Ford, renúncias fiscais e a dialética do capital

Fábrica da Ford em São Bernardo do Campo (SP) foi fechada em 2019 — Foto: Reuters/Nacho Doce


Por Gabriel Yuji – Mestre em Sociologia pela UFGD

Sobre a saída da Ford do Brasil, o que eu tenho a dizer é que as pessoas que se colocam no campo da esquerda precisam sair do imediatismo - tanto histórico quanto econômico e político. Ultimamente tudo que acontece no Brasil seja “culpa do Bolsonaro” - ele é um péssimo governante, ok; mas isso é só reverter o discurso a-histórico que sempre criticamos por parte da direita.


O capitalismo se sustenta em um movimento contraditório. De um lado, como muitos apontaram, esse é um fato ruim: vai gerar desemprego e é um sinal de que a economia do Brasil não vai bem. De outro, uma multinacional estrangeira é uma forma de imperialismo (não esqueçamos!) que se aproveita da mão de obra barata e quase sempre conta com isenções fiscais do Estado - o que é um bom lembrete de como capitalismo e Estado andam juntos.


Aí que entra a questão histórica. A Ford na América do Sul já está em crise desde 2013 [1] - ano em que a “marolinha” de 2008 chegou ao Brasil. 2013 também foi o ano até o qual a empresa ganhou 65% de abate no seu ICMS [2] - o que remonta a uma tradição antiga de renúncia fiscal por parte do Estado brasileiro. Em 1999, por exemplo, ficou famosa a “emenda Ford” [3] através da qual o presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), mudou várias leis para que a empresa tivesse mais benefícios fiscais caso se instalasse na Bahia em vez do Rio Grande do Sul. O então presidente FHC sancionou a medida, renunciando 180 milhões por ano (dos 700 milhões originalmente propostos até que melhorou).


A Ford já teria recebido mais de 20 bilhões em incentivos fiscais desde então [4], atravessando o governo de FHC e passando pelos governos Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro - o que evidencia a continuidade das políticas neoliberais adotadas por todos os governos a despeito das diferentes tonalidades das quais se pintam. Assim, dentro das contradições do capitalismo subordinado em que vivemos, não é a melhor das notícias a saída da Ford do país e seus consequentes 5 mil desempregados. Porém, ao analisarmos a história da sua inserção e de outras montadoras, podemos ver que elas não são também as mais benéficas.


Pelo contrário, a política de “guerra fiscal” contribuiu “para aumentar a cota de transferência de recursos públicos para o setor privado. As condições oferecidas às grandes corporações provocaram um impacto negativo em todo o setor manufatureiro anteriormente instalado, em especial no setor de autopeças, cujas principais empresas nacionais foram absorvidas pelas estrangeiras. Aquele que já foi o maior setor de autopeças em toda a América Latina foi desmobilizado com a entrada de investimentos no setor automotivo”, dizia o sociólogo Glauco Arbix em... 2002! [5]


Porém, se Bolsonaro ainda mantinha os incentivos via BNDES (e disse que vai cobrar a saída da empresa do Brasil [5]), o que houve? É válido ressaltar que o mercado de automobilísticos - como todos os outros, já diria Marx - tende para uma monopolização. O recente anúncio da junção das já fusões Fiat-Chrysler e Peugeot-Citroen - que eram “apenas” as 8ª e as 9ª maiores empresas do ramo [6] - só evidencia o que já dava sinais com a “aliança estratégica” Renan-Nissan-Mitsubishi em 1999 e a compra da Kia pela Hyundai em 1998 e outras compras "menores" como os 50% da Jac pela Volkswagen e parte da Nikola pela GM - essa última inclusive tendo quase falido na crise de 2008 e tendo sido salva pelo Estado [7]. Ou seja, uma empresa individual nem sempre consegue sobreviver na era dos monopólios.


Por fim, vale ressaltar que, com exceção de países desenvolvidos de mais tradição como Japão, Alemanha, EUA, Itália e França, das 10 maiores montadoras apenas uma vem de um país com um desenvolvimento recente: Coreia do Sul. Na contramão do neoliberalismo no mundo e da política de isenção fiscal brasileira, o país asiático investiu em uma indústria nacional de ponta entre os anos 60 e 90. Foi o que o Brasil não fez - ou não pôde fazer - por ser um país dependente e semicolonial. (E olha que o Brasil já teve a marca Gurgel, que faliu, e a Troller, que foi comprada pela Ford.)


Agora, como diria o economista sul-coreano Ha-Joon Chang [8], depois de se beneficiar do protecionismo estatal, o imperialismo “chuta a escada” de um país que ainda tem sua fonte de “riqueza” no aprofundamento do subdesenvolvimento que representa a venda de commodities do agronegócio e que teve uma desindustrialização absurda desde os anos 80/90 - promovida pelo Estado e os governos das mais variadas tonalidades [9]. A saída da Ford é só a cereja no topo do bolo.


Já diria o Face da Morte na virada do século: “Vê se pode, no Congresso muda a lei em benefício da Ford / Enquanto o povo passa fome, é humilhado e só se fode”. Continua atual e é mais histórico do que muita “análise” por aí.


REFERÊNCIAS

[1] https://g1.globo.com/.../ford-fecha-fabricas-e-encerra...

[2] https://www.sindmetalsjc.org.br/.../452/entenda-o-caso-ford

[3] http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc10079902.htm

[4] https://blogs.oglobo.globo.com/.../ford-recebeu-r-20-bi...

[5] https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext...

[6] https://br.noticias.yahoo.com/com-r-335-milh%C3%B5es-em...

[6] https://www.uol.com.br/.../veja-os-10-maiores-grupos-de...

[7] https://www.terra.com.br/.../governo-dos-eua-intervem...

[8]https://brasil.elpais.com/.../econ.../1515177346_780498.html

[9] https://horadopovo.com.br/foi-a-submissao-ao.../, https://brasil.elpais.com/.../econ.../1515177346_780498.html

 

Acervo Crítico sempre abre espaços para colunas de Opinião para nossos seguidores e leitores. Caso queiram contribuir, entrem em contato conosco!

Wesley Sousa

Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem