Caique de Oliveira Sobreira Cruz[1]
O “axioma” Marxiano, “As ideias da classe
dominante são, em cada época, as ideias dominantes” (ENGELS, F; MARX, K. 2007. p.72),
contido no livro “A ideologia alemã” é muito pertinente, tendo em vista que
consegue reproduzir fielmente a práxis social de todas as sociedades que estão
fraturadas em classes sociais opostas, fenômeno que ocorre desde a denominada
“revolução da agricultura”, há alguns milênios, que deu fim às chamadas
sociedades dos “caçadores-coletores”, ou nos termos marxistas: “comunismo
primitivo”.
Para compreender o motivo pelo qual as ideias
dominantes são as das classes dominantes, é necessário primeiro visualizar que
as civilizações contemporâneas estão sempre divididas em classes sociais, umas
são dominantes e outras são dominadas. A este sociometabolismo, Marx e Engels
deram o nome de “relações de produção”, que significa como os homens se
relacionam para produzir e reproduzir as condições materiais de sua própria
existência, por intermédio do trabalho como ferramenta que altera a natureza,
como um intercâmbio entre o homem, que é um ser social, e o mundo orgânico e
inorgânico da natureza.
No capitalismo, sistema econômico no qual
estamos inseridos na contemporaneidade, isto é muito evidente, basta capturar o
movimento do real. Nós estamos distribuídos entre duas grandes classes
diametralmente opostas, a burguesia e o proletariado. Lógico que dentro de cada
uma dessas classes existem frações e, também, existem outras classes além
dessas como classes remanescentes dos sistemas anteriores, mas não são centrais
na produção da vida humana atualmente, este era o contexto analisado por Marx e
Engels. A burguesia é a classe dominante, que detém os meios de produção, e a classe
trabalhadora é a dominada que só tem a sua força de trabalho para vender e
sobreviver, são os “assalariados”, como dito em vários momentos por Engels. A
burguesia, como tem o domínio do poder econômico, pode controlar toda a
produção da vida social, seja no âmbito econômico ou mesmo no político, social
e cultural.
Para Marx e Engels, por exemplo, o Estado Moderno
é um aparelho da classe dominante, seja de maneira estrutural, reproduzindo as “relações
de produção” e garantido os interesses históricos de classe, reproduzindo as
vontades do capital, enquanto relação social, mesmo não sendo ocupado pelos
capitalistas ou de maneira instrumental, pois por meio do dinheiro a burguesia
captura o Estado e o move da maneira que garanta seus interesses imediatos,
como bem exemplificado por Engels na obra “Da origem da família, da propriedade
privada e do Estado”. O Estado é um dos fios condutores de busca da hegemonia
na sociedade capitalista por parte dos dominantes, através da força ou do
consenso, como asseverava Antonio Gramsci. Só pelo domínio do Estado, de forma
direta ou indireta pela classe burguesa, já é possível vislumbrar a
assertividade da tese de que as ideias dominantes são as das classes dominantes
em cada época, já que o Estado é um dos grandes aparelhos ideológicos da
sociedade, conduzindo, inclusive, a produção do conhecimento, gerindo as
Universidades e escolas públicas e, também, regulando e fiscalizando o ensino
privado, desde as ementas até as questões mais burocráticas, como vemos no
Brasil através do MEC.
Mas, não é só pelo domínio de classe do Estado
que se justifica o “postulado” marxiano supracitado, pois, a ideologia
dominante perpassa por todos os âmbitos da vida social. Os grandes filósofos e
teóricos de cada tempo expressam as ideias da classe dominante, sendo eles
ideólogos no sentido usado por Marx e Engels em “A ideologia alemã” (analisando
os “pós-hegelianos”), ou seja, como tendo uma visão parcial da realidade, uma “falsa
consciência”, capturando apenas a aparência e não a essência fenomênica (o que
não significa que a ideia esteja certa ou errada, apenas incompleta, parcial. E
nem mesmo que o teórico esteja contando uma mentira, pois ele acredita estar reproduzindo
um pensamento genuíno partindo de um modelo ideal, sem reconhecer as relações
materiais que condicionam as suas próprias ideias), ou mesmo outros que fazem
de maneira deliberada e intencional, como é o caso dos apologistas do capital
que são financiados para criar bases teóricas de consenso, no seio da população,
sobre os “grandes feitos” da sociedade comandada pela classe burguesa.
Podemos recorrer a mais centenas ou milhares de
exemplos que podem corroborar a tese ora analisada. A categoria do trabalho era
vista com péssimos olhos nas sociedades anteriores, o celebrado era a inércia
nas sociedades feudais, todos queriam poder ser como os grandes reis e senhores
feudais, ou, na época do escravismo grego da república ateniense, o trabalho
era algo legado aos escravos, humanos que não eram considerados como humanos, e
sim como objetos. Os “grandes homens” eram os senhores de escravos que não
trabalhavam ou os grandes filósofos que “pensavam”, isto é dado nas obras de
Platão e Aristóteles. Mas agora, na sociedade do capital que precisa de uma
larga produtividade para a valorização do valor, da superexploração do trabalho
e extração de mais-valor, a categoria do trabalho se tornou sacrossanta. Todos
devem trabalhar para alcançar a dignidade, o trabalho dignifica o homem, as
pessoas que não trabalham são consideradas como “vagabundas”. E o mais peculiar
deste alastramento do trabalho, enquanto caracterizador de humanidade, é que os
próprios burgueses não trabalham, mas fingem que o fazem, “administrando” suas
grandes empresas e bancos, já que há a divisão do trabalho entre manual e
intelectual. Evidentemente que não há sociedade possível sem que haja o
“trabalho fundante”, como já destacamos outrora em (CRUZ, Caique. 2018). O que
estamos pontuando neste parágrafo, é a forma como o “trabalho abstrato” da
sociedade do capital passou a ser cultuado como etiqueta de dignidade ou
indignidade, enquanto em formatações societais anteriores o “trabalho” existia,
mas era relegado aos ‘seres inferiores” e tinha uma carga semântica pejorativa.
Esta transformação no signo demonstra a carga ideológica que carrega até mesmo
a “forma-linguagem” da sociedade capitalista.
No âmbito da religião, essa tendência da ideologia dominante fica ainda mais latente com o advento do protestantismo de Lutero e, ainda mais, com Calvino, como descoberto por Max Weber, teórico “liberal-nacionalista”, na sua obra: “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, ao analisar o Calvinismo como mola propulsora e moldadora do espírito do homem perfeito para o máximo desenvolvimento da sociedade capitalista, ou seja, o homem que trabalha, poupa, dá primazia ao individual e não o comunitário, e que tem cede pelo lucro, pois o lucro comprova que é um dos escolhidos pela divindade.
Entretanto, por ser um “Neokantiano” e
“culturalista”, ele operou um recorte analítico, apartando o sujeito do objeto,
e centralizou a sua análise na pesquisa sobre como a ideologia religiosa do
Calvinismo poderia constituir o homem “perfeito” para reproduzir a sociedade do
capital e as influências das religiões na questão econômica, uma espécie de “sociologia
da religião” onde a questão primordial de sua investigação estava na influência
religiosa na economia, deixando escapar, no livro supramencionado, o aspecto da
totalidade social em que há uma interdependência e uma derivação entre todas as
formas sociais. Partindo de uma análise materialista, a concepção que se propõe
mais coerente é a de que a própria sociedade do capital abriu as bases
concretas para que este novo tipo religioso pudesse ser engendrado e, também, ter
angariado grande força contra o catolicismo das eras feudais.
Enfim, o largo crescimento do protestantismo
mostra, nesta transição religiosa, como a ideologia dominante perpassa todas as
formas sociais, a doutrina evangélica louva a categoria do trabalho que
discutimos anteriormente, dentre tantos outros fatores que contribuem para o
assentamento ideológico do capitalismo. Nos séculos XX-XXI tivemos o
crescimento brutal da “teologia da prosperidade” além de outras da mesma
espécie, verdadeiras amálgamas religiosas que servem como formas-ideológicas de
reprodução do capital, seja instituindo uma suposta “ética” no cotidiano dos
indivíduos, seja constituindo estruturas institucionais religiosas que
interferem diretamente na vida coletiva, inclusive, tomando de assalto o Estado
Burguês e acabando rapidamente com a tal noção de “Estado laico” no moderno
Estado Democrático de Direito.
Por fim, o caso do direito também é elementar,
as leis do direito moderno são baseadas nas formas das relações de produção. A
forma-jurídica é uma derivação da forma-mercadoria, como um reflexo espelhado,
não no sentido de cópia, mas de condicionamento e de origem (gênese), uma
relação entre fundante e fundado. A ideia do que é “justo” e do que é “injusto”
tem direta correlação com aquilo que atenta ou não contra a propriedade privada
dos meios de produção, para comprovar isto basta vermos que as bases teóricas
dos ordenamentos jurídicos burgueses, em especial no âmbito civil, configuram
uma réplica da sociedade de trocas e contratos do capital que a reproduz em sua
formalidade. Ou mais, adentrando na práxis social e na seara criminal,
analisando quem está sendo punido na sociedade de classes, a realidade não nos
deixa negar.
Temos como exemplo o Brasil, que passa por um
período de explosão em massa de sua população carcerária, fato comum nas
sociedades capitalistas contemporâneas em que ele está inserido. No país, em
última pesquisa mais detalhada e completa feita pelo Conselho Nacional de
Justiça (CNJ) em 2017, que foi retirada do site oficial, mas que pode ser
encontrada ainda em sites secundários[2], tínhamos o número de
726.712 presos, sendo que os crimes de tráfico de drogas representavam entre
28% a 30% dos processos que envolviam réus presos; o crime de roubo, 21%; o de furto,
16%; o de homicídio, 11%; entre outros em menor escala, segundo o levantamento
de 2017 do Conselho Nacional de Justiça[3]. Desta forma, a maior
parte dos encarcerados estava enquadrada em algum dos artigos da Lei. 11.343/06,
que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – (Sisnad);
que prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção
social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à
produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e define crime. A
maioria destes presos era composta de negros, cerca de 64% a 65%. Do ano de 2017
para o ano de 2019 houve um aumento da massa carcerária absoluta total, que
passou de 726.712 para 812.564 presos, sendo que destes, 41,5% (337.126) são
presos provisórios, ou seja, cujos processos ainda estavam sem trânsito em
julgado, o que, por consequência, também aumentou a porcentagem dos condenados
ou réus relacionados com as tipificações da Lei 11.343/06[4]. Todos estes novos dados
de 2019 foram divulgados pelo Banco Nacional de Monitoramento de Prisões (BNMP
2.0),[5] mas esta pesquisa mais
contemporânea é pouco detalhada em relação às anteriores, pois não houve em sua
metodologia o recorte racial[6] e, também, alguns Estados
não fizeram a computação total de todos os seus presos, o que pode significar
que temos uma população carcerária ainda maior, “O número de presos pode ser
ainda maior porque alguns estados não completaram totalmente a implantação do
sistema e por isso ainda fornecem informações parciais.” (BARBIÉRI, Luiz
Felipe. 2019).
Diante de todos estes dados, fica evidenciado que o Estado brasileiro realiza uma política forte e punitiva de coibição às drogas, por meio da conhecida “guerra às drogas”, como chamada popularmente, onde ela realmente direciona-se, predominantemente, para indivíduos de determinada classe social e/ou cor de pele, constituindo uma forte estigmatização destes grupos sociais no país, como assevera Olmo, citado por Salo de Carvalho:
[...] o problema da droga se apresentava como uma ‘luta entre o bem e o mal’, continuando com o estereotipo moral, com o qual a droga adquire perfis de ‘demônio’; mas sua tipologia se tornaria mais difusa e aterradora, criando-se o pânico devido aos “vampiros” que estavam atacando tantos ‘filhos de boa família’. (OLMO, A Face Oculta da Droga, p.34. In.: CARVALHO, Salo de. 2013, p. 64).
Parte do mesmo entendimento da estigmatizarão o criminólogo, Ribeiro Giamberardino, quando faz a análise da política de criminalização das drogas nos EUA que foi importada para o Brasil, na seguinte citação:
[...] é notável como a partir das políticas criminais decorrem a produção e a difusão de estereótipos sociais e como em torno a estes o discurso da guerra contra as drogas se colocou no centro das atenções, nos Estados Unidos, nos governos Nixon e depois Reagan (1980-1989). A ênfase no tema serviu de base às políticas repressivas do consumo tanto interno, quanto externo, assim como a guerra contra a produção e o tráfico de drogas dos países latino-americanos – sob o argumento da necessidade de reprimir o consumo nos Estados Unidos. (GIAMBERARDINO, André Ribeiro. 2010, p. 212).
No mesmo sentido, Mariana Glenda Santos e Thais Elizabeth Santos Silveira, em artigo sobre o uso crescente das drogas e a criminalização da pobreza, argumentam:
Na presente sociedade capitalista, onde o ter é muito mais importante que o ser, os jovens das periferias das grandes cidades brasileiras são geralmente vítimas da violência e da criminalidade, decorrentes de um violento processo de criminalização que a questão social vem sofrendo, e que atingem as classes subalternas. Recicla-se a noção de “classes perigosas”, sujeitas à repressão e extinção. (SANTOS, Maria Glenda; SILVEIRA, Thais Elizabeth Santos. 2013).
A fictícia “ética” da sociedade do capital não
passa de uma moralidade burguesa, transformando aquilo que é particular
(interesses burgueses) em universal (interesses de todo o povo). Quando, em
verdade, as classes estão colocadas objetivamente em situações de combate e
interesses opostos, não há uma “ética” no capitalismo, já que não existe uma
dissolução entre os antagonismos de classe, há uma antinomia absoluta entre os
interesses individuais e os do gênero humano.
Por todos estes fatores estruturantes das
sociedades divididas em classes, foi que Marx e Engels descobriram que todas as
formas sociais vigentes nestes tempos estão moldadas de acordo com os
interesses das classes dominantes, seja a forma-política, forma-jurídica,
religião, cultura stricto sensu, ou, até mesmo, sistemas de pensamento como os
filosóficos ou sociológicos, etc.
Referências bibliográficas
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CNJ de Notícias, Levantamento dos Presos Provisórios do País e Plano de Ação
dos Tribunais. Estava disponível em:
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BARBIÉRI,
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Acesso em: 06/10/2020.
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GIAMBERARDINO,
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Disponível em: <http://www.cress-mg.org.br/arquivos/simposio/O%20USO%20CRESCENTE%20DAS%20DROGAS%20E%20O%20PROCESSO%20DE%20CRIMINALIZA%C3%87%C3%83O%20DA%20POBREZA.pdf>. Acesso em: 06/10/2020.
[1] Graduado em Direito pela Universidade
Católica do Salvador. Pós-Graduando em Sociologia pela Universidade Estácio de
Sá. Endereço eletrônico: caique_sobreira@hotmail.com
[2] Disponível em:
<https://www.conjur.com.br/2017-dez-08/brasil-maior-populacao-carceraria-mundo-726-mil-presos>
Acesso em 06/10/2020.
[3] Agência CNJ de Notícias, Levantamento
dos Presos Provisórios do País e Plano de Ação dos Tribunais. Estava disponível
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<http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/84371-levantamento-dos-presos%20provisorios-do-pais-e-plano-de-acao-dos-tribunais>.
Acesso em: 01/12/2017. Levantamento apagado do site atualmente, 14/10/2019.
[4] Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm>.
Acesso em 06/10/20.
[5] BARBIÉRI, Luiz Felipe. Disponível em
<https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/07/17/cnj-registra-pelo-menos-812-mil-presos-no-pais-415percent-nao-tem-condenacao.ghtml>
Acesso em: 06/10/2020.
[6] Disponível em:
<https://br.noticias.yahoo.com/negros-perifericos-mais-afetados-aumento-populacao-carceraria-114119040.html>
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