O “Estamos Juntos” ou “Frente Democrática”: a ficção política de esquerda


Por Alex Agra Ramos – bacharel em Ciência Política pela UFBA

Wesley Sousa – graduando em Filosofia pela UFSJ. 

APONTAMENTOS INCIAIS

Muito se tem dito dentro do abstrato campo de esquerda sobre a defesa da democracia e suas instituições no Brasil. E dentro desse espectro de discussão, não poderia estar desvinculada também a discussão sobre o papel dos militantes que se encontram nesse espectro político em relação a atual conjuntura. Diante desse cenário, surgiu um manifesto: “Estamos juntos”. Estende-se aqui, por conseguinte, a ideia da “frente democrática” (como a “defesa das liberdades democráticas”, etc). Assinado por figuras de vários partidos políticos, inclusive do PSOL.

Acreditamos que a análise imanente desse manifesto e suas ressonâncias, como tal na deletéria “frente democrática”, pode nos fornecer-nos condições de entender melhor o seu caráter e como a esquerda deve dele se afastar teórico e praticamente.

Assim, ao invés de estarmos lutando por pautas como justiça e democracia, deveríamos estar levantando a pauta da Revolução Brasileira. Somente a Revolução Brasileira trata o tipo de democracia que possa construir a revolução, precisa-se dialogar com quem produz.

ILUSÕES POLÍTICAS E A FRAQUEZA DO REAL

Primeiro, o manifesto reivindica uma titularidade: trata-se de “cidadãs, cidadãos, empresas, organizações e instituições brasileiras”. Comecemos pela categoria de cidadãos: que cidadãos são esses? São a classe trabalhadora? São a aristocracia operária? Os políticos vulgares, incluso os de partidos que se reivindicam de esquerda? A categoria cidadão é uma categoria política ampla, que não serve de nada para os revolucionários. Cidadão é uma categoria que cinde o homem entre o trabalho e a política. O cidadão é um ser abstrato, ele não possui classe social, não possui papel na produção, não possui consciência de classe. O cidadão é uma abstração que separa o homem do trabalho. Marx já nos ensinava isso quando afirmou em A Questão Judaica:

 “A diferença entre o homem religioso e o cidadão é a diferença entre o comerciante e o cidadão, entre o trabalhador e o cidadão, entre o latifundiário e o cidadão, entre o indivíduo vivendo e o cidadão. A contradição entre o homem religioso e o homem político é a mesma contradição que existe entre o burguês e o cidadão, entre o membro da sociedade burguesa e sua aparência política.”

Mais adiante, no que se refere ao problema do rebaixamento do social ao político, Marx argumenta:

“Mas este fato torna-se ainda mais estranho quando verificamos que os emancipadores políticos rebaixam até mesmo a cidadania, a comunidade política ao papel de simples meio para a conservação dos chamados direitos humanos; que, por conseguinte, o citoyen é declarado servo do homme egoísta; degrada-se a esfera comunitária em que atua o homem em detrimento da esfera em que o homem atua como ser parcial; que, finalmente, não se considera como homem verdadeiro e autêntico o homem enquanto cidadão, senão enquanto burguês.”

Para um partido que se pretende revolucionário (vide PCB, por ex.), então, de nada interessa a categoria cidadão. Cidadão é uma categoria que não diz absolutamente nada sobre a classe trabalhadora nos termos vazios que se tem dito[1]. E não é a classe trabalhadora o alvo da nossa ação? Não são precisamente os trabalhadores que nós queremos alcançar? Por que então nos interessaria uma categoria que cinde o trabalhador entre o homem da sociedade civil, o homem do trabalho, e o ser genérico do Estado? Se assumirmos que o nosso ponto de vista não é o da classe trabalhadora e que o alvo de nossa ação não é a classe trabalhadora, para que nos reivindicarmos de esquerda? O papel dos comunistas seria fazer a ação política tendo sempre como horizonte o proletariado, não a “defesa das liberdades democráticas”. Sim, aquela categoria especificamente responsável pelo trabalho produtivo. Isso quer dizer: não interessa o lúmpen amontoado nas prisões lotadas em todo o país? Ou os professores de escolas públicas em trabalhos degradantes nas escolas? Em absoluto que não.

Vejamos. Na sociedade capitalista, a classe revolucionária é efetivamente o proletariado e essa deve ser a nossa linha principal de ação. Sempre aqueles que estão no processo de produção capitalista e por isso, podem interferir no processo de acumulação. Não podemos perder de vista a centralidade do trabalho, porque se o fazemos, corremos o risco de elaborar uma estratégia política que não oferece nada ao proletariado e não ameaça em nada o sistema capitalista. E assim, partimos para mais uma assinatura do famigerado manifesto do “Estamos Juntos”: as empresas e a burocracia sindical e parlamentar. Ora, o que querem as empresas com a vida, a liberdade e a democracia, como dizem defender no manifesto? Se importarão as empresas com a vida dos trabalhadores? Se importarão com a sua liberdade em relação ao trabalho? E quanto à democracia, defenderão sua emancipação política? Interesses exclusos assinam o manifesto, enquanto aplaudimos de pé palavras que nunca passaram de ilusão no país.

Analisemos primeiro a questão da defesa da vida no manifesto que assinam as empresas. A burguesia brasileira – termo que a dita esquerda parece ter esquecido –, nunca foi em defesa da vida na história do nosso país. A nossa burguesia já nasce de um liberalismo sui generis que lhe impede de defender a vida, ao contrário do que dizem no manifesto. Seguindo isso, nossa burguesia começa a defender as ideias de livre comércio para combater o chamado exclusivo colonial, assim que começa a demanda mundial pelas mercadorias produzidas na colônia. No entanto, a principal força de trabalho de uma colônia marcada pelas grandes propriedades de terra, pelo seu caráter agroexportador e pelo fornecimento de minério era a força de trabalho escrava. Como poderia a nossa burguesia adotar a posição de uma burguesia revolucionária, se a abolição da escravidão, significaria também a abolição de sua existência? Assim, a burguesia brasileira se mantém muito aberta quando se trata de questões de livre mercado, mas basta que se fale em ampliar um pouco a esfera de participação política que ela utiliza o Estado para mostrar os seus dentes. Aliás, a burguesia mostra todos os dias, por meio das taxas de letalidade praticadas pela polícia brasileira, o que ela entende por valorização da vida do trabalhador.

Vamos entrar no segundo aspecto: nossa burguesia nasce de um processo de industrialização do período entre-guerras, ou seja, uma burguesia que nasce dependente e naturalmente reacionária. Sua margem de ação na decisão política em relação ao imperialismo, sobretudo, depois da integração monopólica, muito pequena diante dos interesses do capital internacional. Pelo seu papel inferior no mercado mundial, expresso também pelo intercâmbio desigual, precisa enviar massivas quantidades de valor para fora do país. Quem paga é a classe trabalhadora, como mostra a tabela do DIEESE que separa o salário mínimo nominal do salário mínimo necessário para o ano de 2019:

 

2019

Dezembro

R$ 998,00

R$ 4.342,57

Novembro

R$ 998,00

R$ 4.021,39

Outubro

R$ 998,00

R$ 3.978,63

Setembro

R$ 998,00

R$ 3.980,82

Agosto

R$ 998,00

R$ 4.044,58

Julho

R$ 998,00

R$ 4.143,55

Junho

R$ 998,00

R$ 4.214,62

Maio

R$ 998,00

R$ 4.259,90

Abril

R$ 998,00

R$ 4.385,75

Março

R$ 998,00

R$ 4.277,04

Fevereiro

R$ 998,00

R$ 4.052,65

Janeiro

R$ 998,00

R$ 3.928,73

 

É importante lembrar que a grande massa da classe trabalhadora brasileira sequer recebe o correspondente ao salário mínimo nominal. Então, qual importância dão as empresas para a vida do trabalhador se sequer lhe fornecem condições materiais de vida? De qual liberdade é essa que defendem as empresas que não fornecem as condições materiais para que alguém seja livre? Liberdade, no capital, democrática ou não, só existe para vender a força de trabalho. A classe trabalhadora é e sempre foi livre no Brasil apenas para três coisas: morrer de fome, morrer de tanto trabalhar e morrer nas mãos da polícia.

Essa é a vida e liberdade que fornecem as empresas e o Estado burguês para os trabalhadores, cujos assinantes do manifesto parecem não se importar. Pena que, em geral, a esquerda quer “ser mais burguesa que a burguesia”.

A “DEFESA DA DEMOCRACIA”: DEFESA DO ESTADO DE CLASSE

Esse tema da “liberdade democrática” que unem a “oposição” - desde PT até o PCB, passando por PDT e PSOL – chega a ser irônico diante de um período em que reformas estruturais do capitalismo dependente brasileiro parecem aguçar ainda mais o mais-valor absoluto por meio da extensão da jornada de trabalho e fazem todos os esforços possíveis para que as condições gerais de vida da classe trabalhadora sejam sempre as mais degradantes possíveis. Querem falar em liberdade se com o aumento das jornadas de trabalho não somos livres para viver, mas vivemos para trabalhar? De qual é liberdade a que falam as empresas e a burocracia, excluindo o proletariado (mesmo que tendem incluí-lo)? Então, nada há que se falar sobre a defesa de liberdade ou defesa da vida. Defesa da vida e defesa da liberdade significam coisas amplamente diferentes para o proletariado e para a burguesia e não podem de maneira alguma estar alinhadas em um manifesto e “programas”. É uma contradição em termos.

Sobre o tema da democracia, tratemos de maneira mais específica. Esse liberalismo sui generis acima mencionado nunca produziu uma emancipação política real no país. A burguesia brasileira nasce em uma época em que já são mais do que conhecidos os custos da revolução burguesa clássica no interior dos países e são mais que conhecidos os custos de uma democracia que não seja restringida ao jogo institucional. O que é a emancipação política? Marx nos fornece essa resposta ao diferenciar a revolução social da revolução política:

“Uma revolução social se situa do ponto de vista da totalidade porque – mesmo que aconteça apenas em um distrito industrial - ela é um protesto do homem contra a vida desumanizada, porque parte do ponto de vista do indivíduo singular real, porque a comunidade, contra cuja separação o indivíduo reage, é a verdadeira comunidade do homem, é a essência humana. Ao contrário, a alma política de uma revolução consiste na tendência das classes politicamente privadas de influência a superar o seu isolamento do Estado e do poder. O seu ponto de vista é aquele do Estado, de uma totalidade abstrata, que subsiste apenas através da separação da vida real, que é impensável sem o antagonismo organizado entre a idéia geral e a existência individual do homem.”

Nesse diapasão, a tal emancipação política nunca aconteceu no país. A classe trabalhadora jamais superou o seu isolamento do Estado e do poder. Por mais que representantes da aristocracia operária possam ter assumido o aparelho de Estado, nunca tiveram de fato o poder de Estado, porque o poder de Estado está diretamente associado ao poder de classe. O Estado moderno nada mais é do que um produto da sociedade civil burguesa[2]. Ele é fundado por ela e, portanto, impotente para alterá-la, sob o risco de dar um fim a si mesmo. Assim, nunca houve emancipação política para a classe trabalhadora no Brasil.

Ao contrário, a participação política da classe trabalhadora sempre esteve restrita ao conceito mais estreito de política: o jogo institucional. E a esquerda engole essa estreiteza política com prazer, achando que qualquer tipo de social democracia e qualquer tipo de avanço social é possível em um país com uma burguesia estreita de capitalismo dependente. Por isso, o PSOL/PCB, como o PT e consortes (PCdoB), e como grande parte dos partidos de esquerda, enfatiza-se, apostam suas fichas no jogo institucional, em alguns momentos reduzindo a estreiteza política até mais do que lhe é oferecida: o campo de ação se reduz das regras institucionais para o Judiciário. Como se o Supremo Tribunal Federal, tantas vezes algoz da classe trabalhadora, fosse apresentar algum tipo de alternativa para o proletariado. Como se o Judiciário não tivesse provado e atestado seu caráter burguês.

Todavia, temos uma esquerda pauta uma defesa da democracia que nunca existiu. O próprio processo de transição da democracia brasileira, tendo inclusive o movimento “Diretas Já” citado no manifesto, foi um processo de transição pelo alto, sem a participação popular. Basta recorrer a dois documentos: o Documento dos Oito, assinado pelos oito mais influentes empresários do país na época, Antônio Ermírio de Moraes; Cláudio Bardella; Jorge Gerdau; José Mindlin; Laerte Setubal Filho; Paulo Vellinho; Paulo Villares e Severo Gomes, assinado em 1978, reivindicando a democratização em seus termos: lenta, gradual e segura.

O outro documento fundamental é o telegrama “Abordagens da descompressão política” que Samuel Huntington entrega como encomenda em 1973 para o general Médici, descrevendo com precisão como seria futuramente o processo de transição política para a democracia. Inclusive, para Huntington, o processo das lutas populares no período de João Goulart revelava um “excesso de democracia”, e ele defende abertamente que a democracia seja restringida não se dê apenas no processo de transição para a tal ficção do “Estado Democrático de Direito”, mas também que seja uma constante no país.

Dessa forma, quando o Brasil sai do bonapartismo, com a truculência de classe manifesta da ditadura, entra na democracia restringida, com sua truculência de classe velada. Precisamente por esse motivo temos a anistia aos militares, manutenção da militarização das polícias, Exército como garantidor da Lei e Ordem, Lei de Segurança Nacional e mais recentemente a Lei Antiterrorismo do tão progressista Partido dos Trabalhadores. É precisamente essa democracia que defendem as empresas. A democracia que defendem os partidos adeptos do liberalismo de esquerda é a ficção do Estado Democrático de Direito. A ‘defesa’ da democracia é um vôo de Ícaro, o conto de fadas que a burguesia lhe conta para que durma tranquilamente e assim permaneça: sempre adormecida. Como se todas as atrocidades que estamos vivendo nesse momento, incluso o governo Bolsonaro, não fosse produto dessa própria democracia e dessas próprias instituições políticas. Em síntese, a “redemocratização” nunca foi uma “vitória” da esquerda, mas seu oposto.

O que o liberalismo de esquerda, no sentido mais direito, não pode captar é que ao defender as tais instituições democráticas, ou seja, a ficção do Estado Democrático de Direito, ela defende na verdade a democracia restringida. Dito isso, a democracia da burguesia (isto é, das empresas) também está longe de ser a democracia dos trabalhadores.

O manifesto diz: somos a maioria e exigimos que nossos representantes e lideranças políticas exerçam com afinco e dignidade seu papel diante da devastadora crise sanitária, política e econômica que atravessa o país. Sem entrar nos méritos próprios da Ciência Política, cujas estatísticas provam que essa maioria política, do ponto de vista da aprovação, não se confirma, quero focar no papel dos representantes e lideranças diante da chamada devastadora crise sanitária, política e econômica que atravessa o país. Ora, quem é o grande causador dessa crise senão o sistema capitalista? Quando alertamos para a importância de definir, na titularidade do manifesto e de “defesas”, para o desaparecimento do proletariado, aqui se reflete um impacto desse desaparecimento: primeiro, no que diz respeito a identificar a natureza da crise política, sanitária e econômica do país. Segundo, no que diz respeito a identificar as alternativas e possibilidades de saída da crise. Esses dois pontos são importantíssimos porque a resposta para cada um deles é diferente para o proletariado e para a burguesia. A burguesia nunca assumirá o modo de produção capitalista como causador da própria crise. Nunca aceitará a Lei de Queda Tendencial da Taxa de Lucro como uma realidade e, portanto, nunca assumirá o seu papel na crise econômica.

Na crise sanitária, temos um presidente pressionado todos os dias pelos próprios empresários a relaxar o isolamento social para que seja possível o processo de realização das mercadorias e aumento das taxas de lucro, um ministro da Economia representante do mercado que acredita de pés juntos que não há dinheiro para oferecer a população. O Executivo, ao eximir-se de assumir os custos do isolamento social, força o trabalhador a quebrar o isolamento social e agrava a crise sanitária. A crise sanitária é culpa também do Legislativo, que aprovou no passado sem nenhum problema a Lei de Bronze do capitalismo brasileiro, a Lei de Responsabilidade Fiscal, como uma imposição capitalista de restrição à participação do Estado como “Estado de bem-estar social”, exatamente aos termos da democracia restringida; assim, temos a Emenda Constitucional 95, a popular “Lei do teto de gastos”, tão pedida pelos empresários e aprovada com louvor pelo Legislativo.

Nesse contexto, o Judiciário, diante disso tudo, entendeu tudo como legítimo e seguiu em silêncio. A não ser para colaborar na crise política – que nem vale pena estender aqui como a burguesia dá início a essa crise após a falência do consórcio petucano. Diante disso, as respostas para a crise política, econômica e fiscal são umas para os trabalhadores e outras para a burguesia. Por isso José Luis Fevereiro, afirma sem problemas que essa é uma frente sem programa. As respostas aos problemas que eles apontam são impossíveis de serem conciliadas entre a classe trabalhadora e a burguesia. A própria crise política tem origem na falência da conciliação, como poderia ela ser a resposta para essa mesma crise? E quanto à crise econômica, como retomar as taxas de lucro sem retomar a produção e ameaçar a vida do proletariado brasileiro? Não tem muito tempo, vários empresários se reuniram e foram junto com Bolsonaro pressionar o STF pela flexibilização. Como o interesse das empresas se alia ao interesse dos trabalhadores? Com defesas abstratas e reducionistas, o manifesto não apresenta o programa; e os “programas” não passam de manifestos. O único impacto político do manifesto prova como o liberalismo de esquerda pode ser engolido com facilidade pela estreiteza política da burguesia brasileira.

Em seguida, o manifesto faz a afirmação: somos a maioria de brasileiras e brasileiros que apoia a independência dos poderes da República e clamamos que lideranças partidárias, prefeitos, governadores, vereadores, deputados, senadores, procuradores e juízes assumam a responsabilidade de unir a pátria e resgatar nossa identidade como nação. Não vejo como necessário apontar aqui a igual ficção da separação dos poderes. Aos olhos de quem não conhece o Estado burguês e fica somente nas leituras do Barão de Montesquieu, parece que a separação dos poderes é uma maravilha. Mas essa separação dos poderes revela apenas uma forma política do Estado, uma forma de organizar o Estado. Ela esconde, em si, que o verdadeiro poder, aquilo que Marx chamava de iniciativa governamental, está nos postos decisórios (outro termo do Marx) do governo, que são no nosso país o comando das Forças Armadas e o comando do Banco Central. É certo que o Supremo Tribunal Federal tem feito o possível pra ter esse poder. Mas no fim das contas, todas essas instituições não têm a sua natureza burguesa? Não significa dizer que não podemos tencionar em cada uma delas e explorar os conflitos tanto das frações burguesas como os conflitos entre instituições. Mas essa não pode ser a nossa estratégia política, não pode ser a finalidade da nossa ação política.

LIBERALISMO DE ESQUERDA E A LETARGIA “REVOLUCIONÁRIA” EM TEMPOS DE CRISE

Para que sejamos claro, essa letargia revolucionária apenas expõe clara e diretamente que nunca houve, na América Latina, a opção social democrata. O liberalismo de esquerda, engendrou para si um projeto político anacrônico desde seu nascimento, porque não encontra bases sociais concretas, não só no Brasil, mas em toda a América Latina.

Quando o manifesto diz que clamamos que lideranças partidárias, prefeitos, governadores, vereadores, deputados, senadores, procuradores e juízes assumam a responsabilidade de unir a pátria e resgatar nossa identidade como nação.

Primeiro, de que pátria estamos falando? Porque, diga-se, a noção de nação da burguesia brasileira é a submissa aos interesses internacionais. Os interesses da burguesia brasileira e da burguesia imperialista estão alinhados desde o processo de integração monopólica. Essa submissão é a identidade da nação para a burguesia. Longe de significar o povo brasileiro, como para Darcy Ribeiro, a visão de nação da burguesia é uma visão colonialista, é a visão do império, é o abandono de tudo que é produto cultural nosso para consumir lixo estrangeiro. A identidade de nação da burguesia brasileira é o antinacionalismo. Não pelos seus elementos estéticos, que coloco aqui em segundo plano, mas que tipo de burguesia que não é autônoma em relação ao capital e se beneficia de papeis inferiores na produção do mercado mundial, pode falar em identidade da nação? Em nação falamos nós, bem ou mal, defensores da Revolução Brasileira. E são todos esses, prefeitos, governadores, vereadores, deputados, senadores, procuradores e juízes, todos gestores do capitalismo dependente no Brasil. Nenhum deles pode ter a menor noção de identidade nacional.

Em segundo lugar: unir a nação? Em torno de qual projeto? O que separa a nação é a luta de classes. É o antagonismo entre os interesses do proletariado e os interesses da burguesia. É o antagonismo entre o não pagamento do valor real da força de trabalho e o mais valor não acumulado. É o antagonismo entre produtores e donos da produção. E só haverá qualquer tipo de união quando a cisão entre quem produz e quem tem a propriedade da produção acabar. Mas, o engraçado mesmo é quando manifesto fala: invocamos que partidos, seus líderes e candidatos agora deixem de lado projetos individuais de poder em favor de um projeto comum de país. Deixaram os empresários seus projetos individuais de poder? Deixará o Estado de ser burguês? Deixaram os patrões de explorarem seus empregados?

O homem da sociedade civil é o homem egoísta, dos interesses particulares[3]. O burguês não tem nenhum interesse geral porque é impossível generalizar seus interesses. Como disse, e afirmo mais uma vez: é impossível conciliar os interesses do capital com o do trabalho, então não há projeto comum de país. O nosso projeto de país só pode ser o fim da exploração, a revolução brasileira, a emancipação humana. Os interesses que a burguesia apresenta como comuns são sempre os interesses privados!

Entretanto, o trecho mais lamentável do tal manifesto é sem dúvida aquele que diz: esquerda, centro e direita unidos para defender a lei, a ordem, a política, a ética, as famílias, o voto, a ciência, a verdade, o respeito e a valorização da diversidade, a liberdade de imprensa, a importância da arte, a preservação do meio ambiente e a responsabilidade na economia. A ordem política burguesa? A ordem política burguesa é defendida todos os dias pela polícia e pelas Forças Armadas. Sempre que a ordem política burguesa está ameaçada, o Estado trata de cuidar disso garantindo sempre que as greves e as manifestações sejam fortemente reprimidas.

Para não falar do Exército quando invade periferias, mesmo a mando de partidos ditos de esquerda, protegido juridicamente pela invocação da Garantia da Lei e Ordem. A política que defende a burguesia é a democracia restringida, bem como a violência contra os trabalhadores – por meio do Estado e da política parlamentar. Falar de defesa da ciência, por exemplo, quando o Brasil é incapaz na emissão de patentes e na valorização dos produtores de ciência nacional, quando as universidades nada mais são do que formadoras de um pensamento colonizado e de força de trabalho intelectual para os grandes centros de produção científica dos países imperialistas; ou seja, defender a burguesia e a preservação do meio ambiente vale lembrar da estatização da Vale do Rio Doce e de todas as empresas flagradas cometendo crimes ambientais. Vamos fazer a Reforma Agrária e acabar com o latifúndio. Quer isso a burguesia? Ou essas são pautas dos trabalhadores que não interessam a ela? Mas a provocação mesmo está na tal responsabilidade na economia.

Diz o manifesto: defendemos uma administração pública reverente à Constituição, audaz no combate à corrupção e à desigualdade, verdadeiramente comprometida com a educação, a segurança e a saúde da população. Defendemos um país mais desenvolvido, mais feliz e mais justo. Combate a desigualdade? Como pode o Estado, fundado pela sociedade civil, combater a desigualdade, que reside na sociedade civil? O Estado é antes de tudo mantenedor da desigualdade, grande garantidor das condições gerais exteriores da produção[4]. A desigualdade nasce do mais valor. Nasce da exploração do trabalho; da divisão de classes e do assalariamento. Nada mais contraditório do que um empresário assinar algo em defesa do combate à desigualdade. Seriam esses empresários a favor de que suas empresas fossem tomadas pelos trabalhadores? Abandonariam a exploração do trabalho alheio? Acredito que não.

Reflexões como essas não são uma “autocrítica”. A polêmica e a crítica servem como chave para o conhecimento. Desvelar o real e seus movimentos imanentes, nesse sentido, vê-se que a crítica não é o ponto de partida, mas justamente de chegada. A esquerda, pois, por mais “crítica” que seja, nunca ela romperá seus imperativos que desenham: a prática, ironicamente diria Lênin, é o critério da verdade (sic)...

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se defendem a educação, a segurança e a saúde, ajudarão os empresários a expropriar as empresas privadas desses setores e as entregarão aos trabalhadores? E quanto aos seus gestores no Estado, entregarão o Estado para os trabalhadores também, para que seja abolido? Quanto à pauta do desenvolvimento, acabarão os empresários com o subdesenvolvimento? Mas, se o subdesenvolvimento brasileiro é expressão do capitalismo dependente, acabarão com o capitalismo dependente? Acabarão com os laços imperialistas? Acabarão com o próprio capitalismo no Brasil? O único desenvolvimento que lhes interessa é o desenvolvimento do subdesenvolvimento.

A restrição dos gastos do Estado, o Estado mínimo, que é mínimo porque impõe a si mesmo o limite de gastar, é uma pauta comum? É uma pauta dos trabalhadores, mesmo que em um programa mínimo? A responsabilidade na Economia é o Estado assumir os custos da queda da taxa de lucro das empresas? É o Estado garantir as condições necessárias para a entrada de cada vez mais multinacionais, desequilibrando absurdamente a nossa balança de pagamentos? Certamente, as noções do capital e do trabalho sobre responsabilidade na Economia não se encontram.

Sumariando: no nosso entendimento, assinar o manifesto e “defender” as instituições “democráticas” viabiliza arbitrariedade destas instituições como democráticas (mesmo que, no real, não o seja); e como vimos, a democracia efetiva nunca virá da burguesia brasileira, que nunca abrirão espaço necessário sequer para reformas! Comunistas e socialistas, nesse momento deveriam, sem tergiversar, lutar pela abolição da democracia, pois, isso tem de passar pela supressão do capital, Estado, direito e propriedade privada, e não em sua abstrata e difusa defesa, reforçando que a putrefação do capital precisa ser “salvo” – independente das mãos de quem seja.

O que a crítica imanente do manifesto revela que ele, ao ocultar as classes sociais e os conflitos de classe, sob o signo de uma ficção brasileira chamada “democracia” – ou “liberdades democráticas, por outro lado –, permite que o liberalismo de esquerda e seus epígonos, sejam absolutamente engolidos pelo liberalismo de direita e o reacionarismo, tendo como resultado o contrário do propósito do manifesto: o fortalecimento do retrógrado governo Bolsonaro e sua truculência histórica do Estado brasileiro.

A capitulação do liberalismo de esquerda, do reformismo “trajado” de marxismo ou “pragmatismo”, isto é, a decadência ideológica e apego à estética revolucionária, resultou no fortalecimento do governo na medida em que o liberalismo de esquerda, maioria no campo de esquerda (se é que podemos denomina-lo assim ainda) busca colocar no seio da classe trabalhadora uma confusão entre os interesses do proletariado e os interesses do capital, afastando as possibilidades de avanço da consciência de classe e, consequentemente, da Revolução Brasileira. Assim, para nós, o liberalismo de esquerda e consortes, se mostra da seguinte forma: canta bonito para o metafísico “proletariado” e o “vanguardismo” inócuo, mas esquece da letra quando vai dançar; portanto, inimigo da classe trabalhadora em “defesa” de manifesto e da “democracia”...



[1] Categoria são formas de ser determinações de existência (Marx, Grundrisse).

[2] Marx, por ex., no Manifesto Comunista, é bem enfático nisso.

[3] Ver também “Crítica à filosofia do direito de Hegel”, de Marx.

[4] Mészáros, entre outros, desenvolve essa tese.


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Wesley Sousa

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