O coronavírus e a direita pós-moderna

O que tem a ver o ceticismo da direita em relação ao coronavírus com a filosofia pós-moderna de Thomas Kuhn? 

By John Horgan, on March 9, 2020.

Translated by Wesley Sousa (UFSJ).

Publicado originalmente no site Scientific American.

 

Estou me recuperando de uma gripe, então tenho passado mais tempo sozinho do que o normal ultimamente, com ideias estranhas girando em meu cérebro febril. Recentemente, um monte de pensamentos diferentes – sobre Thomas Kuhn, negação da AIDS, George Bush, Errol Morris, Trump e, claro, o coronavírus – agruparam-se de uma forma que me fez pensar: postagem no blog!

Vou começar com Kuhn. Ele é um filósofo da ciência que argumentou, em seu livro “A estrutura das revoluções científicas” (1962), que a ciência nunca pode alcançar uma verdade absoluta e objetiva. Realidade é incognoscível, sempre escondida atras dos véus de nossas percepções, preconcepções ou “paradigmas”. Pelo menos foi o que pensei que Kuhn argumentou, mas seus escritos eram obscuros que não davam a ter certeza. Quando o entrevistei em 1991, estava determinado a saber quão cético ele era realmente.

Realmente muito cético, descobriu-se. Nos falamos por várias horas no seu escritório no MIT, e me peguei defendendo a ideia de que a ciência faz algumas coisas certas. Em dado momento, contei a Kuhn que sua filosofia se aplicava a campos tidos como “metafísicos”, como a mecânica quântica, mas não a domínios mais simples, como o estudo de doenças infecciosas.

Para um exemplo acima, trouxe a AIDS. Alguns céticos, o notável virologista Peter Duesberg, estavam questionando se o chamado vírus da imunodoficência humana – HIV -, realmente causava a AIDS. Esses céticos estavam certos ou errados, eu disse, não certo ou errados dentro de um contexto linguístico-cultural particular. Kuhn balançou a cabeça e vigorosamente afirmou:

“Diria que há muitos motivos para derrapagem. Há todo um espectro de vírus envolvidos. Há todo um espectro de condições que a AIDS é um ou várias, assim por diante... penso que tudo isso vir à tona, você dirá, ‘rapaz, vejo porque [Duesberg] acreditava nisso, e ele estava no caminho certo’. Eu não vou te dizer que ele estava certo ou errado. Nós não acreditamos em mais nada disso. Mas nem vamos acreditar mais que essas pessoas que disseram que eram a causa disso vão acreditar... A questão sobre a AIDS é como a questão clínica e o que a entidade doença em si não é – está sujeita a ajustes. E assim por diante. Quando se aprende a pensar diferente sobre essas coisas, se feita, a questão certa ou errada passa longe de ser uma questão relevante”.

Isso foi um típico modo de como Kuhn falava. Como era para demonstrar seu próprio ponto de vista sobre uma linguagem obscura, ele incessantemente qualificou suas próprias declarações. Ele parecia incapaz de dizer alguma coisa de forma inequívoca. Mas o que ele dizia era isso: mesmo quando se tratava de uma questão aparentemente direta – e vital importância! – se o vírus HIV causava AIDS, não podemos dizer qual é a “verdade”. Não escapemos da interpretação, subjetiva, contexto cultural, e por isso, nunca podemos dizer se uma determinada afirmação é objetivamente certa ou errada. Chamo essa perspectiva de pós-modernismo extremo. Não sou um pós-modernista extremo. Sim, a ciência é um empreendimento subjetivo e culturalmente contingente, e a linguagem dissimula tanto quando revela, mas às vezes a ciência acerta as coisas. A ciência descobriu elementos e galáxias, bactérias e viroses, isso não foi inventado.

 

Nas décadas de 60 e 70, o pós-modernismo foi popular na esquerda, nos tipos de contracultura, pelos quais associaram ciência ao capitalismo, militarismo e outros maus “ismos”. Mas nas últimas décadas, o extremo pós-modernismo – e especialmente a ideia que todas as reivindicações refletem os interesses do reivindicador – tornou-se ainda mais popular entre os de direita.

 

Isso ficou aparente no início da administração de George W. Bush, quando um alto funcionário oficial do governo, em entrevista ao New York Times, Ron Suskind, notoriamente desprezou a “comunidade baseada na realidade”, que ele definiu como pessoas que “acreditam que soluções emergem de estudos sensatos da realidade discernível”. O oficial de Bush continuou: “isso não é mais assim que o mundo trabalha. Somos agora um império e, quando agimos, criamos nossa própria realidade”.

Em verdade, o pós-modernismo de direita se tornou ainda mais virulento depois da eleição de Barack Obama, em 2008, como Nicholas Kristof do The New York Times lembrou em recente coluna. Em 2009, depois de oficiais do Centro de Controle Doenças e outras agências começaram a instar os americanos para vacinação contra a gripe suína, declarou o apresentador televisivo, de direita, Rush Limbaugh: “Eu não tomarei a vacinação justamente porque disse agora que eu devo”. Gleen Beck (lembra dele?) harmonizou: “Se alguém tivesse gripe suína agora, faria com que tossissem em mim. Faria exatamente oposto do que a Segurança Interna diz”. Donald Trump assegurou à Fox News que a “gripe vai passar” e que “pessoas vacinadas podem ser muito perigosas”.

[Nos EUA,] 60 milhões de americanos foram infectadas pela gripe suína, 274 mil foram hospitalizadas e 12,469 morreram, de acordo com a CDC. Um estudo publicado pelo analista de políticas públicas, Matthew Baum, de Harvard, descobriu que as pessoas nos estados republicanos vermelhos eram menos propensas a vacinarem contra a gripe e, portanto, mais propensas a morrerem. No entanto agora, Trump e Limbaugh, por razões ideológicas estão minimizando o coronavírus, que Limbaumgh comparou ao “resfriado comum”. “Embora fanfarrões de direita possam enfurecer os democratas”, conclui Kristof, “eles às vezes representam o maior perigo para seus verdadeiros crentes”.

O cineasta Errol Morris, que estudou com Thomas Kuhn na década de 70, e acabou destestando-o, sugeriu que Kuhn é parcialmente culpado pela ascensão do pós-modernismo de direita. Como argumentei anteriormente, eu não acredito na hipótese de Morris. Acho, antes, que o pós-modernismo kuhniano e o pós-modernismo de direita representam casos de evolução convergente. Trump e seu desprezo pela verdade evoluiu não de debates filosóficos agitados [poderia ser o caso do Brasil, por exemplo – W.S], mas de táticas brutais utilizados por fortes homens totalitários, que acreditam que a verdade é tudo que eles dizem. Não culpo Thomas Kuhn por Trump, pelas Fake News, assim como não podemos culpá-lo pela propaganda de Hitler e Stalin.

 

Qual pode ser o verdadeiro problema do pós-modernismo de direita? Honestamente, não sei. As reclamações de especialistas liberais como Kristof provavelmente exacerbam o problema, se é que surtem algum todo efeito. Suspeito que os direitistas reconsiderem seu ceticismo extremo somente quando a realidade – na forma de uma pandemia devastadora, uma seca, inundação ou incêndio – surgir e atingir seus rostos, como se dissesse, “eu os refuto assim”. Mesmo assim seria provavelmente tarde demais ou insuficiente.

A propósito, a previsão de Kuhn que Duesberg viria ser visto como nem certo ou errado, acabou sendo, bem, errado. A evidência que HIV causa AIDS foi esmagadora, e a negação do vínculo HIV-AIDS é vista como moral e empiricamente errada. Em parte por causa da influência de Duesberg, o governo sul-africano reteve medicamentos anti-retrovirais de seus cidadãos durante anos, resultando em mais de 330 mil mortes desnecessárias, de acordo com um estudo em 2008.

O que quer dizer que dizemos sobre isso, a realidade tem sempre a última palavra.

Wesley Sousa

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