Por Gustavo Machado –
doutorando em Filosofia pela FAFICH/ UFMG
Publicado originalmente no
site Teoria
e Revolução
Data 22 de setembro de 2015
Nos últimos tempos se tem feito muito alarde em
torno do termo pós-moderno. As interpretações vão desde aqueles pensadores que
veem no mundo após a segunda grande guerra, ou pelo menos desde o maio francês,
uma nova forma de organização social, um novo período histórico, comumente
designado de sociedade pós-industrial ou de pós-modernidade, até àqueles que
veem no pós-modernismo uma mera corrente literária fora de moda. Em outras
palavras, a questão gira em torno de se existe ou não uma ruptura entre o mundo
contemporâneo e o que se convencionou chamar de modernidade.
Vários aspectos situados no escopo puramente
teórico podem ser enumerados para justificar tal ruptura. A começar pela
crítica da objetividade do discurso, iniciada nos primórdios da modernidade e
elevada a sua mais alta expressão nos dias atuais. Segundo essa acepção, o
discurso teórico não se refere às relações e coisas reais, mas a si mesmo.
Tornado autônomo e um mero predicado subjetivo dos indivíduos, todo discurso se
transmuta em representação ou, por vezes, em mera invenção daquele que o
enuncia, aquém de qualquer universalidade e objetividade. No curso do século XX
e na esteira dessa autonomização do discurso, toda e qualquer reflexão teórica
de caráter histórico é igualmente negada, e noções como de sujeito histórico ou
progresso histórico são relegadas à um passado moderno de ambições totalizantes
e, enquanto tal, totalitárias. Por fim, a ruptura mais característica das
concepções pós-modernas propriamente ditas é a crítica da razão. Em detrimento
de toda elaboração voltada para compreensão racional da sociedade como um todo
ou mesmo alguns de seus aspectos, se acentua a dimensão puramente subjetiva dos
indivíduos como suas paixões, impulsos, prazeres, pulsões, identidades e assim
por diante.
Salta aos olhos que todos estes aspectos que
caracterizam a chamada “razão” pós-moderna, ainda que aqui sumariamente
elencadas, se centram no indivíduo isolado a despeito de tudo o mais que se
coloque em seu caminho. Ocorre que a preponderância do indivíduo sobre o social
e mesmo sua pretensa autonomização, longe de ser uma tendência recente, é
justamente o que distingue a modernidade europeia de todos períodos
precedentes. Não sem razão, é da emergência da noção de indivíduo isolado na
modernidade que nossa investigação principia. Somente assim, pensamos, pode-se
estabelecer o real lugar do pós-modernismo em nossa sociedade atual. O que ele
de fato expressa de novo e em que medida é apenas um novo discurso que procura
justificar o mesmo.
Modernidade: alicerce do pós-modernismo
No mundo moderno, na esteira do desenvolvimento da
sociedade burguesa, desenvolveu-se, pela primeira vez na história da
humanidade, uma acepção de homem assentada na primazia do indivíduo sobre a
sociedade. Os filósofos gregos e medievais, por exemplo, em geral, teorizavam
sobre o gênero humano: “o que é o homem”, no geral, ainda que, para esses
filósofos, os escravos fossem considerados aquém do gênero humano como um mero
animal falante. Desse modo, mesmo no mundo grego em que primeiro se verifica um
maior desenvolvimento do indivíduo e sua respectiva individualidade, os laços
comunitários entre eles se mostram tão sólidos e diretamente perceptíveis que
distante estamos da época em que os indivíduos pensam a si próprios como seres
autônomos e portadores de uma substância singular.
É somente na modernidade que a concepção de
indivíduo em sua nudez e autonomia irá se desenvolver plenamente. Tal
tendência, que já aparece em filósofos modernos como Descartes e Kant,
desemboca, em autores que se convencionou chamar contratualistas, em concepções
de sociedade fundadas no indivíduo isolado. Estes sustentam a existência de
um estado de natureza que constitui a condição natural do
indivíduo no mundo, sendo a sociedade uma construção posterior somente possível
em função de um contrato social, seja ele estabelecido pela força,
seja pelo pacto consentido entre as partes. O indivíduo passa a ter primazia
ontológica, cronológica e epistemológica sobre a sociedade.
Pelo alcance e propagação de suas respectivas
teses, se reveste de particular interesse para os nossos propósitos a concepção
de John Locke. Para este, o homem era por natureza livre e proprietário, tanto
de si mesmo como de seu respectivo trabalho. Sendo a terra comum a todos os
homens e uma dádiva de Deus, a propriedade privada emerge como um direito
natural do homem, por meio da qual este havia assegurado a vida, a liberdade e
os bens por meio do trabalho. A violação desse estado de natureza, isto é, da
propriedade, por meio de guerras, invasões e inconvenientes de todo tipo,
levaram os homens a estabelecerem um pacto social, instaurando uma sociedade
política ou civil – com um corpo político único, uma legislação própria, o
controle e monopólio do uso da força – tendo em vista a garantia de seus
direitos naturais. Baseado nessa mesma primazia do indivíduo isolado, mas com
distintas acepções de seu estado de natureza, desenvolveram-se as concepções
contratualistas-naturalistas de Rousseau, Hobbes dentre outros.
Longe de constituir um momento solitário de um
longo itinerário de reflexão sobre o homem, a acepção do indivíduo como ponto
de partida da história, e dotado de uma natureza própria, tornar-se-á
largamente hegemônica desde então, permeando o utilitarismo, o empirismo
moderno, a Economia Política nascente e, em diversos sentidos, as principais
correntes de pensamento contemporâneas.
Não sem razão, Marx denominou tais concepções de
robinsonadas. Tal designação tem sua origem no romance Robinson Crusoé de
Daniel Defoe. Este narra a saga de um náufrago que por décadas sobreviveu
isolado em uma ilha tropical e cujas habilidades irão figurar como símbolo do
triunfo do individualismo, exemplo que será explicitamente retomado por Adam
Smith. Frente a esse quadro, Marx enfatiza que o “caçador e o pescador,
singulares e isolados, pelos quais começam Smith e Ricardo, pertencem às
ilusões desprovidas de fantasia das robinsonadas do século XVIII” (MARX, 2011,
p. 39) com os respectivos estados de natureza que lhe servem de fundamento. Põe
em relevo que no “contrato social de Rousseau, que pelo contrato põe em relação
e conexão sujeitos por natureza independentes, não está fundado em tal
naturalismo” (MARX, 2011, p. 39), antes disso, está fundada na sociedade
burguesa baseada na livre concorrência em que “o indivíduo aparece desprendido
dos laços naturais etc. que, em épocas históricas anteriores, o faziam um
acessório de um conglomerado humano determinado e limitado” (MARX, 2011, p.
39).
Esse estado de natureza originário, advogado pelos
pensadores contratualistas, nada mais seria do que “a aparência, apenas a
aparência estética das pequenas e grandes robinsonadas” (MARX, 2011, p.
39). Assenta-se, desse modo, na ilusão de que “indivíduo natural,
conforme sua representação da natureza humana, não se origina na história, mas
é posto pela natureza” (MARX, 2011, p. 40). Em outras palavras, os pensadores
modernos tomaram o indivíduo, tal como se apresentam na sociedade burguesa,
como a expressão atemporal e a-histórica da natureza humana. Desde então, é lugar
comum procurar compreender a sociedade a partir dos indivíduos, e não mais os
indivíduos a partir das sociedades no interior das quais estes se
autoconstituem.
Essa aparência é possível em função da
generalização do trabalho assalariado, que permite aos indivíduos se verem como
livres e independentes de todos os demais. Nas formas sociais não capitalistas,
os indivíduos estão umbilicalmente ligados aos meios de trabalho e às demais
pessoas que integram sua comunidade e, nesse contexto, a acepção de um indivíduo
isolado é impossível. O camponês está preso ao seu lote de terra assim como o
artesão aos seus instrumentos de trabalho e ao sistema corporativo. Ao mesmo
tempo, as relações de exploração se expressam na forma de dominação direta
entre pessoas. O escravo é propriedade de um senhor, o servo se liga
diretamente a um nobre. Em suma, o surgimento do capitalismo pressupõe um longo
processo histórico que dissolveu os laços imediatos e diretos do indivíduo com
sua comunidade e com os meios de produção, pondo-o como um
indivíduo-trabalhador em sua nudez, cuja personalidade passa a ser expressa
unicamente em função de suas capacidades subjetivas. Agora, o indivíduo é, por
exemplo, um médico, um torneiro mecânico, um professor, um empresário
independente do pertencimento a uma dada comunidade e independente da posse ou
propriedade de qualquer meio de produção determinado.
Mais ainda, ao contrário de todas formas de
sociedades precedentes, na sociedade capitalista a totalidade dos vínculos
reais entre pessoas são mediados pela troca e a verdadeira natureza das
relações sociais são obscurecidas. Antes de tudo, porque na “esfera da
circulação ou da troca de mercadorias, em cujos limites se move a compra e
venda da força de trabalho”, aparece como “um verdadeiro Éden dos direitos
inatos do homem. Ela é o reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da
propriedade e de Bentham” (MARX, 2013, p. 250). Em primeiro lugar, é o reino da
Liberdade, pois compradores e vendedores se defrontam enquanto pessoas livres
que, mediante o consentimento mútuo, estabelecem um contrato. Em segundo lugar,
é o reino da Igualdade, “pois eles se relacionam um com o outro apenas como
possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente” (MARX, 2013,
p. 250-251). Em terceiro lugar, é o reino da Propriedade, “pois cada um dispõe
apenas do que é seu” (MARX, 2013, p. 251). E por fim, Bentham, teórico do
utilitarismo por excelência, pois a “única força que os une e os põe em relação
mútua é a de sua utilidade própria, de sua vantagem pessoal, de seus interesses
privados” (MARX, 2013, p. 251).
Como podemos perceber, a esfera da circulação de
mercadorias, enquanto uma esfera em que “tudo se passa à luz do dia, ante os
olhos de todos”, fundamenta grande parte das concepções e ideologias burguesas
que nos são tão familiares. Enquanto universo da liberdade e da igualdade, a
política não aparece mais como o exercício do poder fundado diretamente pela
força e legitimada nos privilégios herdados de uma descendência heroica ou
nobre, mas como o acordo comum entre os cidadãos fundado no diálogo, no
discurso, na comunicação. O “cristianismo com seu culto do homem abstrato é a
forma de religião mais apropriada especialmente em seu desenvolvimento burguês,
como o protestantismo, deísmo etc.” (MARX, 2013, p. 154) e se dissolvem as
religiões assentadas no culto da comunidade, da descendência e da natureza. A
ética utilitarista dos fins se sobrepõe à ética kantiana-aristotélica dos
princípios e das virtudes universais. E por último, como concepção de mundo, emerge
a parábola do liberalismo:
E é justamente porque cada um se preocupa apenas
consigo mesmo e nenhum se preocupa com o outro que todos, em consequência de
uma harmonia preestabelecida das coisas ou sob os auspícios de uma providência
todo-astuciosa, realizam em conjunto a obra de sua vantagem mútua, a utilidade
comum, do interesse geral. (MARX, 2013, p. 251)
Como se vê, o pós-modernismo encontra seu
fundamento histórico nas próprias relações sociais capitalistas, na ilusão do
indivíduo isolado que não dependente de mais ninguém a não ser de si mesmo. Na
ilusão de que sua liberdade é afirmada na exata medida que o papel do outro é
negado. Nosso período histórico, antes de expressar uma ruptura com a
modernidade, antes de expressar uma nova forma de organização social dita
pós-industrial, se mostra, muito mais, como a radicalização e aprofundamento da
modernidade. A dita pós-modernidade é a modernidade elevada a sua mais alta
expressão.
Pós-modernismo como ideologia
Extrair daí que o culto do indivíduo isolado
atualmente existente, com suas múltiplas formas de representação e identidade,
nada mais seria que a repetição das concepções ideológicas típicas do
liberalismo clássico e da modernidade, nos parece é um erro grave. No século
XIX, e mesmo na primeira metade do século XX, os múltiplos discursos
teóricos-ideológicos que dão primazia ao indivíduo são, ao mesmo tempo, um
discurso universal sobre a sociedade, seu progresso e seu futuro.
Historicamente, tais concepções, longe de apontarem para o fim da história,
expressam a luta consciente contra os privilégios de uma nobreza em decadência,
mas ainda poderosa. Distantes estamos de uma concepção de mundo que, além de
afirmar a noção indivíduo isolado, nega a partir disso a própria noção de
sociedade, a possibilidade de conhecê-la, refugiando-se nas representações,
discursos e identidades subjetivas que o indivíduo possui em sua relação
consigo mesmo. Nesse sentido, por exemplo, o individualismo presente em Adam
Smith e, de modo geral, no liberalismo, muito embora se assente, como
anteriormente indicamos, nas mesmas ilusões provenientes da forma de
organização social capitalista, em suas robinsonadas, possuem diferenças
específicas bastante expressivas. Para que a questão se torne clara, cabe
alguns comentários sobre o liberalismo smithiano.
O pensamento de Adam Smith em nenhum sentido
contrapõe o indivíduo à sociedade. Antes disso, está fundado em uma teoria
geral da história e uma teoria geral da sociedade. A mão invisível de Smith não
é guiada pela intencionalidade dos indivíduos puro e simples, pelo contrário, é
resultante da articulação sistemática e total da sociedade, que, segundo seu
modo de entender, expressava leis naturais. Nesse sentido, não se encontra,
sequer de forma latente, em Smith, a concepção de que o indivíduo é tudo e a
sociedade não é nada. Ele tampouco negou a existência das classes sociais e da
luta de classes, reconhecendo, inclusive, que estas decorriam das relações de
propriedade ligadas à terra e o capital. Apesar disso, diferentemente de David
Ricardo, para Smith, a articulação total da sociedade sob bases liberais tende
a estabelecer um equilíbrio e harmonia geral da sociedade em função do
crescimento da produção de riquezas e, em consequência, do barateamento dos
preços que propiciariam maior qualidade de vida ao conjunto dos indivíduos.
Desse modo, para Smith, apenas se atinge as leis naturais que regem a vida dos
indivíduos estudando a sociedade e a história (SMITH, 2006).
Em verdade, a acepção de indivíduo do liberalismo
(não apenas de Smith, mas, se quisermos, da própria escola austríaca das
primeiras décadas do século XX) pouca relação tem com o fenômeno pós-moderno em
sua especificidade. No liberalismo, o indivíduo é cultuado em uma perspectiva
econômica, enquanto proprietário privado que atua livremente no mercado,
contraposto à intervenção estatal nesse domínio. Para justificar tal concepção,
o liberalismo parte de uma análise universal, racional e total da sociedade.
Prega a autonomia dos indivíduos no mercado em benefício da sociedade e em
nenhuma hipótese nega a participação dos indivíduos em instituições, partidos,
grupos tendo em vista a intervenção na esfera pública.
Embora o liberalismo não seja necessariamente
contraditório diante do individualismo pós-moderno das últimas décadas,
tampouco decorre dele. O liberalismo existe (com ou sem esse nome) há mais de
dois séculos, mas somente nas últimas décadas verificamos a descrença absoluta
em qualquer possibilidade de progresso, de revolução social, de emancipação do
homem. O individualismo contemporâneo, a nosso ver, pós-moderno, é indiferente
à realização política do liberalismo e se opõe a ele como concepção.
Esse aspecto torna-se muito nítido se refletirmos,
por exemplo, o discurso oficial que procurou legitimar as recentes invasões do
exército estadunidense no Afeganistão e no Iraque. Diversamente da guerra do
Vietnã, tal empreitada não foi justificada, em primeiro plano, pela necessidade
de universalizar os valores da democracia liberal, mas sob o temor da ameaça
terrorista. A guerra do Iraque e Afeganistão, cujo esforço de guerra extrapolou
os quadros fixos do exército, apenas ganharam apoio popular por meio do
discurso da ameaça terrorista materializada nos acontecimentos de 11 de
setembro de 2001. Tal ameaça, insistimos, não se apoia em nenhum projeto
histórico universal explícito, menos ainda em um projeto meramente liberal, mas
na ameaça às liberdades individuais.
Em suma, o pós-modernismo não expressa um novo
período histórico, antes disso, trata-se de uma radicalização da modernidade.
No entanto, contrapõe-se às ideologias típicas da modernidade, produzindo uma
nova concepção ideológica com especial penetração nos setores da esquerda. O
pós-modernismo tem por fundamento o abandono de toda e qualquer intervenção
voltada para a transformação de uma forma de organização social tomada em sua
totalidade, de todo e qualquer projeto de sociedade. Não sem razão, a
organização em partidos políticos é posta em descrédito, assim como qualquer a
atuação no curso da história com pretensões universais. Ao mesmo tempo,
acentuam-se e se autonomizam os particularismos de todo o tipo, cujos objetivos
jamais extrapolam a livre expressão individual, mantendo a mesma forma de
organização social como pano de fundo. O caminho da construção do pós-modernismo
coincide, nesse sentido, com o caminho da desconstrução do marxismo, seu
verdadeiro alvo e razão de ser.
Referências
MARX, K. Grundrisse. Rio de Janeiro:
Boitempo Editorial, 2011.
MARX, K. O Capital – Livro I. Rio de
Janeiro: Boitempo Editorial, 2013.
SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 4a ed., 2006.