Tradução do artigo de Dani Alexis Ryskamp para o The Continental
Translated by Gabriel Carvalho (Graduando em Ciências Sociais pela UNIVASF)
Data 03 de Jan. 2020
Publicado no site Ontologia e Emancipação (em pt.br)
A família disfuncional mais
famosa da TV na década de 90 tinha, para os padrões de hoje, uma segurança
existencial que é quase um sonho. Uma vida que hoje parece fora do alcance para
muitíssimos estado-unidenses. Me refiro, é claro, aos Simpsons. Homer, um homem
com apenas o segundo grau completo, cujo trabalho sindicalizado na usina
nuclear requeria poucas habilidades técnicas, conseguia sustentar uma família
de cinco pessoas. Casa própria, um carro, comida, exames médicos regulares e o
suficiente de sobra para tomar muita cerveja no bar da esquina eram coisas que
se podiam pagar com um salário. Bart pode ter tido que achar mil dólares para a
família ir à Inglaterra, mas ele não tinha de se preocupar com seus pais
perdendo a casa.
Esse estilo de vida não era nem de longe fantástico em comparação, por exemplo, com os apartamentos ridiculamente grandes em Manhattan dos personagens de Friends. Pelo contrário, era um estilo de vida bem comum — se parecia bastante com o da minha família trabalhadora de Michigan na década de 90.
O episódio “Muito Apu por Quase Nada”, de 1996, mostra o
contracheque de Homer. Ele ganhava US$479,60 por semana, o que dava quase 25
mil dólares por ano. Os contracheques dos meus pais em meados da década de 90
eram parecidos. Assim com a formação escolar deles. Meu pai tinha um diploma de
dois anos da faculdade comunitária da cidade, que ele pagou trabalhando à
noite; minha mãe tinha apenas o segundo grau completo. Até o divórcio dos meus
pais, éramos uma família de três vivendo do salário da minha mãe como
recepcionista de uma clínica, um emprego mediano como o de Homer.
Até
1990, o ano que meu pai fez 36 e minha mãe 34 anos — eles se divorciaram. E,
importante dizer, ambos tinha casa própria — algo bastante razoável para dois
adultos recém-divorciados.
Nenhuma
das casas era muito chique. Creio que a área das duas casas juntas daria o
tamanho da casa dos Simpsons. E a casa era a única fonte de dívida deles; meus
pais nunca tiveram de se preocupar com contas de cartão de crédito. Em 10 anos,
eles já haviam abatido a hipoteca de suas casas.
Nenhum
dos meus pais tinha muito dinheiro de sobra. Lembro de natais em que, olhando
pra trás, pareciam muito com o natal dos Simpsons no seu primeiro episódio que
foi ao ar em 1989: decorações feitas à mão, luzes de natal gastas, um punhado
de presentes. Meus pais não recebiam bônus de natal, ou tinham poupança, então
os melhores presentes vinham de pessoas de fora da nossa família.
A
maioria dos meus amigos e colegas viviam como nós — isto é, da forma como os
Simpsons vivam. Algumas famílias tinham dinheiro guardado, com uma poupança pra
viajar nas férias pra Disney. Outros eram um pouco mais pobres, com os pais
fazendo bicos como Papai Noel de shopping ou fazendo entregas pra complementar
a renda. Mas todos acreditávamos que tudo dava certo no final, com apenas uma
quantidade razoável de esforço.
Ao longo dos anos, Homer e sua esposa, Marge, também tiveram suas dificuldades. No primeiro episódio, Homer também faz bico Papai Noel de shopping pra descolar uma grana extra, depois de Homer saber que não receberia o bônus de natal e a família tinha gasto a poupança do natal pra remover a tatuagem nova do Bart. Eles também ocasionalmente tinham um gostinho de um tipo de vida diferenciado. Na segunda temporada, Homer compra Dimoxinil para crescer seu cabelo. A cabeleira cheia o faz ser promovido a executivo, mas ele logo perde o cargo após Bart derramar o tônico capilar no chão, por acidente e Homer perde seu cabelo novo. Marge encontra um terno Chanel clássico numa loja de descontos e vesti-lo lhe dá entrada no alto escalão da sociedade.
A 32ª temporada dos Simpsons
começou em setembro de 2020. Homer ainda é o ganha-pão da família. Apesar de
ter tido vários empregos ao longo da história do programa, chegando até ser um
roadie dos Rolling Stones, ele volta a trabalhar na usina. Marge ainda é uma
dona de casa, dando conta de criar Bart, Lisa e Maggie e manter o lar suburbano
da família. Mas a vida deles não representa mais a realidade da maioria das
famílias de classe média dos Estados Unidos.
Ajustado à inflação, o
salário anual de 25 mil dólares de Homer em 1996, hoje seria de 42 mil dólares,
60% maior do que a renda média do trabalhador estado-unidense em 2019. Para
além do salário, o mundo para alguém como Homer Simpson é bem menos seguro. A
participação nos sindicatos, que protegem salários e direitos trabalhistas de
milhões de trabalhadores como Homer, caiu de 14,5% em 1996, para 10,3% hoje.
Com esse declínio veio a perda de segurança financeira e muitos direitos
garantidos, inclusive plano de saúde e planos de previdência. No episódio
“Última Saída para Springfield”, Lisa precisa usar aparelho ao mesmo tempo que
Homer perde o direito ao plano odontológico. Não podendo pagar pelo tratamento
dentário de Lisa, Homer faz uma greve. O Sr. Burns, seu chefe, eventualmente
capitula às demandas do sindicato por cobertura dentária, garantindo um
reluzente aparelho para os dentes de Lisa e menos dor de cabeça financeira para
seus pais. O que Homer teria feito hoje, sem apoio do seu sindicato?
O poder de compra do salário
de Homer, aliás, diminui dramaticamente. Uma casa mediana custa 240% mais caro
do que em meados da década de 90. Planos de saúde para uma pessoa custam três
vezes mais do que custavam há 25 anos. A anuidade de uma faculdade hoje é 180%
mais caro. No mundo de hoje, Marge teria de arrumar um emprego, também. Mas até
assim, eles passariam por dificuldades. A inflação e os salários estagnados
levaram a um crescimento de lares com duas rendas, mas também a uma erosão da
estabilidade econômica das pessoas que os ocupam.
Ano passado, minha renda
bruta anual foi de 42 mil dólares — o mesmo que Homer receberia hoje. Foi a
segunda maior da minha carreira. Eu queria comprar uma casa, mas nenhum banco
quis financiar minha hipoteca, especialmente porque eu tinha menos de 5 mil
dólares para dar de entrada. No entanto, meu pai me ofereceu um empréstimo sem
juros. Sem ele, eu não teria sido capaz de ter minha casa própria.
Eu finalmente paguei minha
dívida médica. Mas depois de bater as contas de todas minhas despesas, minha
renda bruta ajustada foi de apenas 19 dólares. E com o juro capitalizado dos
meus empréstimos estudantis acrescentando milhares de dólares na balança, minha
liquidez ainda é negativa.
E eu não tenho três filhos
pra alimentar, vestir e comprar presentes de natal. Não tenho certeza de como
me sustentaria se tivesse.
Alguém que sigo no Twitter, Erika Chappell, recentemente resumiu meus sentimentos sobre Os Simpsons num tweet: “O fato de um programa que originalmente era sobre a bagunça da vida de uma família de classe média passando por apertos econômicos, no fim da era Reagan, hoje, se tornou o sonho de muita gente, é francamente a evidência mais clara da derrocada do capitalismo que eu consigo imaginar”.
Para muitos, uma
vida de constante incerteza econômica — na qual muitos de nós estão a uma
emergência de perder tudo, não importa o quanto trabalhemos — é normal. Bicos
não são mais para conseguir uma grana extra; são uma questão de sobrevivência.
Nem sempre foi assim. Quando Os Simpsons estreou, poucos podiam prever que os
estado-unidenses eventualmente achariam o estilo de vida dessa família algo
inacessível. Mas pra muitos de nós, hoje, é.