações que a natureza lhe deu. O argumento meritocrático só ganha coerência se for tido como uma “lição” das elites superiores sobre o “modo de vida” das massas inferiores, isto é, a aceitação “voluntariamente induzida” de sua condição material inferior.

O argumento aristocrático dá sentido a pontos aparentemente obscuros da teoria da história de von Mises. As “boas ideias” tornam-se ideolo­gia quando a elite predestinada pela natureza cumpre o seu dever de “induzir as massas a alterar voluntariamente seu modo de vida” (von Mises, 1990a, p. 28). Embora von Mises afirme uma raiz biológica para a superioridade na­tural das elites, não é um mecanismo análogo ao biológico que define o caminho da história. O mecanismo que explica o desenvolvimento histórico para von Mises é de natureza religiosa e aristocrática. Sem uma teologia não é mais o Ser espiritual superior que guia a história na direção definida por sua vontade, mas a elite composta pelos homens naturalmente “superio­res” que o fazem.

A teoria formal da ação ganha assim um conteúdo preciso e definido com o argumento aristocrático de von Mises. A vontade da elite predestinada é autodeterminada. As massas de­vem se contentar em mudar seu modo de vida “voluntariamente” induzidos pela elite; caso as massas persistam na ignorância, só resta às elites induzirem coercitivamente a mudança em seu modo de vida. Um comportamento voluntá­rio induzido não é um comportamento auto­determinado, mas a vontade das massas tem como causa a vontade das elites. No liberalismo de von Mises, apenas as elites têm sua vontade autodeterminada, apenas elas são livres. Sua defesa da liberdade é a defesa da liberdade de alguns induzirem a vontade de outros, pela coerção física quando necessário.

O argumento aristocrático de von Mises é com­pletamente compatível com uma ditadura de elite, mesmo que essa deva se manter somente durante o “tempo necessário” para mudar o pensamento “das massas” (von Mises, 1985, p. 45). Cabe observar que a defesa que von Mises faz de uma “ditadura temporária de elite” não é apenas teórica. Em 1934, von Mises tornou­-se membro da Frente Patriótica austríaca, com a carteira número 28632 (Hülsmann, 2007, p. 677, n. 149). A Frente Patriótica foi estabelecida como partido único da Áustria pelo chance­ler Engelbert Dollfuss, chanceler da Áustria em 1933, após se aliar à Itália então governada pelo partido fascista de Mussolini, dissolver o parlamento e governar com bases em leis emer­genciais; ou seja, após estabelecer uma ditadura temporária de elite.
Wesley Sousa

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