Por Gustavo Machado - doutorando em Filosofia pela UFMG.
Publicado originalmente no site Teoria e Revolução
Nos
dias de hoje, uma enorme quantidade de material é publicado sobre o papel dos
serviços na sociedade capitalista. O motivo é evidente. No curso do século XX,
essas atividades denominadas serviços, atividades não produtoras de mercadoria,
passaram a ocupar um espaço quantitativamente muito expressivo em todo e
qualquer país. Em todos os cantos prepondera a fatia dos trabalhadores
assalariados que atuam no chamado terceiro setor.
Destaca-se, nesse debate, a questão de em
que medida o crescimento do setor de serviços altera o caminho indicado por
Marx em O Capital, já que, ali,
vemos uma clara ênfase na classe operária, tanto em relação a sustentação do
sistema capitalista como um todo, quanto em relação as possibilidades de sua
destruição e transformação. Esquematicamente,
podemos indicar três tendências interpretativas quanto a esse tema:
1. A
mais simplória dessas tendências busca resolver o problema com uma discussão
filológica dos termos utilizados por Marx e suas respectivas traduções. Nesse
sentido, procura-se, de uma maneira ou de outra, dissolver as diferenças no
interior da classe trabalhadora em um conceito que seria mais poderoso porque
mais amplo. Acredita-se, ingenuamente, que o problema da enorme estratificação
da classe trabalhadora possa ser contornado com a criação artificial de um
conceito mais geral. Mais ou menos nessa direção caminha Daniel Bensaïd: “Marx
fala de proletários. Apesar de seu aparente desuso, o termo é ao mesmo tempo
mais rigoroso e mais abrangente do
que classe operária. Nas sociedades desenvolvidas, o proletariado da indústria
e dos serviços representa de dois terços a quatro quintos da população ativa”
(grifo nosso) (Bensaїd, 2008, p. 36).
2. Outra
corrente centra-se na diferença entre trabalho produtivo e improdutivo presente
nas Teorias da Mais-Valia e no Capítulo VI inédito de O Capital onde
Marx parece resumir a questão ao fato dos trabalhadores produzirem ou não
mais-valia, tornando indistintos os trabalhadores empregados pela indústria ou
pelo setor de serviços.
3. Em
uma elaboração muito mais sofisticada e séria, Patrick Murray (1998) sustenta
que, se fosse verdade que os serviços fossem improdutivos e, por isso,
representassem uma dedução da mais-valia global produzida pelo capital
industrial, teríamos uma redução da taxa média de lucro em função dessa
dedução. Mais ainda. Como os serviços englobam, hoje, a maior fatia do capital
em grande parte dos países, teríamos o absurdo de que a maioria das empresas
vivem de transferência da mais-valia de uns poucos setores produtivos, o que,
no mínimo, colocaria em xeque a validade da lei da queda tendência da taxa de
lucro que Marx expõe no Terceiro Livro de O
Capital. Afinal, para sustentar o setor dos serviços a taxa média de lucro
teria que ter crescido permanentemente ao longo das últimas décadas.
Retomaremos esse tema mais adiante.
De qualquer modo, no que diz respeito as
duas primeiras tendências acima indicadas, pensamos que de nada adianta
criarmos um conceito mais abrangente se este não encontra respaldo na realidade
ou, então, se este suprime diferenças e determinações que, independentemente de
nossa vontade, continuam a atuar. Não fosse assim, Marx seria, certamente,
adepto de Bakunin. Este último se opunha, até mesmo, a ênfase dada por Marx aos
trabalhadores assalariados, expandindo seu conceito para todos indivíduos e
povos de algum modo oprimidos, fossem eles assalariados, camponeses, pequeno
burgueses, presidiários e assim sucessivamente. Não se trata de excluir ou
incluir nenhum setor da classe trabalhadora em um programa de transformação
social, mas de compreender o seu papel objetivo no interior da sociedade, para,
então, vislumbrarmos com clareza as vias possíveis de sua destruição. Vejamos,
então, como a questão aparece na crítica da economia política de Marx.
O que são os serviços?
Pra início de conversa,
em Marx, o termo serviço não é usado em sua acepção comum. Para ele, um
“serviço é nada mais que o efeito útil de um valor de uso, seja da mercadoria,
seja do trabalho” (MARX, 1996, p. 310). Assim considerado, o efeito útil da
força de trabalho de um operário, isto é, o seu trabalho, é um serviço. O termo
serviço, portanto, não traduz nenhum aspecto específico da sociedade
capitalista. O serviço está para o trabalho assalariado como o produto para a
mercadoria, sua determinação abstrata e a-histórica. Por isso, Marx pode dizer
que o “ ‘serviço’ é o trabalho sob o aspecto exclusivo de valor de uso […], do
mesmo modo que na palavra “produto” se suprime a natureza da mercadoria e a
contradição nela contida” (MARX, 1980, p. 937).
Mas isto não significa que a categoria de
serviços está de todo ausente na critica
da economia política de Marx. Ela serve, em alguns escritos,
justamente para designar a troca de mercadorias em que se vende diretamente a
própria atividade e não o produto da atividade. Nas palavras do próprio Marx:
“Quando o dinheiro se troca diretamente por trabalho, sem
produzir capital e sem ser, portanto, produtivo, compra-se o trabalho como
serviço, o que de modo geral não passa de uma expressão para o valor de uso
especial que o trabalho proporciona como qualquer outra mercadoria” (grifo
nosso) (MARX, 1980, p. 398).
Dito isso, abordaremos, a partir de
agora, os serviços entendidos como atividades não produtoras de mercadoria. Ou
seja, quando o que é vendido é a própria atividade humana – como no caso do
professor, do artista – e não o produto dessa atividade materializado em algo.
Por razões metodológicas, todavia, examinaremos, primeiramente, a troca direta
de dinheiro por um serviço, sem que seu executor seja empregado por um
capitalista. Somente feito esse percurso, poderemos, em seguida, esclarecer o
papel dos serviços produtores de mais-valia e explicitar em que sentido são
produtivos e em que sentido não. No entanto, para chegarmos lá, necessário se
faz esclarecer toda uma série de aspectos específicos dos serviços considerados
em sua forma mais geral, desenvolvidos por Marx de maneira pormenorizada em
interessantes digressões sobre o tema nos Grundrisse e
retomado em obras posteriores.
Os “serviços” em sua acepção geral
O primeiro traço
distintivo dos serviços, assim compreendido, é, evidentemente, o fato de
pertencer à esfera da troca simples de mercadorias ou da circulação simples de
mercadorias (M-D-M), dado que é trocado diretamente por dinheiro, sem mediação
do capitalista e, consequentemente, sem produção de mais-valia e capital
(D-M-D’). Por exemplo, o “lenhador lhe dá seu serviço, um valor de uso que não
aumenta o capital, mas no qual ele se consome, e o capitalista lhe dá em troca
uma outra mercadoria sob a forma de dinheiro” (MARX, 2011, p. 212). Em suma, a
troca de dinheiro por trabalho vivo “não constitui nem o capital, por um lado,
nem o trabalho assalariado, por outro. Toda a classe dos assim chamados
serviços, do engraxate até o rei, pertence a essa categoria” (MARX, 2011, p.
382).
Qual é então, o traço específico da
equação da troca simples de mercadoria: M-D-M, quando um dos polos não é um
produto do trabalho, mas o trabalho mesmo ou uma mera prestação de serviço?
Ora, segundo Marx, na “mera prestação de serviços temos apenas consumo de renda e não produção
de capital” (MARX, 2011, p. 212). Como estamos a considerar, provisoriamente,
os serviços unicamente no caso em que são trocados diretamente por dinheiro com
o consumidor final, como o cabeleireiro ou advogado que vende diretamente seu
serviço a um cliente, sem a existência de um capitalista, não há nada de
surpreendente no fato dessa relação não produzir capital. Da mesma forma, um
camponês que vende diretamente seu produto no mercado não produz capital.
Porém, nesse trecho, já se insinua uma
diferença radical dos serviços em relação a um camponês proprietário de seu
produto. Apesar de ambos não produzirem capital, Marx diz que, no caso do
serviço, existe “consumo de renda”, enquanto no caso do camponês sabemos que
existe produção de valor cujo suporte é sua mercadoria. Em outro trecho dos Grundrisse, Marx é ainda mais
explícito: no caso dos serviços a “troca não é um ato de enriquecimento, não é
ato de criação de valor, mas de desvalorização dos valores existentes em sua
posse” (MARX, 2011, p. 384). E complementa de maneira taxativa: “Não é
necessária uma discussão pormenorizada para demonstrar que consumir dinheiro
não é produzir dinheiro” (MARX, 2011, p. 384). Isso significa que a “classe de serviço não vive de capital, mas de
renda. Diferença fundamental entre essa classe de serviço e a classe
trabalhadora” (MARX, 2011, p. 324).
Como se vê, mesmo neste nível abstrato de
análise, existe uma diferença abismal entre o trabalhador que vende o produto
por ele mesmo produzido e a atividade vendida diretamente no mercado enquanto
serviço. O primeiro produz riqueza, enquanto o segundo a consome, o primeiro
produz mercadoria ou produto e a troca por outra de igual valor, enquanto o
segundo nada produz, apenas se apossando de parte do valor produzido por outros
mediante o serviço realizado. O artesão, por exemplo, não produz riqueza como
capital, mas produz riqueza em sua acepção geral, como valor de uso, suporte do
valor que é trocado. Já o serviçal não produz valor algum, consumindo-o pura e
simplesmente, não importa quão útil para a sociedade seja ou não o serviço que
realiza.
É importante notar que o tema em questão
não é a utilidade do que se produz ou do serviço realizado. Não está em questão
o fato óbvio de que diversos serviços são imprescindíveis para a sociedade e
seus respectivos indivíduos. O que estamos discutindo é o papel dessas
atividades na ampliação ou não da riqueza do modo de produção capitalista. É
unicamente nesse contexto que a utilidade do produto ou do serviço não tem a
menor relevância. Para o capital importa unicamente a sua autovalorização, não
importa se o que produz são livros, armas ou salsichas. Como diz Marx, “esse
trabalhador “produtivo” está tão interessado na merda que tem de fazer quanto o
próprio capitalista que o emprega e que não dá a mínima para a porcaria” (MARX,
2011, p. 213).
Em resumo, o setor de serviço, tal como consideramos
até agora, além de não produzir capital em sua forma histórica especifica,
sequer produz riqueza em sua acepção genérica, presente em todas as formas de
produção, enquanto mera produção de valores de uso.
Isto é assim porque nas “prestações de serviços pessoais, […] o valor de
uso é consumido enquanto tal sem passar da forma de movimento para a forma de
coisa” (MARX, 2011, p. 383). Eis uma afirmação fundamental. Ao não passar “da
forma de movimento para a forma de coisa”, os serviços não criam riqueza
alguma, mas tão somente permite ao seu executor consumir, mediante seu serviço,
uma quota da riqueza produzida, ainda que com a mediação do dinheiro. “Por essa
razão, tal ato [os serviços] também não
é um ato produtor de riqueza, mas consumidor de riqueza” (grifo nosso)
(MARX, 2011, p. 383). Parece inacreditável que boa parte dos estudiosos de Marx
na atualidade não tenham se atentado para a diferença nada sutil entre produzir
e consumir. Entre produzir riqueza e consumi-la na forma de renda.
Cabe,
então, responder a uma pergunta fundamental: se todo serviço é mero consumo de
riqueza, renda, como explicar a acumulação de capital daquele capitalista que
emprega trabalhadores não produtores de mercadorias? Se as atividades não
produtoras de mercadorias não produzem sequer valor, ao contrário, os consome,
como é possível acumular capital empregando meros serviçais? Veremos essa
questão no próximo item, que trata exatamente da noção do trabalho produtivo e
improdutivo.
Os
“serviços” sob a forma capitalista
Penetremos agora no
âmago do problema. Do que expomos acima, é correto dizer que apenas o
proletariado industrial, produtor de mercadorias, é produtivo? E,
consequentemente, todos os serviços são indistintamente improdutivos? Depende.
Duas são as abordagens absolutamente equivocadas que procuram sustentar essa
posição:
1. Na
primeira delas, argumenta-se que somente o trabalho produtor de mercadorias é
produtivo porque, em Marx, trabalho envolveria metabolismo entre homem e
natureza, apropriação dos recursos naturais e transformação em algo material.
Essa abordagem, comum entre certos lukacsianos, não propriamente em Lukács, é
um disparate. O trabalho entendido enquanto metabolismo entre homem e natureza
não é fundamento das sociedades humanas no geral, mas o trabalho tomado em sua
forma mais abstrata, comum a todas formas sociais. Com essa acepção de trabalho
não conseguimos sequer diferenciar o trabalho assalariado daquele dos servos,
dos escravos ou do trabalho coletivo primitivo. O que fundamenta uma forma de
sociedade, para Marx, são seus traços específicos em relação a outras formas de
sociedade e não os genéricos. A confusão repousa no fato de Marx sempre partir
das determinações comuns a todas formas sociais – como produto, valor de uso,
trabalho concreto, cooperação simples, apropriação do trabalho excedente – e,
somente depois, partir para aquelas mais específicas, históricas e fundamentais
– como mercadoria, valor, trabalho abstrato, cooperação industrial, mais-valia.
Segundo Marx, já no Livro Primeiro de O
Capital, esta “determinação de trabalho produtivo, tal como resulta do
ponto de vista do processo simples de trabalho, não basta, de modo algum, para
o processo de produção capitalista” (MARX, 1996, p.310). Não fosse esse o caso,
seria produtivo para o capital o trabalho de um camponês que produz para seu
consumo próprio e de sua família.
2. Outra
abordagem diz que para ser produtivo basta produzir mercadorias, sendo
improdutivo aqueles que não produzem mercadorias. Ora, essa perspectiva,
semelhante à de Adam Smith, também é inadequada. Para que a produção seja
capitalista não basta produzir mercadorias, o que existe há milênios, é
necessário a produção de mercadorias sob o comando de um capitalista, o que
inclui a forma trabalho assalariado. Fosse produtivo unicamente o trabalho
produtor de mercadorias, o trabalho de um camponês ou artesão, que vende seu
produto no mercado, seria produtivo para o capital, o que é falso.
Dito isso, vejamos, então, como a questão
é analisada por Marx.
Em primeiro lugar, no modo de produção
capitalista, a noção de trabalho produtivo pode ser vista sob uma dupla
perspectiva: de sua ampliação e, ao mesmo tempo, de sua restrição. De início, o
capitalismo alarga a noção de trabalho produtivo em relação aos modos de
produção anteriores. Afinal, nesse modo de produção, “o caráter cooperativo do
próprio processo de trabalho amplia […] necessariamente o conceito de trabalho
produtivo e de seu portador, do trabalhador produtivo” (MARX, 1996b, p.136).
Agora, para “trabalhar produtivamente, já não é necessário […] pôr pessoalmente
a mão na obra; basta ser órgão do trabalhador coletivo, executando qualquer uma
de suas subfunções” (MARX, 1996b, p.136). Como se nota, no capitalismo, na
“categoria de trabalhadores produtivos figuram naturalmente os que, seja como
for, contribuem para produzir a mercadoria, desde o verdadeiro trabalhador
manual até o gerente, o engenheiro (distintos do capitalista)” (MARX, 1974, p.
136). Aqui temos claramente um alargamento da noção de trabalho produtivo. Do
ponto de vista histórico, essa ampliação é da mais alta relevância, afinal, em
sociedades como a da Grécia antiga, o pensamento e a ciência permaneciam, regra
geral, a margem do processo de trabalho, sendo, portanto, improdutivos. Agora, um
trabalhador intelectual, desde que imerso no trabalho coletivo de uma empresa
capitalista produtora de mercadorias, é um trabalhador produtivo.
Na sequência, Marx explica que, por
“outro lado,[…] o conceito de trabalho produtivo se estreita. A produção capitalista
não é apenas produção de mercadoria, é essencialmente produção de mais-valia”
(MARX, 1996b, p.136). Ora, o que garante a acumulação de capital por parte de
um capitalista não é o tipo especifico de valor de uso que este oferece aos
consumidores no mercado, tampouco a natureza específica do trabalho que
comanda, mas a extração de mais-valia daquele que vende sua força de trabalho
como mercadoria. Disso se segue que apenas “é produtivo o trabalhador que
produz mais-valia para o capitalista ou serve à autovalorização do capital”
(MARX, 1996, p.136). Temos claramente um estreitamento da noção de trabalho
produtivo, já que, agora, não basta existir metabolismo entre homem e natureza,
não basta tampouco produzir mercadorias, mas é necessário produzir mercadorias
sob a forma capitalista. No entanto, o que dizer daquelas atividades exploradas
sob a forma capitalista, mas que, todavia, não produzem mercadorias?
Nas Teorias
de Mais Valia esta questão é desenvolvida de forma precisa. Segundo
Marx, “só o trabalho que produz capital é trabalho produtivo” (MARX, 1974, p.
136). “Assim, também fica absolutamente estabelecido o que é trabalho
improdutivo. É trabalho que não se troca por capital, mas diretamente por
renda, ou seja, por salário ou lucro” (MARX, 1974, p. 136). Em outras palavras,
as definições de trabalho improdutivo e produtivo “não decorrem da qualificação
material do trabalho (nem da natureza do produto nem da destinação do trabalho
como trabalho concreto), mas da forma social determinada, das relações sociais
de produção em que ele se realiza” (MARX, 1974, p. 136). Afinal, é “uma
definição do trabalho, a qual não deriva de seu conteúdo ou resultado, mas de
sua forma social específica” (MARX, 1974, p. 138). Assim considerado, “um ator
por exemplo, mesmo um palhaço, é um trabalhador produtivo se trabalha a serviço
de um capitalista (o empresário), a quem restitui mais trabalho do que dele
recebe na forma de salário”. Por outro lado, “um alfaiate que vai à casa do
capitalista e lhe remenda as calças, fornecendo-lhe valor de uso apenas, é
trabalhador improdutivo” (MARX, 1974, p.137).
Neste ponto, a maior parte dos
comentadores encerram a questão. Trabalho produtivo é aquele produtor de
mais-valia para um capitalista, de onde se segue que não existe diferença
social alguma entre o trabalho produtor de mercadorias e o trabalho não
produtor de mercadorias, contando que produzam, ambos, mais-valia. Não
percebem, por exemplo, que ao considerar que apenas o trabalho produtor de
mais-valia é produtivo, Marx diz, no Livro Primeiro de O Capital, que a acepção de trabalho
produtivo “se estreita”, antes de se ampliar. Ou seja, para ser produtivo, além
de produzir mercadoria, tem, também, de produzi-la sob o comando de um
capitalista. Ora, como explicar então, as afirmações taxativas de Marx de que
um professor, cantor ou palhaço, desde que produtores de mais-valia, são
trabalhadores produtivos? Como sair desse desconcertante paradoxo?
Acontece que a maior parte dos autores
que trataram da presente questão se esqueceram de uma pergunta fundamental: produtivo em relação a que? Somente uma
razão metafísica pode falar em algo produtivo em si mesmo, produtivo no geral,
assim como absolutizar qualquer outra noção ou categoria. Antes de responder a
questão de se tal ou qual trabalho é produtivo, é necessário esclarecer a que
se refere tal produtividade. Vejamos um exemplo. Nas Teorias
de Mais Valia, Marx observa que todo “serviço é produtivo para quem o
vende. Jurar falso é produtivo para quem o faz por dinheiro vivo. Falsificar
documentos é produtivo para quem é pago por isso. Assassinar é produtivo para
quem é pago pelo homicídio. O negócio de sicofanta, delator, malandro,
parasita, bajulador é produtivo, desde que tais ‘serviços’ sejam remunerados”
(MARX, 1974, p. 275). Ora, na exata medida que tais atividades rendem dinheiro
para aquele que a vende, elas são produtivas em relação ao vendedor, muito
embora, não produzam absolutamente nada para a sociedade e, nesse sentido,
sejam, em relação a sociedade, improdutivas. Ora, para um camponês que produz
para o seu consumo próprio, seu trabalho é certamente produtivo em relação a
ele, mas não é para a sociedade que nada recebe, menos ainda para o capital,
pois não há acumulação do trabalho não pago na forma da mais-valia.
Nesse sentido, a questão é a seguinte:
nos trechos em que trata das atividades não produtoras de mercadorias como
produtivas, Marx se refere a produtividade do trabalho em relação ao
capitalista individual que o emprega, não em relação à sociedade em seu
conjunto, ao capital total por ela produzido. Vejamos a questão detalhadamente.
Logo após precisar a noção de trabalho
produtivo e improdutivo nas Teorias de
Mais Valia diz Marx: “Trabalho produtivo e improdutivo são sempre
olhados aí do ângulo do dono do dinheiro, do capitalista” (MARX, 1974, p.137).
E realmente. Do ponto de vista de um capitalista individual, pouca diferença
faz se seu capital é empregado na indústria automobilística, em uma
universidade privada ou em um circo. O que interessa é a mais-valia e o lucro
que este consegue obter por meio da exploração do trabalho assalariado. No
entanto, a riqueza adentra na esfera do serviço na medida em que é
redistribuída por meio da circulação de mercadorias, ou seja, na medida em que
tais serviços são consumidos por capitalistas e trabalhadores.
Nesse sentido, ser produtivo em relação
ao capitalista individual não coincide necessariamente com ser produtivo em
relação à sociedade. No comércio, por exemplo, apesar do
comerciante-capitalista acumular capital com a exploração dos trabalhadores que
emprega, ele não produz um só átomo de valor e capital, apenas se apropriando
de parte da mais-valia produzida na esfera da produção. Não sem razão, ao
tratar do capital comercial como improdutivo, Marx por diversas vezes explicita
que está se referindo a produtividade em relação à sociedade. Por exemplo, no
Livro Segundo, após ilustrar com o caso de um agente comercial que trabalha 8
horas para pagar seu salário, cedendo 2 horas excedentes ao seu empregador, diz
que “a sociedade não paga essas
duas horas de trabalho excedente, embora tenham sido gastas pelo individuo que
o executa” (MARX, 2015, p.212). No entanto, “a sociedade não
se apropria, por meio desse trabalho, de nenhum produto ou valor adicional”
(MARX, 2015, p.212). Mais adiante diz ainda que “a divisão do trabalho, a
autonomização de uma funão, não a converte em criadora de produto e de valor,
se ela não o é em si, ou seja, já antes de sua autonomização” (MARX, 2015,
p.214) Claro está, portanto, que Marx se refere, aqui, a produtividade do
trabalho em relação à sociedade e não ao capitalista individual.
O mesmo ocorre em relação aos
trabalhadores não produtores de mercadoria, ainda que essa redistribuição se
opere por meio do consumo dos serviços por trabalhadores e capitalistas e não
na transação entre dois ramos distintos do capital, como é o caso do capital
comercial. Isto fica claro no Capítulo Inédito
d’Capital, quando Marx diz que: “um mestre-escola que é contratado com
outros para valorizar, mediante seu trabalho, o dinheiro do empresário da
instituição que trafica com o conhecimento é um trabalhador produtivo”. No
entanto, complementa logo em seguida: mesmo “assim, a maior parte desses
trabalhadores, do ponto de vista da forma, apenas se
submetem formalmente ao capital: pertencem às formas de transição” (MARX,
1975, p.99). Ou seja, do ponto de vista da sociedade, do ponto de vista da
relação entre universidade privada e os demais capitais individuais, temos
apenas troca simples de mercadoria. Motivo pelo qual a “fábrica de ensino” não
produz valor, mas recebe valor da sociedade pelo serviço que ela oferece. Em
seguida, Marx diz de maneira ainda mais clara:
Em
suma, os trabalhos que só se desfrutam como serviços não
se transformam em produtos separáveis dos trabalhadores – e, portanto,
existentes independentemente deles como mercadorias autônomas – e, embora
possam ser explorados de forma diretamente capitalista, constituem grandezas insignificantes se os
compararmos com a massa da produção capitalista. Por isso, deve-se pôr de lado esses trabalhos e
tratá-los somente a propósito do trabalho assalariado que não é simultaneamente
trabalho produtivo. (MARX, 1975, p.99)
Nesta passagem elucidativa, Marx não
considera insignificante as grandezas advindas dos “trabalhos que só se
desfrutam como serviços” em função do seu reduzido número na sociedade, como
comumente se interpreta. Sua grandeza é insignificante, conforme a argumentação
da passagem, pelo fato desses trabalhos não se transformarem “em produtos
separáveis dos trabalhadores”. Isto é assim, não tanto pela materialidade da
mercadoria em si mesma, mas pelo fato desta materialidade constituir o suporte
que permite a mercadoria expressar sua propriedade social de ser valor. Já no
caso dos serviços, produção e consumo
coincidem, de maneiras que “a forma do valor é posta como forma
simplesmente evanescente” (MARX, 2011, p.383). Tanto é assim que em outra
passagem também do Capítulo Inédito lemos:
O
produto não é separável do ato da produção. Também aqui o modo capitalista de
produção só tem lugar de maneira limitada, e só pode tê-lo, devido à natureza
da coisa, em algumas esferas (Necessito do médico e não do seu garoto de
recados). Nas instituições de ensino, por exemplo, para o empresário da fábrica
de conhecimentos os docentes podem ser meros assalariados. Casos similares não devem ser tidos em conta
quando se analisa o conjunto da produção capitalista. (MARX, 1975, p.103)
A passagem é clara. Casos como a “fábrica
de conhecimentos” e todos demais ramos em que o “produto não é separável do ato
da produção” “não devem ser tidos em conta quando se analisa o conjunto da
produção capitalista”.
Em suma, as atividades não produtoras de
mercadorias, os ditos serviços, apesar de produtivas para o capitalista
individual, apenas consome na forma de
renda o capital produzido pela sociedade. Por esse motivo estão fora
daquilo que Marx denomina capital produtivo. Sua forma evanescente, em que o
“valor” produzido é imediatamente consumido, em que se vende o trabalho na
qualidade de valor de uso e não seu produto, impede que os serviços expressem
sua propriedade social de ser valor, consistindo, do ponto de vista da
sociedade, tão somente no consumo de renda ou, ainda, no consumo dos valores
existentes em troca do serviço oferecido. Isto é assim mesmo que esta renda
seja apropriada de maneira desigual no interior de um dado ramo, fornecendo
mais-valia para um capitalista individual.
Ao não compreender esse tema fundamental
de a que se refere a produtividade do trabalho, Ernest Mandel (1978) interpreta
equivocadamente que Marx teria vacilado ao longo dos anos de 1860 sobre o papel
dos serviços, até que estabeleceu, justamente no Livro II de O Capital, sua posição final de que os
serviços seriam improdutivos, em contradição com o que teria dito nas Teorias da Mais-Valia.
Como é possível um ramo do capital
produzir e, ao mesmo tempo, apenas consumir o capital existente? Esse aparente
absurdo desaparece quando deixamos de considerar a questão a partir uma
perspectiva unilateral e abstrata. Ainda que tratando de especificidades do
capital fixo, uma importante citação no fim do livro terceiro explicita tudo
que desenvolvemos no curso de toda nossa argumentação a respeito dos serviços
que se vendem como capital:
“as
definições fixas de renda e capital permutam-se e trocam de lugar entre si,
parecendo ser, do ponto de vista do capitalista isolado, definições relativas
que se desvanecem quando consideramos o processo global de produção. […] É
possível assim contornar a dificuldade se imaginamos que o que é renda para uns
é capital para outros, e que essas definições nada tem por isso que ver com a
particularização efetiva dos componentes do valor da mercadoria” (MARX, 1981b,
p.969).
Por fim, cabe alguns comentários sobre a
interpretação de Patrick Murray (1998), indicada no início do artigo. Murray
questiona que, fosse o fato dos serviços serem improdutivos em relação à
sociedade, seu crescimento ocasionaria no consumo de todo trabalho excedente,
de toda mais-valia, tornando inviável a reprodução do capital. Ocorre que no
caso dos serviços não há redistribuição da mais-valia, como ocorre com o
capital bancário e com o Estado, cuja mais-valia é redistribuída com a mediação
dos juros e dos impostos. Os valores migram para o setor de serviços quando
capitalistas e trabalhadores consomem os serviços disponíveis na sociedade.
Portanto, a fatia do capital total produzido pelo capital industrial é
partilhada com o capital não produtor de mercadorias, os ditos serviços, por
meio do consumo individual, cuja origem é o capital variável e não a
mais-valia. Como diz Marx no Livro Segundo de O
Capital “há somente dois pontos de partida: o capitalista e o
trabalhador. Todas as terceiras categorias de pessoas têm ou de receber
dinheiro dessas duas classes por prestações de serviço ou, na medida em que o
recebam sem nenhuma contrapartida, são copossuidoras do mais-valor na forma de
renda, juro etc.” (MARX, 2015, p.429).
Importante destacar que o crescimento do
setor de serviços abre sim novos horizontes de investigação como, por exemplo,
se teria ou não ocorrido um aumento dos salários médios nacionais pelo fato de
uma gama de serviços ter se incorporado enquanto necessidade de subsistência
para os trabalhadores. Mesmo assim, tais questões não possuem implicações
diretas sobre a queda tendencial da taxa de lucro, como quer Murray.
Dito isso, esboçamos, no quadro abaixo,
sumariamente e esquematicamente, as conclusões até então alcançadas:
Tendência ao aumento crescente dos serviços
Apesar de tudo, não estaria essas reflexões de Marx
envelhecidas em função do enorme espaço quantitativo que os serviços ocupam na
sociedade capitalista atual? Ora, diversamente do que comumente se diz, Marx já
assinala nos Grundrisse a tendência da sociedade capitalista
em fazer crescer, cada vez mais, o número de trabalhadores alocados em
atividades não produtoras de mercadoria. Isto é assim, em primeiro lugar, em
função da produtividade crescente do trabalho. Afinal, na medida que uma classe
de indivíduos “é forçada a trabalhar mais do que o necessário para a satisfação
da sua necessidade – é porque [há] trabalho excedente, de um lado, do outro, é
posto não trabalho e riqueza excedente” (MARX, 2011, p. 325). Em Teorias
de Mais Valia, Marx é ainda mais explícito a esse respeito: a “outra
causa de ser grande o número dos sustentados por renda é a
circunstância de ser grande a produtividade dos trabalhadores produtivos, isto
é, seu produto excedente que os serviços consomem. Neste caso, em vez de o
trabalho dos trabalhadores produtivos não ser produtivo por haver tantos
serviçais, há tantos serviçais, por ser ele tão produtivo” (MARX, 1974, p.
272).
O que tende a decrescer, ou ocupar um espaço cada
vez mais insignificante na sociedade capitalista, segundo Marx, são os serviços
vendidos diretamente pelo seu executor para o consumidor final, isto é, os
serviços enquanto troca simples de mercadoria em sua forma tipicamente
pequeno-burguesa. Já sob emprego de um capitalista, como vimos, a tendência é
oposta.
Por isso, no “que diz respeito à sociedade como um
todo, a criação do tempo disponível, consequentemente, [é] também criação do
tempo para a produção de ciência, arte etc.” (MARX, 2011, p. 324). Por fim,
menciona Marx todo um conjunto de setores da sociedade que vivem de renda e não
da produção:
Na própria
sociedade burguesa, faz parte dessa rubrica ou categoria toda troca de
prestação de serviço pessoal por renda – do trabalho para o consumo pessoal,
cozinha, costura etc., jardinagem etc., até as classes improdutivas,
funcionários públicos, médicos, advogados, intelectuais etc. Todos os criados
domésticos etc. Por meio de suas prestações de serviços […] todos estes
trabalhadores, do mais humilde ao mais elevado, conseguem para si uma parte do
produto excedente, da renda do capitalista. (MARX, 2011, p. 385)
Como se vê, o aumento do setor de serviços apenas
eleva o peso social do setor que produz a riqueza por eles consumida.
Contraditoriamente, o crescimento numérico do setor de serviços, apenas eleva
sua dependência frente aos setores produtores de mercadorias. Longe de negar os
prognósticos de Marx, o crescimento do setor de serviços apenas os reforça e
confirma.
Referências
MARX, KARL. O Capital: Crítica da Economia
Política. São Paulo: Abril Cultural, 1996. Livro primeiro, Tomo 1.
MARX, KARL. O Capital: Crítica da Economia
Política. São Paulo: Abril Cultural, 1996b. Livro primeiro, Tomo 2.
MARX, KARL. O Capital Livro II. Rio de
Janeiro: Boitempo Editorial, 2015.
MARX, KARL. Teorias da Mais Valia. História
crítica do pensamento econômico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.
v. 1.
MARX, KARL. Teorias da Mais Valia. História
crítica do pensamento econômico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
v. 2.
MARX, KARL. Grundrisse. Rio de Janeiro:
Boitempo Editorial, 2011.
MARX, KARL. Capítulo Inédito D’o Capital.
Porto: Escorpião, 1975.
BENSAÏD, DANIEL. Os irredutíveis: teoremas
da resistência para o tempo atual. São Paulo: Boitempo, 2008.
MANDEL, ERNEST. ‘Introduction’ to Karl
Marx, Capital, Volume 11, trans. David Fernbach, 1978.
MURRAY, PATRICK. Beyond the “commerce and industry”
picture of capital. In: Arthur, C. and Reuten, G. (eds.) The
Circulation of Capital: Essays on Volume Two of Marx’s Capital. London:
Macmillan, 1998.