Abaixo a democracia! – Sérgio Lessa


Por Sérgio Lessa – professor na pós-graduação em Serviço Social na UFAL


Viva a Comuna! 

Introdução

Há uma alternativa à democracia que não seja a ditadura? É possível outra forma de organização da sociedade que não seja nem ditadura nem democracia? Há, sim! Existe sim uma outra organização social que não é nem a democracia nem a ditadura. É a Comuna.

O falso dilema democracia ou ditadura

Ditadura ou democracia, quem sempre domina é a burguesia, são os capitalistas. Ditadura ou democracia, os trabalhadores sempre produzem a riqueza de seus patrões.

Além disso, muitas décadas de democracia demonstram, a todos os que querem ver, que os governos burgueses “não funcionam”. Os ricos ficam cada vez mais ricos, os pobres e as misérias aumentam; a violência não para de crescer; a educação, a saúde, o transporte pioram no mesmo ritmo acelerado em que aumentam os lucros dos capitalistas. As guerras e a destruição do planeta são o resultado necessário de uma sociedade que se organiza ao redor do lucro. A reprodução do capital é a reprodução da miséria e a destruição do planeta.

A democracia, definitivamente, "não funciona". Tal como a ditadura, também é o império do dinheiro sobre os humanos. Serve apenas para concentrar a riqueza na mão dos capitalistas.

Justificam a democracia dizendo que ela é, dos males, o menor. O pior dos mundos seria uma ditadura. Quando já não é possível justificar a democracia pelas suas virtudes, busca-se justificar a democracia argumentando ser a menos maléfica de duas alternativas ruins!! A que ponto chegou a decadência da burguesia e de sua ideologia! Restringir o nosso horizonte à falsa opção ditadura-democracia é uma das ilusões difundidas pela ideologia conservadora. Pois há uma alternativa para além da democracia e da ditadura burguesas: a Comuna.

A Comuna


A Comuna é a forma de os trabalhadores (operários e demais assalariados) exercerem o poder sobre a produção e sobre a organização de serviços necessários à vida. Isto é a primeira característica importante da Comuna: é um poder dos trabalhadores, e não um poder da burguesia.

A segunda característica importante: não é apenas uma forma de organização política, mas é principalmente uma forma de organização da produção e da distribuição dos frutos do trabalho. Com a Comuna, todos trabalham, quem não trabalha não come. Na Comuna, todos que trabalham decidem – quem não trabalha não participa das decisões. A terceira característica importante: a Comuna é a forma de organização dos trabalhadores capaz de derrotar os esforços da burguesia para voltar ao poder e restaurar a exploração dos trabalhadores.

Os princípios da Comuna

A Comuna funciona com base na autonomia e na liberdade da organização nos locais de moradia e de trabalho. Os princípios mais gerais são os seguintes:

1) Os trabalhadores se organizam em seus locais de trabalho e de moradia. Decidem, assim organizados, o que é prioritário para suas vidas. Nos locais em que trabalham, decidem como será organizada a produção, como será ordenada a jornada de trabalho, como será ordenado o controle do trabalho de cada indivíduo, como serão obtidos os equipamentos e matérias-primas necessários à produção e como o produzido será distribuído. Nos locais de moradia, decidem o que é prioritário e organizam os serviços públicos (educação, saúde, transporte, lazer, moradia etc.)

2) A Comuna funciona do modo mais democrático possível: cada um vale um voto e a maioria toma as decisões. Nela, todos trabalham. Quem não trabalha não participa das decisões.

3) As decisões que envolvem apenas recursos ou pessoas da Comuna local, decisões que não têm consequências para além da comunidade local, são encaminhadas com total autonomia pela própria comunidade.

4) Decisões cuja implementação requer recursos, materiais, pessoas de outras localidades – ou que podem afetar a vida de mais pessoas do que a comunidade local – são levadas para as Assembleias Comunais (desde as do bairro, da cidade, do Estado, do país e mesmo de todo o planeta). Lá, todos os envolvidos podem discutir o que lhes diz respeito. Tomada uma decisão, determinam-se também os recursos, as pessoas, os materiais etc. que serão destinados a implementar o que foi decidido. Por fim, avaliam-se também os resultados práticos da decisão coletiva.

5) Para as Assembleias Comunais são eleitos representantes das Comunas. Estes representantes recebem o mesmo salário que já recebem na Comuna; seu mandato dura bem pouco tempo, coisa de meses, e a Comuna que os elegeu pode revogar seus mandatos e os substituir por outros representantes, sempre que necessário. Este é um aspecto fundamental: o representante eleito tem o mesmo salário que já recebia na Comuna, deve prestar contas continuamente à Comuna que o elegeu e esta o pode substituí-lo sempre que queira. E o mandato é curto, medido em meses ou semanas.

6) Tanto a Comuna quanto as Assembleias Comunais levam à prática as decisões que tomarem: nada da separação entre o Judiciário, o Legislativo e o Executivo, como ocorre na democracia e da ditadura burguesas. A Comuna é a alternativa à ditadura e às democracias burguesas. A Comuna é o poder dos trabalhadores e proletários sobre a vida social, é a forma de os trabalhadores e proletários organizarem o poder para se libertar da opressão.

As primeiras medidas

Sempre que os trabalhadores tomaram o poder foi por uma revolução, e sempre a burguesia e seus aliados sabotaram a produção e o abastecimento e atacaram com todas as forças militares a Comuna. Isto vai ocorrer também no futuro.

Por isso, a luta contra a burguesia e seus aliados apenas pode ser vitoriosa se as medidas para combater a contrarrevolução forem também as medidas que fortaleçam o controle da produção e da vida social pelo proletariado e seus aliados. Devido a esta situação, as primeiras providências da Comuna deverão se darem dois campos: no campo da produção e no campo da resistência à contrarrevolução.

No campo da produção, as providências mais urgentes possivelmente serão as seguintes:

1) Cada Comuna deve assumir o controle de todas as unidades produtivas (indústrias, comércio, serviços como educação, saúde, transporte, segurança, coleta de lixo, energia etc.) no seu interior. Em cada unidade produtiva, duas medidas devem ser implementadas o mais rapidamente possível: colocar a trabalhar nas unidades produtivas todos os desempregados, ou que, na Comuna, podem ser rapidamente instruídos para lá trabalharem. Cada Comuna deve tomar posse e manter sob seu controle todas as reservas de matérias-primas, ferramentas, fontes de energia (postos de gasolina, linhas de transmissão elétricas etc.), alimentos, roupas, remédios etc. Os burgueses e seus aliados, antes proprietários destes bens, serão expropriados sem direto a qualquer compensação. Se quiserem comer e participar dos frutos do trabalho coletivo, deverão trabalhar como todo o mundo.

Graças à própria organização desenvolvida já pela economia burguesa, no primeiro momento se terá uma boa ideia do quanto cada unidade produtiva deverá inicialmente produzir (cada fábrica, cada escola, cada centro de saúde ou hospital, cada supermercado etc.). E, como mais pessoas trabalharão para produzir o mesmo, a jornada de trabalho poderá ser imediatamente reduzida. O importante é reduzir a jornada de trabalho de todos o mais rapidamente que for possível.

O critério para esta redução ficará a cargo da Comuna e de cada unidade produtiva. Por exemplo, uma dada Comuna pode avaliar que é mais importante alongar a licença maternidade e paternidade e, para isso, diminua menos a jornada dos solteiros ou dos pais com crianças maiores etc. A regra geral deverá ser: elevada autonomia da Comuna e dos locais de trabalho e, ainda, a imediata e maior redução possível da jornada de trabalho.

2) Providenciar moradia e alimentação para todos os membros da Comuna. Nenhum dia a mais com pessoas passando fome ou necessidades! As casas e apartamentos desocupados devem ser imediatamente ocupados por aqueles sem teto. E as condições de moradia deverão ser imediatamente melhoradas com a organização de medidas de higiene e limpeza.

3) A Comuna organizará a distribuição de bens de primeira necessidade. O critério deverá ser a contribuição do indivíduo à produção coletiva: retribuição igual para igual trabalho deverá ser o primeiro critério a ser adotado. Contudo, como veremos, apenas o primeiro e provisório critério.

4) Cada Comuna será responsável pela educação de seus membros. Decidirá como e quando ocorrerá a educação, o que será ensinado, como as crianças serão educadas. Os alunos, professores e toda a Comuna decidirão livremente como será a educação. A mesma coisa para os serviços de saúde, coleta de lixo, limpeza das ruas, manutenção das áreas comuns como parques e bosques etc. Dizíamos acima que as primeiras providências da Comuna deverão estar voltadas a dois campos. O primeiro, que já vimos, é a organização pelo proletariado e seus aliados da produção e da organização dos serviços. O segundo, que veremos agora, é a resistência contra as tentativas burguesas de destruir a Comuna.

A defesa da Comuna

Toda Comuna deve implementar a regra geral de "quem não trabalha não come, quem não participa do trabalho coletivo também não participa dos frutos do trabalho coletivo". Os burgueses farão de tudo para retomar seu privilégio de viver do trabalho dos outros. Sabotarão a produção, destruirão as reservas de alimentos e produtos de bem de primeira necessidade e empregarão a força para destruir quem se lhes opõe.

Por isso a Comuna deve, desde o primeiro momento:

5) Realizar a mais ampla campanha de ideias para mostrar aos trabalhadores que a Comuna é possível e necessária. Depois de tantos séculos vivendo explorados, mesmo muitos trabalhadores não acreditarão na possibilidade de se libertar da opressão dos patrões através da Comuna. Outros serão comprados pelo ouro da contrarrevolução. E, ainda, haverá os burgueses que lutarão até a morte contra o poder do proletariado e seus aliados. Para ganhar o apoio daqueles que ainda acreditam na democracia burguesa deverão ser feitos todos os esforços possíveis.

Ganha-se a batalha das ideias com a prática da Comuna e com as ideias revolucionárias e libertadoras. Contudo, contra os ataques armados da burguesia e seus aliados, a única alternativa é também uma resposta armada por parte da Comuna.

Se a burguesia emprega em seus exércitos trabalhadores para defender o seu poder de explorar esses mesmos trabalhadores, a Comuna coloca em campo os trabalhadores em armas, as milícias. Esta é a grande vantagem histórica da Comuna, quando se trata do campo de batalha. Os trabalhadores não possuem qualquer interesse de classe em defender o poder da burguesia e possuem todo interesse histórico em defender a Comuna. Os exércitos revolucionários, por isso têm sido, ao longo da história, muito mais eficientes no combate do que os exércitos burgueses.

As milícias deverão se conduzir militarmente, tendo a clareza de que guerra contra a contrarrevolução é ganha pela destruição do exército burguês -- tanto pela vitória das armas, como também pela vitória no campo das ideias. Em todo o confronto, devem-se explorar todas as possibilidades para mostrar aos soldados e trabalhadores que ainda apoiam a burguesia que a Comuna é possível e necessária, pois é a libertação de todos os trabalhadores da opressão do capital.

Para cumprir este objetivo, a Comuna deverá tomar posse das armas ao seu alcance e as distribuí-las à população da forma que for localmente mais eficaz para combater a burguesia e seus aliados. Tomar posse de quartéis, delegacias, lojas de armas, de unidades policiais é uma tarefa a ser cumprida tão logo quanto possível. Deve promover o treino militar indispensável à autodefesa da Comuna. E, apenas em última instância, deve prender e levar a julgamento público os partidários da burguesia e da opressão dos trabalhadores. Mas não deve vacilar contra aqueles que pegarem em armas contra a Comuna. Esta questão é tão decisiva que merece uma consideração mais detalhada. Trata-se do papel da violência na história.

O papel da violência na história

A violência apresentou-se na história da humanidade em duas situações. A primeira delas ocorreu na sociedade mais primitiva, ordenada pelo trabalho de coleta, quando a carência mais absoluta fazia com que a força física muitas vezes decidisse a quem caberiam os parcos recursos disponíveis. A violência, então, estava a serviço direto da sobrevivência biológica das pessoas. A segunda situação em que comparece à violência é a sociedade de classes. Nas sociedades de classe os exploradores obrigam, pela violência, os trabalhadores a produzir a riqueza das classes dominantes. E, para exercer esta violência, criaram o Estado. O Estado é o instrumento de aplicação cotidiana da violência sobre os trabalhadores para que continuem a produzir a riqueza que os oprime, a riqueza das classes dominantes. Na sociedade de classes, a violência não está a serviço da sobrevivência biológica, como nas sociedades primitivas, mas a serviço do enriquecimento das classes dominantes; está voltada primordialmente contra aqueles trabalhadores e revolucionários que se rebelam contra a opressão. Na sociedade burguesa, esta função do Estado de repressor dos trabalhadores pela violência foi aperfeiçoada ao máximo. A polícia e o exército, o Direito e a burocracia foram aprimorados para serem cada vez mais eficientes na manutenção da exploração dos proletários e trabalhadores. Por isso, o Estado burguês deve ser rapidamente destruído e substituído pela Comuna.

Com a Comuna, a violência não mais servirá para oprimir os trabalhadores, pois serão os trabalhadores e o proletariado que formarão a milícia armada de cada Comuna. Por isso, a violência terá apenas uma única função: derrotar a contrarrevolução pelas armas e pela reorganização da produção segundo o princípio de que todos devem trabalhar.

Uma vez derrotada a contrarrevolução, com o desaparecimento da burguesia e seus aliados (quer pela derrota militar, quer pelo convencimento ideológico, quer pela transformação de todos em trabalhadores), a milícia também desaparecerá, por não mais ter utilidade. A produção de armamentos deixará de ocorrer, pois não haverá mais guerras nem os conflitos sociais serão resolvidos pelo recurso às armas. Com isto, mais trabalhadores poderão ser deslocados para a produção dos bens de primeira necessidade, e a jornada de trabalho diminuirá ainda mais.

A Comuna será, assim, a última vez na história da humanidade em que a violência aparecerá para resolver um conflito entre os seres humanos. Esta violência é ainda expressão da barbárie da sociedade de classes e é inevitável porque os contrarrevolucionários apelarão às armas contra a Comuna. Mas, superada a sociedade de classes, a violência e, com ela, tanto a milícia da Comuna quanto a produção de armamentos desaparecerão tal como desapareceu, no passado, o machado de bronze.

Este é o papel da violência na história, e esta é a função social da violência na Comuna.

Portanto, as tarefas imediatas e gerais da Comuna possivelmente serão: colocar a vida cotidiana, acima de tudo a produção e a distribuição dos bens, sob o controle imediato da população trabalhadora. Destruir, com isso, o Estado da burguesia, com seu aparato repressivo e destruir a burguesia e seus aliados pelo emprego da força militar, sempre que for imprescindível. Empregar, consciente e eficientemente, a violência apenas para destruir o velho Estado e as velhas classes dominantes. Nas mãos da Comuna, a violência tem uma função específica: defender os proletários e seus aliados da volta da exploração dos trabalhadores pela burguesia.

II Os limites da Comuna

Muitas décadas de história nos ensinaram que a democracia nada mais é que o poder da burguesia sobre a sociedade e, em especial, sobre os trabalhadores; que a democracia é uma ordem social que apenas pode existir pela aplicação da violência sobre a maioria da sociedade.

A Comuna, ao invés, é o poder dos trabalhadores sobre a burguesia e seus aliados. Um poder da maioria sobre a minoria, com a finalidade de superar definitivamente a exploração do homem pelo homem. Que a Comuna seja uma liberdade muito superior às liberdades democráticas burguesas é uma evidência. Os proletários e seus aliados são a maioria da sociedade. A Comuna exerce o poder, não "em nome" dos trabalhadores, mas pelos próprios trabalhadores. A Comuna consiste nos operários e seus aliados organizados em força política.

Este é o principal mérito histórico da Comuna e também seu principal limite. A Comuna ainda é uma força política, ainda exerce o poder – mesmo o poder violento – sobre a burguesia e seus aliados. Por isso é uma forma ainda limitada de liberdade. E, por ser uma forma limitada de liberdade, deve ser superada por uma forma superior e muito mais ampla de liberdade: o comunismo. Isto é tão importante, que merece um tratamento mais cuidadoso. A política é, ao lado do papel da violência na história, também uma questão decisiva.

A política


A política é uma relação social que apenas existe nas sociedades de classes. A política tem sempre por conteúdo o poder do Estado: como conquistá-lo e como exercê-lo. A Comuna também é um poder político. Ao invés de ser o poder da burguesia sobre os trabalhadores, é o poder dos trabalhadores sobre a burguesia. Por ser o poder político da maioria sobre a minoria, é um enorme avanço sobre a democracia burguesa, que não passa do poder político da burguesia sobre a maioria da sociedade, os trabalhadores. 
Contudo, por ser um poder político, a Comuna é ainda a contraposição à velha sociedade de classes. Emprega a violência para derrotar a contrarrevolução, requer o controle da participação dos indivíduos no trabalho comum e, ainda, requer o controle da distribuição segundo o critério de "a cada um, uma remuneração igual para um trabalho igual".

Esta necessidade de um controle da Comuna sobre a vida coletiva e a vida dos indivíduos decorre de dois fatos. Politicamente, do fato de que a luta contra a burguesia e seus aliados ainda não terminou. Contudo, mais decisivamente ainda, decorre do fato de que a abundância necessária para que se superem os limites da Comuna ainda não se estabeleceu em todas as esferas da produção e por toda a humanidade.

Estes são os principais limites a serem superados pela Comuna: a permanência da carência em algumas esferas da produção e a permanência do exercício do poder político (ainda que com outro conteúdo de classe).

A abundância e o reino da liberdade


A burguesia deixará, como herança à humanidade, não apenas um planeta destruído e com graves problemas ecológicos, mas ainda uma humanidade em larga medida destruída. Pensemos nos depósitos de lixo, tanto os radiativos quanto os "normais", no aquecimento do planeta, em situações como a miséria na África, nas periferias das grandes cidades e, ainda, enormes áreas perdulárias, com extremado consumo de energia e de recursos, como a Europa e partes da América do Norte.

Deixará também uma parte ponderável da produção voltada ao desperdício, uma obsolescência planejada, a produção de armas a todo vapor e, ainda, uma malha de distribuição (portos, estradas, aeroportos, estradas de ferro etc.) que serve ao lucro e não aos humanos; que, portanto, terá que ser profundamente alterada para levar os produtos aos locais que a humanidade de fato precisa. Massas inteiras de população provavelmente se movimentarão dos locais mais pobres aos mais ricos antes que medidas efetivas de desenvolvimento das regiões mais pobres possam ser tomadas, reduzindo ainda mais a jornada de trabalho nos locais mais desenvolvidos, o que é positivo, porém trazendo novos problemas de moradia, energia, serviços básicos etc.

Logo após a revolução, a situação requererá urgentes medidas de alcance planetário e nacional, exigirá um árduo esforço (mas com as jornadas de trabalho sendo sempre reduzidas) para reequilibrar uma situação mundial que será, por ser herança do capitalismo, muito desequilibrada. Ainda que, no geral, se produza mais do que se necessita, isto ainda não estará estabelecido em todas as localidades e em todos os ramos de produção. Por isso, a regra geral da Comuna ainda será a do Direito burguês de a cada um de acordo com sua colaboração para a riqueza comum.

Esta regra é do Direito burguês porque trata todos os indivíduos como iguais, o que não passa de uma abstração. Os indivíduos são diferentes, possuem necessidades e possibilidades individuais que são distintas, jamais são pessoas iguais. Tratar a todos como iguais, eliminando a distinção de classe, possibilitando com que todos trabalhem e contribuam com a riqueza comum, é um enorme avanço ante ao capitalismo. Contudo, é ainda apenas um enorme avanço, e não um limite que não pode ser ultrapassado.

Este avanço não deve ser subestimado, mas sua verdadeira importância está em preparar uma sociedade na qual o princípio geral será "de cada um de acordo com sua capacidade, para cada um de acordo com sua necessidade". Isto é, uma sociedade na qual cada indivíduo não será tratado abstratamente como um igual, mas concretamente como o ser humano único, completo, total, que de fato é. Enquanto não houver a abundância na vida cotidiana de todos os seres humanos, será inevitável um sistema de controle para saber quem trabalhou, onde e por quanto tempo, e qual a parcela que lhe cabe da produção coletiva. Este sistema de controle, já vimos, deverá ser a própria Comuna, e sob a responsabilidade e a autoridade imediata da Comuna; deverá ser o mais racional e equilibrado possível, o mais humano e generoso imaginável. Ainda assim, será um mecanismo de controle que irá requerer que horas de trabalho humano sejam consumidas fora da produção apenas para identificar a qual indivíduo cabe qual porção da riqueza produzida. Ainda que imprescindível enquanto a abundância não for universal, não deixa de ser um desperdício de energias humanas a ser superado no futuro.

Vejam: isto será inevitável porque, se não há abundância, os bens devem ser repartidos igualitariamente, o que significa determinar quanto cada um pode se apropriar de cada produto e o quanto cada um deve trabalhar para ter o direito de se apropriar de cada produto. Este mecanismo de controle, por mais que seja coletivo, por mais que todos dele participem, por mais que não seja cristalizado em alguns grupos ou pessoas através de um constante revezamento, ainda assim é um mecanismo de controle. E, como todo controle social, aumenta a jornada de trabalho de todos porque ocupa pessoas que, de outro modo, poderiam estar empregadas diretamente na produção dos bens de primeira necessidade.

Por ser um mecanismo de controle, por ser um poder que se distingue da totalidade da sociedade (ainda que seja sua expressão) e que se confronta com os indivíduos como algo a eles externo e superior, a Comuna ainda é um poder político, é a afirmação prática e cotidiana de um poder social acima dos indivíduos. Verdade que, diferentemente do poder da burguesia, a Comuna é a expressão das necessidades e possibilidades reais da totalidade dos trabalhadores e proletários. Isto faz uma enorme diferença, acima de tudo porque, ao possibilitar que todos trabalhem e decidam sobre a produção, prepara a generalização da abundância. Mas, mesmo com todas essas positividades, ainda é um poder acima e sobre os indivíduos e, por isso, deve ser superado tão logo a carência seja universalmente superada.

Este é o limite da Comuna: é expressão de que a carência ainda está presente para porções significativas da humanidade e para áreas de produção importantes. Deste seu limite decorre a tarefa histórica da Comuna: fazer da abundância a situação universal de toda a humanidade.

A Comuna, bem pesadas as coisas, é o último traço da sociedade de classes, tanto no sentido da produção (a carência ainda se mantém em setores importantes) quanto do ponto de vista da organização social (o mecanismo de controle que impõe que cada um deve participar da riqueza comum segundo o quanto contribui para a produção desta).

A abundância e o "reino da liberdade"

Imaginem a seguinte situação: em uma Comuna com 200 membros, há 100 maçãs para todos. A regra de distribuição deverá ser, igualitariamente, uma maçã para cada duas pessoas. E alguém precisará controlar para que ninguém leve mais do que pode e, que, portanto, haja de fato 1/2 maçã para cada um.

Nesta circunstância, se alguém quiser mais maçãs (por exemplo, para fazer uma torta de maçãs para o aniversário de seu filho), poderá trocar com outras pessoas algo que possui, ou mesmo prestar algum serviço, em troca das maçãs de que necessita. Isto é a circunstância real em que a carência impõe o preceito da igualdade formal, burguesa: todos são iguais e, por isso, merecem a mesma quantidade de maçãs. A implementação prática da igualdade na carência requer algum controle sobre os indivíduos.

Imaginem, agora, uma outra situação: na mesma Comuna com 200 membros, há 3 mil maçãs para serem distribuídas. A regra agora só pode ser outra: cada uma pega quantas maçãs quiser. Se Mariazinha pegou quatro frutas, Pedro pegou 17 e Romilda 100, não faz a menor diferença, pois há maçãs de sobra para todos. Se alguém se dispuser a controlar, será uma atividade ridícula: se há para todos, o controle da distribuição não faz o menor sentido. E, ninguém irá se dispor a trocar por maçãs nada do que possui, nem qualquer serviço.

Esta a diferença da abundância e da carência, quando se trata da repartição do que foi produzido. A carência impõe o controle para se ter igualdade. E a igualdade só pode ser a cada pessoa uma porção igual da riqueza social. Na abundância, a igualdade é outra: a cada um de acordo com sua necessidade. Isto para a esfera da distribuição. Algo análogo ocorre na produção. A abundância significa não apenas que produzimos mais do que o necessário para a totalidade das necessidades de toda a humanidade, mas também significa que produzimos muito mais por cada hora trabalhada.

Um cálculo realizado pela ONU no final do século 20 indicava que, para se produzir tudo o que hoje é produzido no planeta, se todos os humanos entre os 22 anos e os 50 anos de idade trabalhassem, se a licença maternidade passasse para quatro anos e a licença paternidade para três anos – e se todos trabalhassem com a produtividade média de um trabalhador japonês (não mais, naquela época, topo da produtividade do planeta), cada pessoa teria de trabalhar 17 minutos por dia!!

Dezessete minutos para produzir todos os armamentos, as comidas e roupas que são desperdiçadas, a energia que é mal consumida, os venenos agrícolas que nos contaminam a cada dia e os remédios que só fazem a fortuna do complexo médico-hospitalar! Dezessete minutos para destruir o planeta e matar aos poucos a todos nós. Se fosse para produzir apenas o necessário para os humanos, sem as desumanidades que decorrem do capital, poder-se-ia trabalhar bem menos, oito ou seis minutos por dia!!

Percebam: isto é a abundância! Se todos trabalharem (e nas melhores condições possíveis), ter-se-ia que trabalhar algo em torno de oito horas a cada 30 dias -- e com o desenvolvimento das forças produtivas, ainda menos. A vida humana seria reformulada inteiramente: o necessário para a reprodução da vida humana seria diminuído para um dia por mês e, depois, para ainda menos. Os sábados e domingos seriam, agora, 29 dias do mês. Os dias de segunda a sexta (os dias de trabalho) seriam reduzidos a um dia por mês!

Pensem em como diminuiria o transporte de pessoas pelas cidades, como se reduziriam imediatamente os maiores problemas de trânsito e poluição urbanos, como aumentariam as festas, os jogos de bola, a produção artística; como se teria muito mais tempo para amar, escrever, fazer poesia e tudo aquilo que é verdadeiramente humano. Como se ficaria muito menos doente, como se seria muito mais saudável, como a vida seria muito mais confortável e feliz. Aposentadoria? Um problema simplíssimo: ninguém trabalha se tem mais de 50 anos. O trabalho de todos é mais do que suficiente para manter as crianças e os idosos. Isto é a abundância: ter-se-ia de tudo em abundância com muito menos trabalho. Desde que todos trabalhem, desde que não haja uma classe dominante a explorar os trabalhadores e proletários, desde que se supere o capital, haverá riqueza suficiente para todas as necessidades de todos os humanos. Isto é a superação da sociedade de classes, do Estado, da política e do patriarcalismo (a monogamia).

Nesta nova situação, se, por exemplo, para fazer uma viagem de volta ao mundo, eu decidisse ficar dois anos sem trabalhar, e meu camarada Ivo topasse me substituir, desde que eu, nos dois anos subsequentes, o substituísse no trabalho, se fizéssemos este acordo entre nós, não haveria a menor importância para a humanidade. A autonomia dos indivíduos, também na produção, seria a condição imprescindível a fim de que todos trabalhassem para o bem comum, para a riqueza produzida coletivamente. A rigor, nem profissões como as que conhecemos hoje ainda existirão...

E esta autonomia apenas é possível se todos participarem das decisões que envolvem o quê, o como e o quanto deve ser produzido, se todos decidirem em que condições deve se dar o trabalho de todos. Ou seja, isto só é possível se o trabalho não for mais o trabalho assalariado obrigatório, mas sim um trabalho livre, coletivo e consciente de todas as pessoas da humanidade. Este trabalho livre, coletivo e consciente é o trabalho associado. E o trabalho associado é o que funda o modo de produção comunista.

A função social da Comuna é preparar a transição da carência à abundância, do trabalho assalariado ao trabalho associado, e realizar a transição da sociedade de classes para um planeta sem patrões. Realizada esta tarefa, a Comuna tenderá a desaparecer. E, com ela, irá para a "lata de lixo da história" (a expressão é de Engels) tudo aquilo que serviu para as classes dominantes explorarem os proletários e trabalhadores: o Estado, o Direito, a política, a violência, o patriarcalismo (a monogamia) e a propriedade privada.


A atual tarefa histórica da humanidade é derrubar o poder burguês (sob a forma de democracia ou de ditadura) e colocar em seu lugar a Comuna, para realizarmos a transição à forma superior de liberdade hoje possível à humanidade: o comunismo.

O possível e o impossível

Hoje, a Comuna é uma impossibilidade e o dilema burguês democracia-ditadura é, de fato, o único futuro possível que conseguimos enxergar. Mas a história da humanidade é, também, a transformação do impossível em possível. Antes da Revolução Francesa (1789-1815), não se afirmava ser impossível uma sociedade sem reis e rainhas? Não era dito então que não ter reis e rainhas equivaleria ao caos e à guerra civil? Antes da abolição da escravidão no Brasil, não se dizia que sem escravos o país não poderia existir? Antes da queda do Império Romano, não se dizia que só haveria civilização com base no trabalho escravo?

Quantos limites a humanidade não deixou para trás? Quantos "impossíveis" foram tornados "possíveis"? E por quantas vezes essa ampliação do possível não se deu rapidamente, em questão de meses ou poucos anos? As necessidades humanas, quando se tornam urgentes e quando a elas não há alternativa, impulsionam a humanidade para novos e mais elevados níveis de desenvolvimento, que tornam o que era até então considerado impossível, não apenas possível, mas também necessário.

Vivemos hoje um período histórico com estas características. A velha sociedade de classes, sob sua forma contemporânea, o capitalismo, está morrendo. De sua agonia brota a necessidade urgente de uma nova forma de organização social, em que todos produzam e tenham acesso a tudo o que for produzido, em que as necessidades humanas – e não o lucro – ordenem a produção. Mais cedo ou mais tarde, a humanidade revolucionará o presente e fará da Comuna algo possível e necessário. Então, a sociedade de classes se tornará uma impossibilidade histórica, tal como são hoje o Império Romano ou o feudalismo.

"Ampliar as fronteiras do possível": esta a tarefa da humanidade, e esta a tarefa de cada indivíduo que compõe a humanidade. Como? Começando por destruir o Estado burguês e o trabalho proletário, e substituindo-os pela Comuna e pelo trabalho associado.

Wesley Sousa

Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem