Chasin e a “negatividade da política” em Marx

Marx e o infinito: uma introdução ao Cálculo e os “limites” dos ...


Por Henrique Leão Coelho – doutorando em Administração pela UFMG. 

Artigo publicado originalmente – e completo – na revista Adm. Pol. pág. 43-67.

Introdução

José Chasin, em A determinação ontonegativa da politicidade, versa sobre a) a não inerência da atividade política enquanto lineamento ontológico do ser social, e através da apreensão ontológica detida nas obras de 43 e 44 de Karl Marx, b) sobre sua incapacidade de criação de uma nova forma de sociabilidade para além da dominação de classe. A política é posta e entendida, na esteira de Marx, como debilidade instituída da sociabilidade humana, atividade com marco histórico definido, referente à resolução das questões sociais pelo critério da dominação; resolução que se torna sempre parcial e mistificadora em relação aos problemas centrais da realidade existente. É efeito, destarte, da fraqueza societária configurada e empecilho ao que pode ser o desenvolvimento maximizado e universal do humano-genérico, da espécie enquanto sujeito auto-organizador racional de sua socialidade e de suas forças criadoras.

Retomando as injunções de Rota e Prospectiva de um Projeto Marxista, cair no apelo da “ética na política” é, sobretudo, “cair no cântico da impotência” (Chasin, 2000, p.20), descair na cegueira quanto à objetividade social e às possibilidades limitadas engendradas pela própria politicidade; é idealizá-la, por puro amedrontamento ou desconhecimento diante da barbárie objetivada, que se proclama sintomaticamente sem oferecer o remédio fulminante de seus males, porque não pode, desde o início, oferecer. A necessidade da revolução social para emancipação humana se posta como adversária ferrenha dos discursos e das práticas de alma inercial, o próprio “intelecto político”, que protela a libertação humanizadora enquanto agoniza diante de sua fraqueza social revelada. Sobre as consequências da consciência politicista, Chasin descreve sucintamente:

O politicismo transgride os lineamentos ontológicos marxianos em dois pontos fundamentais: 1) Reduz o complexo fundante a fator, empobrece e estreita sua manifestação, irradiação e responsabilidade pelo conjunto da formação; 2) desordena a lógica determinativa, não mais se tem a linha consistente de determinação, as relações determinativas passam a ser voláteis, arbitrárias e fortuitas, tendendo sempre a predominar, em ultima análise, a determinação da política como determinação decisiva (Chasin, 2000, p. 18).

Embora não possamos aqui nos direcionar com a atenção merecida ao complexo da ética, é esta uma temática importante, inclusive porque acabou sendo (supostamente) uma componente operatória do discurso de membros e partidos da esquerda, exprimindo no fundo a total falta de reais proposituras. Tornou-se um sucedâneo empalidecido da emancipação social, ao mesmo tempo em que auxiliou no arrefecimento do potencial de combate em torno dos antagonismos sociais. Observemos, até com maior precisão, o campo da ética e, em verdade, sua oposição à politicidade:

Na essência, ética e política necessariamente se excluem, pois ética, os valores racionais e universais, tal como entendidos em geral e abstratamente — como ideias orientadoras, tem por condições de possibilidade a inexistência ou a desconsideração de constrangimentos, desigualdades e insuficiências, debilidades sociais congênitas que fazem da política uma necessidade histórica e social, por decorrência do humano em nível restrito de desenvolvimento: por isso mesmo são sempre limitadas e, por princípio, transitórias. A única possibilidade da política ética é a política que nega a política, ou seja — só há política radical quando ela nega o próprio poder político, visando, portanto, a resoluções sociais. Assim, a ética está imediatamente presente porque recusa toda forma de poder político, mesmo a que assume transitoriamente rumo à sua extinção (Chasin, 2000, p. 19).

Resulta, em poucas palavras, que “a política ética é a política que nega a política”, ou seja, que a razão política é sempre direcionada para a revitalização cíclica da dominação humana, redominação que se expressa no acalanto e legitimação da heterogestão social, na heterodeterminação da vida cotidiana. Seus pressupostos são a autoalienção irradiada desde a esfera econômica; seus limites são o cerne exploratório da relação-capital pressuposta, que subsume o trabalho, portanto a desigualdade genética e matrizante da sociedade civil- burguesa. Nesse sentido, a intelecção política, segundo Chasin, comprometida com a sociabilidade auto-alienada, desde sua base material, racionaliza precariamente a irracionalidade do capital, torna-se racionalidade circunscrita a limites gritantes, que não pode conceber o horizonte como infinito humanizador, nem a ascendência da capacidade autodeterminativa e autogestionaria da vida social, porque se baseia justamente na degeneração dessas forças sociais. É consciência e prática que aparecem como expoentes da dominação, como asseguradoras de relações reificadas.

Em realidade é torpe a distinção entre legalidade e legitimidade, em benefício da segunda, pois nenhum poder político é ou pode ser inerentemente legítimo, pois é sempre uma forma de dominação, ou seja, de negação da liberdade, da autonomia de uma parte dos homens. Em verdade de todos, ainda que de modo distinto para dominantes e dominados, pois ambos são encarnações diversas da alienação (senhor e escravo). De sorte que a racionalização da política é o voto piedoso de racionalização pragmática e eticização celestial do mofo, a fraqueza social que gera a necessidade de poder extra-social, da incapacidade de autocondução e autonormatização, isto sim racional e ético, das sociabilidades intrínseca e insuperavelmente contraditórias [ ... ] Só é legítimo o poder que nega esse poder discriminatório do poder, isto é, que dissolve a si mesmo. Poder legítimo unicamente porque discrimina para extinguir a discriminação, porque disputa, conquista e usa o poder político para aniquilar o poder político, porque sua conquista de poder e o uso correlato do mesmo, isto é, sua vitória, é simultaneamente sua dissolução, porque compreende, positivamente, a construção de uma nova ordem social, auto-regulada por suas próprias qualidades (Chasin, 2001, p.20).

Ao mesmo tempo em que integra alguma racionalidade, pois reconhece a contradição da sociedade, tenta dar respostas aos conflitos sociais (isto é, opera efetivamente como esfera ideológica), mas o faz, pressupondo e contribuindo na regulação da assimetria explorativa do complexo econômico, quando muito, tensionando-a em tangente superficial e distante da modificação substancial do cerne explorador da vida civil-burguesa. Assim, é racionalidade em sua baixa forma, em sua insuficiência resolutiva dos problemas sociais humano-genéricos enquanto consciência e prática social, doravante.

A negociação é a grandeza e a miséria da política. Grandeza por reconhecer contraditórios e postular a via racional de sua resolução. Miséria porque a natureza de suas resoluções é sempre a prática da conciliação, não podendo nunca levar a contradição até o fim e nessa rota solucioná-la, mas apenas a contorna, de modo que ela retorna mais adiante. A negociação é algo como uma protelação, por impotência resolutiva, à espera de uma resolução futura, que a ultrapassa e não depende dela (Chasin, 2001, p.20).

Não há rota para a revolução no Brasil, já afirmava Chasin. Da “analítica paulista” que nasce em 50 acompanhada do marxismo vulgar partidário (PCB), à década de 80, que reacende um voluntarismo praticista com o PT (partido dos trabalhadores), acompanhado de uma esquerda pós-80 que se limita ao social-democratismo, ao pluralismo, à “perfectibilização” do Estado: eis as linhas gerais da degenerescência.

Chasin disserta também, permitamos a digressão, sobre os nacionalismos no século 20, de um lado manifesto, no fascismo e nazismo, italiano e alemão, países que objetivaram o capitalismo pela via prussiana. De outro, em países capitalisticamente mais débeis, amedrontados, “incompletos e incompletáveis” diante do capitalismo global (mesmo, a empreitada soviética, evidentemente, com suas particularidades) surgiu o nacionalismo ditatorial: Brasil, Romênia, Espanha, Portugal etc. Em outra parte, ao final da segunda guerra, as revoltas africanas e asiáticas em prol da libertação contra a colonização política europeia, que não os liberta da colonização de talhe econômico, mas que apenas sucede politicamente como um novo nacionalismo. Nesse sentido, o quadro dos países do capitalismo periférico a reboque de um nacionalismo político-econômico, da tentativa fracassada de desenvolver sua indústria através de incentivos de Estado e protecionismo, que não os moveu da região periférica do capitalismo global. Em outras palavras, do politicismo ao voluntarismo, sempre dentro do espectro do Estado, ou seja, esquerda que não pode, em grande parte por suas condições objetivas, superar também o estatismo.

O Percurso de Marx para a crítica da politicidade

[...]

Em Sobre a questão judaica, por sua vez, fica mais patente a contraposição entre emancipação política e emancipação humana, pois que torna-se através de malha teórica exemplar, manifesto o teor implacavelmente “religioso/teológico” da emancipação política. Marx postula a crítica ao Estado, mesmo aquele que se apresenta como Estado Burguês clássico e acabado. Estado que objetiva a universalidade abstrata como cerne de sua existência, comunidade política como comunidade do cidadão, do ser igualizado pela régua humano-genérica, portanto, tônica de avanço relativo, como o autor alemão compreende, entretanto, mero rascunho idealista do salto qualitativo e concreto da emancipação humana. Esta, transformação distinta e efetivamente revigorante da verdadeira força social desposada pelo Estado, liame humano-genérico que precisa se cravar no solo concreto da cotidianidade. Em resumo:

“Os limites da emancipação política aparecem imediatamente no fato de o estado poder se libertar de um constrangimento sem que o homem se encontre realmente liberto; de o estado conseguir ser um estado livre sem que o homem seja um homem livre” (Marx, apud Chasin, 2012, p. 49).

Estado que não abole os constrangimentos e desigualdades que regem a vida real, mas que abole unilateralmente da comunidade política estes particularismos; Estado como comunidade de cidadãos realizável em altura discrepante da vida cotidiana do indivíduo concreto, almejante inconsciente da sua realização. Chasin (2012, p. 50) conclui que essa pseudolibertação do homem “depreende-se, ademais, que libertando-se politicamente [e não enquanto individualidade], o homem se libera através de um desvio, por meio de um intermediário, por mais necessário que esse meio seja”, de modo que, ao se “declarar livre pela mediação do Estado, isto é, ao proclamar que o Estado é livre, acha-se ainda subsumido à servidão, porque só reconhece a própria liberdade indiretamente, por meio de um mediador”. Liberdade humana oblíqua é a liberdade da política, promessa que desemboca sempre no superlativismo da comunidade política, portanto, da entidade social que se anula ao patentear a naturalidade da civilização destrutiva regida pelo capital que lhe embasa. Ao passo que o próprio Chasin relembra outro trecho de Marx referente ao modus operandi do Estado, ensejo da naturalização da sociabilidade burguesa, conquanto a pressupõe, mantém e contribui na sua regulação: medida que torna o ser social do capitalismo e o pilar da propriedade privada em esfera não política e terreno impenetrável.

“O estado elimina, a sua maneira, as distinções estabelecidas por nascimento, posição social, educação e profissão, ao decretar que nascimento, posição social, educação e profissão são distinções não políticas; ao proclamar, desconsiderando tais distinções, que todo membro do povo é partícipe igualitário da soberania popular, ao tratar a todos os integrantes da vida real do povo do ponto de vista do estado” (ib., p. 44). Mas, aí se dá a inflexão decisiva, geratriz de contradição igualmente radical: “o estado permite que a propriedade privada, a educação e a profissão atuem a seu modo, a saber, como propriedade privada, como educação e profissão, manifestando sua natureza particular” (ib., p. 44). Por consequência, “longe de abolir essas diferenças efetivas, o estado só existe na medida em que as pressupõe” (Chasin, 2012, p. 50).

Nesse sentido, para a consciência de classe ideologicamente orientada, a reivindicação do aperfeiçoamento do Estado é, simplesmente, intensificação de um aperfeiçoamento contra a própria sociedade real e seus determinantes precisos, pois é reiteração da contradição entre citoyen e bourgeoius, reivindicação pela consolidação do status quo. Faz com que a realidade existente permaneça como realidade natural e a realidade do Estado como realidade abstrata que pressupõe a vida humano-genérica do cidadão inatingível e a vida das desigualdades civis cada vez mais assimilada. Erige-se a denominada “vida dupla” do homem acoplado ao Estado acabado, homem que é citoyen e bourgueois e que tem no último o regente e no primeiro, o subordinado e “servo”.

É muito importante notar que não se trata apenas de uma conciliação contra o princípio de universalidade, que lastreia idealmente os atos políticos, mas de uma subordinação degenerativa da política às particularidades da sociedade civil, no sentido de que “a cidadania, a comunidade política são reduzidas a simples meio”, o que se efetiva estrutural e reiteradamente, dado que “o cidadão é declarado servo do ‘homem’ egoísta, ou seja, a esfera em que o homem age como ser genérico é degradada ao plano em que ele atua como ser parcial” (ib., p. 58), o que é traduzido, “por fim, na declaração de que homem enquanto burguês, e não enquanto cidadão, é que seja o homem verdadeiro e autêntico” (Chasin, 2012, p. 51).

A sociedade civil desponta com suas particularidades culturais e materiais como pressuposto do Estado Moderno, da universalidade genérica abstrata, do projeto da emancipação política; aparece como regência fundante do Estado, como fonte imutável e impenetrável, pois que a atividade política se delimita, se esvai quando tangencia a sociedade civil dada como base natural, podendo apenas tocar a sociedade civil de maneira epidérmica, tópica, não transmutando sua essência, qual seja, a relação-capital.

O homem da vida dupla, que vive como o celeste e o profano, que aprova consciencialmente o intelecto político, que apresenta-se ora como ser genérico, sem de fato fruir dessa condição, sem ser igualizado na vida prática, imerge, em verdade, na dissolução perniciosa das componentes da vida burguesa: vive egoisticamente, tendo nos outros indivíduos, obstáculos e meios, presenciando as relações reificadas da apropriação privada e do trabalho abstrato, entidade ambulante que é joguete de forças estranhas.

Revelando a mistificação do intelecto político, seus limites de reconhecimento e resposta às questões sociais, Marx dirá que o indivíduo se insere no complexo político de modo sofistico. Assim, cabe retomar também que o direito do homem aparece como promulgação do direito do homem separado, clivado do outro, circunscrito em si mesmo, despojado de fonações sociais, liberado para vida egoísta e privatista. Em uma palavra, homem estimulado para a vida do capital que opera pelo modus concorrencial, em que cada força individual não apresenta-se como força social livremente cooperativa, mas, associação anti-social, gregaridade perversa. Trata-se da “liberdade contra os outros”.

Destaque-se, então, a resultante apontada por Marx: “cada homem vê nos outros homens não a realização, mas a limitação da sua própria liberdade” (ib., p. 57). Trata-se, pois, da liberdade mesquinha, negativamente definida; da liberdade posta não pela hominização proporcionada pelas interconexões com os outros — não a liberdade com os outros, mas contra os outros —, pois estes são tomados como os limites da liberdade e não enquanto sua efetiva condição de possibilidade (Chasin, 2012, p. 52).

A soberania do homem ao frequentar concretamente o ser genérico é pautada na possibilidade da emancipação humana e sofisticamente empregada no discurso político, como promessa inalcançável por essa esfera; é pois reiteração no equivoco, a consciência crítica que detenha-se por essa via, porque libera o homem do compromisso socializante e o permite viver a antissocialidade alimentada pela lógica especifica da reificação do capital. Assim, resume Chasin (2012, p. 52):

Ou seja, o gesto que cria politicamente a comunidade dos homens ao mesmo tempo a pulveriza civilmente. Gera, de fato, uma contradição entre elementos mutilados: a comunidade política não tem corpos, apenas evanescências éticas e jurídicas, enquanto os corpos dos indivíduos isolados são destituídos de qualquer comunidade, confinados que estão ao egoísmo naturalista, que os priva de qualquer responsabilidade ética ou traço humano em geral, mesmo porque o egoísmo, enquanto denominador comum, inerentemente dissocia e contrapõe. Numa só frase, o cidadão sem corpo e o homem sem gênero são ambos, efetivamente, contornos atróficos, resultantes de predicações usurpadas. Padecem enquanto tais, irreversivelmente, de supressões desfiguradoras. São perfis depredados de certas forças próprias, que são suas e só suas, aglutinadas e voltadas, por fim, contra eles próprios: a comunidade política usurpa o gênero dos homens reais e a pletora dos homens isolados, degradando e retendo para si toda a efetividade possível, privam a política de corpo; ou, visto em termos da individualidade: o homem real é roubado da cidadania, enquanto o cidadão é saqueado em suas forças sociais.

Considerações Finais

Por fim, no que tange à crítica e recuperação que queremos fazer ao composto ideológico específico em tratamento, podemos resumir que, em verdade, a política, se devidamente apreendida, deve aparecer como “força social usurpada”, degenerada, por isso, se afirma que apostar na política é apostar justamente nas “forças humanos societárias alienadas”. Transmutar o cidadão do reino celeste da comunidade política no indivíduo concretamente vivente é justamente a transposição que deve se apoiar na ruína do próprio Estado: consciência crítico-prática é aquela que demanda construir os vigamentos do verdadeiro ser-genérico, de modo posto na vida concreta, na consecução de relações “desreificadas”, tangidas essencialmente da força social ora usurpada em ordenamento político, enquanto condição objetiva e subjetiva.

Não deixando de permear as reiterações do autor alemão no que concerne às Glosas Criticas, temos que Marx engendra no jornal Vowarts (Avante) uma ruptura pública com o neo-hegeliano Arnold Ruge, coescritor dos anais franco-alemães em seu único volume. Há um contexto de 44 em questão que dá pano de fundo à discussão e à crítica ontológica aprofundada ainda mais por Marx: a sublevação dos tecelões alemães da Silésia, fato sobre o qual Marx aponta grande avanço de reivindicações, vindo, inclusive, a tecer que ela começa onde as reivindicações dos trabalhadores da Inglaterra e França ganham seu ponto final. Nesse interim, a fala de Ruge direciona-se a considerar que um país não político como a Alemanha não pode compreender o problema genético da pobreza, identificando na política, a racionalidade eficiente no entendimento dos problemas sociais. Assim, sentencia Ruge, que ao interpretar a pobreza como problema parcializado e de “falta de caridade”, manifestava-se no poder político alemão seu inacabamento.

Sendo um país sem alma política, seria um país sem compreensão total da sociabilidade. Faltaria, nessa ordem de pensamento, uma revolução na Alemanha que a atualizasse politicamente. No limite dessa problemática, a reflexão marxiana vem a comprovar as incompreensões do intelecto político, mais uma vez retendo-se à factualidade, já alvejada nos textos anteriores, mas agora adensado concretamente com a análise de um evento particular. Aportes como o caso da França e da Inglaterra — países estritamente avançados politicamente — fulguram o quadro, inauguram do Estado Moderno. No entanto, mesmo estes países com grande acabamento e eloquência política, apresentam explicações do pauperismo de talhe deformante, rendendo graças às justificações fugitivas, internas ao seu metabolismo, pois que a explicação feroz e radical do pauperismo conta com a própria conclusão destrutiva do Estado: órgão oficializador da geratriz social que gera miséria e opulência como afrontamento interminável.

“O estado jamais descobrirá no estado e na organização da sociedade a razão dos males sociais. Onde houver partidos políticos, cada um deles encontra a razão de todos os males no fato de que não seja ele, mas seu adversário, que esteja ao timão do estado. Até os políticos radicais e revolucionários procuram a razão do mal não na natureza do estado, mas em uma determinada forma de governo, que tratam de substituir por outra” (Marx apud Chasin, 2012, p. 55).

É por isso que as explicações da pauperização, mesmo na França e na Inglaterra, enveredam pelo campo administrativo, vísceras da própria politicidade, dando a um partido ou outro a causa maléfica da pobreza. Permanecendo no campo administrativo, permanece-se no terreno da eternização do Estado enquanto o órgão inerente ao ser social, elaborando uma pseudogenética ao problema.

“Precisamente porque a administração é a atividade organizativa do estado” e o “estado não pode superar a contradição entre a boa vontade e a disposição da administração e sua capacidade e os meios que tem para operar, sem destruir a si mesmo, já que repousa sobre esta mesma contradição, uma vez que repousa sobre a contradição entre a vida pública e a vida privada, sobre a contradição entre os interesses gerais e os interesses particulares. Daí que a administração tenha de se limitar a uma atividade formal e negativa, pois sua ação termina onde começa a vida civil e sua ação. Por isso a impotência é a lei natural da administração”. Pois “a escravidão da sociedade civil constitui o fundamento do estado moderno” (Chasin, 2012, p. 55).

Marx quer evidenciar, dessa feita, o Estado como sintoma agravado da vida assimétrica, como reiteração da vida alienada e manutenção de impositivos regulatórios de administração da reprodução da vida estranhada, que tem seu cerne na divisão social do trabalho. A apreensão que se destina a pensar pelo intelecto político e a agir estrategicamente pela política põe-se como teleologia/ideação corruptiva, pois a articulação concretamente objetiva entre as esferas sociais é deformada, dessa forma, não serve como esfera ideológica de uma práxis social verdadeiramente revolucionária. É nesse sentido que quanto mais político seja o Estado, mais destinado ao intelecto político, à métrica da sociedade burguesa, às repostas fugitivas quanto ao problema da pauperização, ao obscurecimento da realidade existente. Conquanto a política e o direito, congregados no complexo do Estado, sejam ideologias eficientes, o são pela obnubilação da sociabilidade, portanto orientando a atividade sensível a paradeiros distantes da resolução dos problemas sociais aviltantes do homem.

Articuladamente com tal determinação em geral da natureza do estado moderno, Marx caracteriza também o molde da racionalidade política, oferecendo assim o que podemos chamar de crítica da razão política. As passagens não são muito longas, porém extremamente agudas e originais, ademais de contrariarem radicalmente todos os postulados da filosofia política anterior. Diz ele: “o entendimento político é político precisamente porque pensa dentro dos limites da política. E quanto mais vivo e sagaz seja, mais incapacitado se achará para compreender os males sociais”. E justifica: “O princípio da política é a vontade. Quanto mais unilateral e, portanto, mais perfeito seja o entendimento político, tanto mais acreditará na onipotência da vontade, tanto mais resistirá a ver as barreiras naturais e espirituais que se levantam diante dela, mais incapaz será, por conseguinte, de descobrir a fonte dos males sociais” (Chasin, 2012, p. 56).

Rigorosamente contra o intelecto político enquanto ideação que sustente objetiva reflexão sobre a sociabilidade, Marx toma a política como atividade ideativa que se desdobra em atividade sensível favorável, em sua melhor acepção, à orientação da ontoprática burguesa, denotando sempre que a consciência que se guia pelos meandros da política:

 “Quanto mais desenvolvido e generalizado se acha o entendimento político de um povo, mais o proletariado desperdiça suas energias — pelo menos no início do movimento — em revoltas irrefletidas, estéreis, que são afogadas em sangue. Ao pensar sob forma política, divisa o fundamento de todos os males na vontade e os meios para os remediar na força e na derrubada de uma determinada forma de governo. Temos a prova disso nas primeiras explosões do proletariado francês. /…/ O entendimento político lhes ocultava as raízes da penúria social, falsificava a compreensão de sua verdadeira finalidade; o entendimento político enganava, pois, o seu instinto social” (Marx apud Chasin, 2012, p. 56).

Ademais, está presente no construto teórico em questão que nos “países políticos” o pauperismo também foi explicado por absurdidades extra-políticas, sem alvejar assim mesmo o centro de sua formação: alternando entre a pregação da naturalidade social da escassez, lei natural da miséria, ou mesmo, reconhecendo o problema da miséria como derivado da singularidade deficiente do indivíduo, remetendo ao propalado termo da empregabilidade.

Uma ideologia de “alma política” parcializa a revolução possível, descamba gnosiologicamente, a esfera ideológica, ao erro fatal da prática fetichizada. A revolução política deve ter em si a alma social, quer dizer, apontar pra além da política porque enxerga a genética dessa atividade histórica, suas ideações prevalentes, sua prática limitada, seus pressupostos, assim, seu caráter de mediação temporária para o autodesfazimento próprio (caráter tático subsumido ao novelo estratégico). A “Alma política”, ao contrário, opera funcionalmente como ideologia decadente, cravejada nos quatro cantos do marxismo vulgar e das ditas reivindicações sociais críticas:

Pelo contrário, a alma política de uma revolução consiste na tendência das classes carentes de influência política a ultrapassar sua exclusão do estado e do poder. Seu ponto de vista é o estado, totalidade abstrata que só existe graças ao afastamento da vida real, que é inconcebível sem a contraposição organizada entre a ideia geral de homem e sua existência individual (Chasin, 2012, p. 56).

Assim, de modo terminante, concluímos, categoricamente, com Marx, que na alma política que assombra a consciência crítico-prática de nossos tempos subjaz a sepultura do êxito revolucionário:

Tudo que há de absurdo ou parafrásico numa revolução social com alma política há de racional numa revolução política com alma social. A revolução, genericamente — é a derrocada do poder existente e a dissolução das antigas condições —, é um ato político. Toda revolução dissolve a velha sociedade, assim considerada é uma revolução social. Toda revolução derruba o antigo poder, nesse sentido é uma revolução política. E sem revolução não pode o socialismo se realizar. Este necessita do ato político na medida em que tem necessidade de destruir e dissolver. Porém, ali onde começa sua atividade organizadora, ali onde se manifesta seu fim em si, sua alma, o socialismo despeja seu invólucro político (Marx apud Chasin, 2012, p. 5).


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Wesley Sousa

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