Por Gustavo Lopes Machado – doutorando em Filosofia pela UFMG
Artigo publicado originalmente no site Esquerda Online
Popularizou-se
no século XX a ideia do capitalismo como uma “sociedade de consumo”. Esta
concepção, completamente ausente em Marx, apesar de comumente atribuída à ele,
mostrou ter longo alcance, estando presente nas elaborações de uma grande gama
de autores que vai deste os pais fundadores da Escola de Frankfurt, Adorno e
Horkheimer, passando por Hannah Arendt até autores mais recentes como Fredric
Jameson e Zygmunt Bauman. De fato, nada parece mais coerente do que o
capitalismo considerado como e enquanto uma sociedade de consumo, afinal, a
irrefreável marcha do capital rumo a uma maior valorização faz multiplicar, dia
a pós dia, a quantidade e diversidade de mercadorias com as quais nos
defrontamos e, no mais das vezes, estas se inserem em nosso cotidiano como uma
necessidade que não mais é possível evitar.
Apesar
deste fato óbvio, sustentamos que tal concepção é apenas superficial e,
enquanto tal, falsa e enganosa. Tal ilusão, de que vivemos na sociedade de
consumo, é produzida, antes de mais nada, em função das relações sociais
efetivas entre os indivíduos na forma social capitalista estarem veladas sob a
forma rude e natural das mercadorias e do dinheiro e, por este motivo, o que
vemos diretamente é apenas a ampliação quantitativa e qualitativa das mercadorias
consideradas em si mesmas, abstraindo o processo social que as fizeram emergir.
Vejamos a questão mais de perto.
Em O Capital, Marx coloca o consumo
como a realização do valor de uso das mercadorias. Apesar da mercadoria possuir
um valor de uso pelo simples fato de satisfazer uma necessidade humana de
qualquer tipo, possibilidade de satisfação que está dada em sua própria
corporalidade, em sua forma natural; a realização deste valor de uso está dada
em seu consumo, ato este que é posterior a sua troca, ou seja, a realização do
valor de troca. Isto significa que se o valor de troca não se realizar fica
também sem realizar o seu valor de uso. Enquanto mercadoria, para atingir a
esfera do consumo é necessário, antes, superar a esfera das trocas.
Já neste
momento abstrato da exposição de O
Capital, o consumo aparece como subordinado a esfera das trocas,
ainda que o valor de uso seja o suporte material do valor de troca sob a forma
capital e o conteúdo material da riqueza em toda e qualquer forma de sociedade.
Mais adiante, Marx analisa a fórmula da circulação simples de mercadorias:
M-D-M (mercadoria-dinheiro-mercadoria). Nesta fórmula, o dinheiro aparece como
mero mediador do processo, meio circulante, e sua finalidade é o valor de uso,
isto é, a forma M-D-M tem por objetivo final o consumo e seu limite é a
satisfação das necessidades dos consumidores e o valor de uso. Por este motivo,
esta forma será sintetizada por Marx como: vender para comprar. Mas a forma
M-D-M é apenas um momento abstrato e superficial das relações sociais
capitalistas, visível na esfera da troca de mercadorias. Por este motivo, Marx
passa a analisar a forma D-M-D’ que traz consigo a especificidade do processo
de troca de mercadorias sob a forma capital, por este motivo, esta fórmula é
designada de forma geral do capital.
Na
fórmula geral do capital podem ser observadas transformações fundamentais. A
mercadoria é comprada para ser revendida e não mais para satisfazer uma
necessidade individual. O dinheiro não funciona mais exclusivamente como moeda,
mas como forma universal da riqueza, ou seja, é colocado na circulação pelo seu
proprietário para dele se apoderar novamente. O que impele a realização deste
circuito não é mais o valor de uso, mas o valor de troca. Neste caminho,
valorizar o valor infinitamente se torna a finalidade absoluta. Em suma, a
satisfação das necessidades de consumo e o valor de uso transmutam-se em meros
meios deste movimento insaciável de auto-valorização.
É
evidente que o valor de uso e a realização de necessidades humanas,
historicamente constituídas, através do consumo não são literalmente jogadas
para fora no modo de produção capitalista. O que diferencia esta forma social
de todas as anteriores é que agora a produção de valores de uso não é mais
subordinada pelas necessidades humanas, mas a valorização do valor. Em todas
relações sociais anteriores ao capital predomina a produção voltada para o uso
imediato dos produtos do trabalho, ou seja, o que rege a produção é o valor de
uso e a prestação de serviços em espécie. Não sem razão, Marx constata que
“nunca encontramos entre os antigos uma investigação sobre qual forma de
propriedade da terra, etc., é a mais produtiva, qual cria a maior riqueza”,
pois a “riqueza não aparece como o objetivo da produção” (MARX, 2011, p. 399).
Todo esforço de investigação dos indivíduos imersos nestas formas sociais
pretéritas se centram em atributos qualitativos, quer seja dos produtos criados
pelo trabalho, enquanto valores de uso, quer seja dos indivíduos mesmos, como,
por exemplo, a reflexão recorrente no mundo greco-romano sobre qual modo de
sociedade cria os melhores cidadãos. Isto é assim, ainda que a riqueza possa
aparecer, excepcionalmente, com o fim em si mesma, como nos povos
exclusivamente mercantis “que vivem nos poros do mundo antigo”(MARX, 2011, p.
399). Neste cenário a riqueza é sempre “algo realizado em coisas, em produtos
materiais, com os quais o homem se defronta como sujeito” (MARX, 2011, p. 399).
Ou seja, a riqueza se apresenta sempre em seu aspecto material, em sua
configuração objetiva, em suas determinações concretas, diversamente da
sociedade burguesa em que esta é representada na abstrata figura do dinheiro.
Mesmo a exploração e comando sobre o trabalho alheio tem por finalidade o gozo
privado, a satisfação das necessidades dos respectivos proprietários. Mas não
somente. Nas formas sociais que precederam o capital, frente a riqueza
considerada em sua determinação material, “o homem se defronta como sujeito”.
Já diante do capital, o homem que trabalha e o próprio capitalista figuram tão
somente como um dos seus momentos. O transcurso rotineiro do processo de
acumulação de capital ocorre as costas dos produtores e o capital se manifesta
com a força de um sujeito automático. Em suma, as coisas de valor não mais se relacionam
entre si como um meio para atender as necessidades humanas, ao contrário, os
homens se relacionam entre si para atender as necessidades de valorização do
capital e, por este motivo, não mais se defronta com os produtos materiais como
sujeito, antes, como algo externo, estranho, alheio a sua vontade.
Como se
vê, para além das falsas aparências que emergem da esfera da circulação simples
de mercadorias quando esta é autonomizada, todas as formas sociais que
precederam ao capital é que podem ser chamadas de sociedade de consumo. Por
outro lado, nada mais falso que designar o próprio capital de sociedade de
consumo. Estamos diante da sociedade da troca, do dinheiro enquanto forma
universal e autonomizada da riqueza, regida pela sua acumulação de capital
através da extração de mais-valia. De fato, em nenhum outro momento da história
humana o consumo foi tão pouco valorizado como nos dias de hoje. A enorme
maioria dos indivíduos se satisfaz ao comprar esta ou aquela mercadoria e o
fetiche se esvai assim que esta é adquirida. Nos Estados Unidos, por exemplo, a
pátria do “consumo”, é comum relatos de casas cujas garagens são abarrotadas de
mercadorias compradas e jamais consumidas. O sonho que povoa o imaginário da
quase totalidade das pessoas sob esta forma social, capitalistas ou
trabalhadores, não é a posse e usufruto de nenhum bem em particular, mas a
quantidade de dígitos de seu extrato bancário.
Riqueza e gozo na Idade Média
Ilustramos
esta diferença entre as sociedades do passado, sociedades de consumo, e a
sociedade presente, sociedade da acumulação, com o clássico livro O Declínio da Idade Média de
Johan Huizinga. Nesta obra, o leitor desavisado é tomado pelo espanto ao se
deparar com o profundo contraste do mundo medieval frente ao moderno. Paradoxalmente,
na idade dita obscura, as coisas e pessoas são consideradas em conformidade com
suas propriedades imanentes, ainda que parcialmente obscurecidas pelo
cristianismo. Neste cenário, o “contraste entre o sofrimento e a alegria, entre
a adversidade e a felicidade, aparecia mais forte. Todas as experiências tinham
ainda para os homens o caráter direto e absoluto do prazer e da dor na vida
infantil” (HUIZINGA, 1996, p. 9). Distante da indiferença generalizada para com
tudo e todos, qualquer “conhecimento, qualquer ação, estavam ainda integrados
em formas expressivas e solenes, que os elevavam à dignidade de um ritual”
(HUIZINGA, 1996, p. 9). “Nós, hoje em dia, dificilmente compreendemos a que
ponto eram então apreciados um casaco de peles, uma boa lareira aberta, um
leito macio ou um copo de vinho” (HUIZINGA, 1996, p. 9) e, tão logo nos
defrontemos com esta situação, logo se esvai o mito de que vivemos em uma
sociedade do consumo. Diversamente, o desfrute da riqueza produzida pelo
trabalho humano nunca teve tão pouco valor frente a posse do valor de troca
universal: o dinheiro.
Em
contraposição à indiferença generalizada que verificamos em nossa sociedade
contemporânea, no mundo medieval narrado por Huizinga, os indivíduos estão
sujeitos a uma efusão de emoções, pulsões, lágrimas a partir das relações
sociais que estabelecem uns com os outros. Nas prédicas dos padres e curas, nas
execuções públicas, nas procissões, nos duelos judiciais, na eleição do papa,
nas solenidades de caráter político “as lágrimas eram então consideradas
elegantes e honrosas” (HUIZINGA, 1996, p. 14-15). “Numa época cheia de
reverência religiosa em face de toda a pompa ou solenidade, esta propensão
aceita-se como perfeitamente natural” (HUIZINGA, 1996, p. 15). Por mesquinhos e
fantasiosos que sejam o conteúdo deste estado de constante exacerbação
emocional, o certo é, que no ocaso da idade das trevas, os indivíduos ainda não
se tornaram autômatos de um sistema social que se desenvolve a suas costas.
“O poder
da riqueza é direto e primitivo; não é enfraquecido pelo mecanismo duma
automática e invisível acumulação através dos investimentos; a satisfação de
ser rico tem fundamento no luxo e na dissipação ou na bruta avareza” (HUIZINGA,
1996, p. 27-28). Isto significa que a satisfação de ser rico na Idade Média se
manifesta no desfrute e gozo dos valores de uso produzidos e não no culto da
abstrata acumulação de capital. Como se nota, à luz do fenômeno mistificador,
fetichista e obscuro do “deus” dinheiro-capital no interior das relações sociais
capitalistas, o Deus cristão medieval se mostra quase como profano.
Neste
sentido, nada pode ser mais falso que conceber a noção de consumo como motor e
motivo de sustentação da sociedade capitalista tal como a conhecemos. Este
equívoco tem outras consequências. A noção de consumo tem seus limites no indivíduo
e, por este motivo, ofusca as relações sociais que se encontram para além de
indivíduos isolados. Não é casual que o autor pós-moderno Zygmunt Bauman tenha
alterado a fórmula da sociedade de consumo pela Sociedade de Consumidores. A
análise das relações sociais objetivas entre pessoas se deslocou para o âmbito
da subjetividade dos indivíduos, em que a diferença entre necessidade e desejo
ganha a tônica da análise. Em caminho contrário à Marx, para Bauman o consumo
tem se convertido em propósito de existência (BAUMAN, 2008, p.38).
Quem
quiser empregar o termo “sociedade de consumo” para designar a especificidade
da sociedade capitalista, que o faça. Mas que se deixe claro que tal ideia é a
exata antípoda do que pensava Marx à este respeito.
Referências bibliográficas:
MARX,
K. O Capital –
Livro I. Rio de Janeiro: Boitempo Editorial, 2013.
MARX,
K. Grundrisse. Rio de
Janeiro: Boitempo Editorial, 2011.
HUIZINGA,
J. O declínio da Idade Média. Lisboa:
Ulisseia, 1996.
BAUMAN,
Zygmunt. Vida para Consumo: a
transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2008.