por Vitória Regina - graduanda em Psicologia pela UFMS
Publicado originalmente na Revista Badaró
Data 05 de Abril de 2020
Há
26 anos a vida de Kurt Cobain chegara ao fim. Era 5 de abril de 1994, um dia
nublado e chuvoso em Seattle. Após três dias, um eletricista – que estava na
casa de Kurt e Courtney Love – encontrou um corpo duro e estendido no
chão, ligou a uma rádio local chamada KXRX-FM e, em troca de ingressos para um
show do Pink Floyd, descreveu o cenário. Era o fim do Nirvana e
também um anúncio do fim do subgênero do rock alternativo intitulado “grunge”.
Para
a revista Rolling Stone, Kurt foi o último grande ícone
do rock de que se tem notícia.[1] Não é para
menos, o Nirvana foi a maior banda de rock da década de 1990. O segundo álbum
do trio, Nevermind,
desbancou Michael Jackson do topo da lista da Billboard – parada musical mais
importante dos Estados Unidos. Kurt Cobain se consagrou como um dos artistas
mais comentados das últimas três décadas.
Quem
acompanhou minimamente o movimento da indústria da música nos últimos anos
– especialmente em datas significativas como 20 de fevereiro e entre os
dias 5 e 8 de abril – viu o rosto de Kurt ser estampado em diferentes
capas de livros, revistas e jornais. Além disso, diferentes documentários e
filmes foram gravados na tentativa de exibir algo inédito de Kurt. Familiares,
amigos, desafetos e até a polícia de Seattle dedicaram seu tempo para falar
algo a respeito a vida e/ou a morte do astro.
Mas
por que esse interesse gigantesco em cima de uma figura como Kurt Cobain? Por
que o que ele vestia tornou-se mais importante – e superfaturado – do que suas
falas ou anotações em diários? Por que fazer parte do Clube dos 27 é sempre
comentado, enquanto seu posicionamento político é sempre deixado extremamente
de lado? Bom, nós sabemos o porquê. E a intenção deste texto é apresentar uma
espécie de desconstrução do mito criado em torno de Kurt Cobain.
Durante
todo o período de existência do Nirvana, a banda sempre demonstrou preocupação
com questões sociais e esta preocupação não se dava apenas por um apoio aqui e
outro ali. Diversas vezes a banda realizou shows beneficentes para arrecadar
dinheiro para instituições que lidavam com o tratamento de AIDS/HIV[2], combate ao
racismo, luta pela descriminalização do aborto e direitos da comunidade LGBT.
No
final de dezembro de 1992, o Nirvana lançou um álbum de coletânea intitulado Incesticide e
a mensagem que o encarte do disco é a seguinte:
A
essa altura tenho um pedido para os nossos fãs. Se um de vocês de alguma
maneira odeia homossexuais, pessoas de outras raças ou mulheres, por favor –
nos deixe em paz! Não vá aos nossos shows e não compre nossos discos.
No
dia 30 de outubro de 1992, o Nirvana fez um show no Estadio José Amalfitani em Buenos Aires.
Escolhidas para abrir o show, Calamity Jone e Los Brujos tocaram para o público
argentino antes da atração principal. Todavia, a plateia vaiou e desmereceu a
primeira banda que era majoritariamente formada por mulheres. Ao saber disso,
Kurt Cobain buscou provocar a multidão desrespeitosa e dominada por homens.
Como ‘Teen Spirit’ era a música mais popular da banda e tocava praticamente em
todas as rádios, a banda decidiu não tocá-la porque isso irritaria o público.
Em
fevereiro de 1993, após os shows no Brasil, Kurt Cobain foi pessoalmente tentar
uma entrevista com a revista Advocate – destinada ao público gay.
Essa atitude de Kurt foi uma tentativa de fazer os fãs do Nirvana comprarem
revistas direcionada aos homossexuais.[3] Cobain
dizia “odiar as pessoas misóginas e escolheu não se associar a elas”.
Entretanto, durante a mesma entrevista, Kurt diz que
(…) há coisas que podem ser aprendidas
com pessoas assim. E por que não tentar persuadi-las a pensar diferente em vez
de apenas bani-las, colocar um veto nelas, e não lhes dar a mínima? Tudo o que
isso provoca é ressentimento e elas nem vão pensar sobre as coisas que fazem de
errado (AZERRAD, 2008, p. 321).
Não
se sabe ao certo se Kurt chegou ou não a ter algum tipo de relação sexual com
algum homem. Alguns amigos de Kurt dizem que ele era um bissexual praticante e
que Courtney Love – sua companheira – não tinha problemas com isso. Entretanto,
Danny Goldberg[4] em Serving
the Servant: Remembering Kurt Cobain[5] afirma que
Kurt nunca teve alguma relação gay. Mas que ele
(…)
sempre identificou a comunidade gay como aliada na luta contra a intolerância e bullying e muitos de seus heróis nas
artes eram gays. Ele descreveu em entrevista a um fanzine a sua cidade natal,
Aberdeen: ‘É uma comunidade bem pequena repleta de pessoas com mentes pequenas.
Basicamente se você não estiver preparado para se juntar à indústria madeireira
você vai apanhar ou ser expulso da cidade (GOLDBERG, 2019).
Ainda
em 1993, Kurt Cobain, Krist Novoselic e Dave Grohl voltaram ao estúdio para
fazer o terceiro e último álbum da banda, conhecido como In
Utero. Como em Incesticide, no encarte
deste álbum também havia uma mensagem aos fãs do Nirvana: “Se você é sexista,
racista, homofóbico ou basicamente um idiota, não compre este CD. Eu não me
importo se você gosta de mim, eu odeio você”.
Em
entrevista dada à revista Rolling Stone em fevereiro de 1996, Krist Novoselic –
baixista do Nirvana – afirma que o banda sempre foi política. Como Kurt, Krist
também era fã de bandas como Dead Kennedys, Maximumrockandrol e MDC. O baixista
afirmou que passou a se politizar com ajuda das bandas supracitadas e, pelo
fato de não gostar do ex-presidente republicano Ronald Reagan[6], procurou
artistas que tivessem uma voz anti-Reagan.
Durante
toda sua vida, Kurt manteve centenas de diários e, após um contrato com
Courtney Love, a Riverhead Books publicou uma série de escritos e desenhos do
músico.
Publicado
em 2003[7], a coletânea Journals chama
a atenção dos fãs pelos desenhos, letras das canções do Nirvana, projetos e,
também, estado de saúde – física e mental – de Kurt. O posicionamento político
sempre passou batido nas falas a respeito de Journals. A romantização do
sofrimento, depressão e suicídio.
Todo
fã do Nirvana sabe quão explosivo Kurt Cobain era em um show – chegou a
quebrar um braço após pular na bateria de Dave Grohl
durante o Reading Festival de 1991 . Mas fora dos palcos Kurt era calmo e
gostava de discutir ”com calma e racionalmente os pontos de vista de maneira
conformista, apesar de me considerar de extrema-esquerda”.[8]
Sobre
a interseccionalidade, Kurt chegou a afirmar que sua intenção era ”utilizar a
indústria do entretenimento como meio para provocar mudanças revolucionárias”.
No que diz respeito ao modo de organização da sociedade, Kurt escreveu que no
topo da cadeia alimentar deste tipo de sociedade encontra-se o ”boi branco,
corporativo, macho e forte”. E continua dizendo que a desigualdade salarial é
determinada pelo sexismo e racismo, porque em uma sociedade patriarcal é o
homem branco e hétero quem decide tudo.
Para
Kurt, ”a nova atitude dos anos 90” era lutar pelo meio ambiente e consumo
consciente. Deste modo, procurando ganhar em cima desta pauta, as grandes
corporações começariam a ”permitir que grupos de pensamentos alternativos,
supostamente subversivos” ganhassem voz, mas que não deveríamos esquecer que
para eles – os capitalistas – isso só seria aceitável até um limite e também
porque ”parece ser uma mercadoria lucrativa”. Kurt conclui esse parágrafo
dizendo que ”podemos nos infiltrar na mecânica do sistema e o império
apodrecerá por dentro. Sabotar o império fingindo jogar seu jogo”.
Em
relação à legislação do patriarcado sobre o corpo feminino, Kurt disse que
durante o período em que esteve na escola, as meninas frequentavam uma espécie
de aula especial para ensiná-las a se ”preparem” para o estupro, ”só que quando
você olhava para fora, você via os homens jogando bola e pensava: ‘eles são
aqueles que deveriam estar aqui sendo ensinados a não estuprar”’ ressalta.
Como
afirmado anteriormente, Kurt odiava Ronald Reagan e toda sua política liberal e
conservadora. Sobre isso, comentou que quando pensava na direita, pensava em
Ronald Reagan e como ele foi escolhido para ser presidente de uma nação. Além
disso, acrescenta: ”quando ouço o termo direita, penso em Hitler, Satanás e
Guerra Civil. Quando penso nos direitistas, penso em terroristas que planejam
matar e aterrorizar a vida dos praticantes da Planned Parenthood[9]”.
Kurt continua
a falar sobre a questão do aborto nos Estados Unidos e como as políticas para a
realização de um aborto seguro estavam escassas. O músico diz que ”devido a
Randall Terry[10] e sua GESTAPO pró-vida”, a situação para quem
precisasse fazer um aborto estava cada dia mais precária no país. Kurt comenta
também sobre a relação entre Randall Terry – e sua organização anti-aborto
Operation Rescue – com as igrejas e como Terry e setores da igreja ”ficavam ao
lado de fora da clínicas de aborto todos os dias com piquetes e palavras
bíblicas, violentas e ameaçadora para qualquer pessoa que tentasse entrar na
clínica”. Kurt é categórico ao afirmar que eles ”tinham as mesmas crenças do
supremacistas brancos. Eles publicam os nomes, endereços e número de telefones
de cada paciente e médico que tenha feito um aborto na clínica.”
Para nós e para Kurt Cobain [ser da] ”ala
direitista é o insulto mais sujo que alguém pode ser chamado. Essas pessoas
odeiam todas as minorias, realizam extermínio em massa de tudo que não é branco
e temente a Deus’’. Kurt comenta ainda que há uma
limpeza étnica que está acontecendo agora mesmo nas
cidades dos Estados Unidos. Negros, hispânicos e outros – que não são
norte-americanos – estão sendo exterminados antes de chegarem à quinta série.
Os republicanos são responsáveis por liberar o crack e a AIDS em nossas cidades
do interior (2003, p. 259).
Por fim, há outros trechos possíveis de serem
explorados e apresentados a fim de uma ampliação do debate a respeito do
posicionamento político de Kurt Cobain. Quem acompanhou – durante ou
postumamente – a vida e a obra de Kurt sabe que ele estava à esquerda no
espectro político. Agora, com a explanação destes trechos escritos por ele, não
é um delírio dizer que de alguma forma o cantor compôs a extrema-esquerda, já
que o próprio afirmou isso. E que tudo o que foi escrito e traduzido ajude a
evitar o apagamento político-ideológico do vocalista do Nirvana.
Inseridos em um ambiente formado por homens com
comportamentos misóginos e racistas – Axl Rose sabe do que estamos falando –
foi importante haver uma banda de destaque como o Nirvana abordando assuntos de
extrema importância. As mensagens presentes nos encartes supracitados, as
entrevistas da banda e os significados de algumas músicas podem potencialmente
ter sido o primeiro contato de uma geração jovens com assuntos como homofobia,
racismo, aborto e o machismo.
Referências
[1] CROSS, C. Kurt Cobain – a construção do mito.
Rio de Janeiro: Agir, 2014.
[2] Não há cura para a AIDS. Sendo assim, o
tratamento visa retardar o progresso da doença.
[3] Azerrad escreveu sobre este episódio em Come As
You Are: a história do Nirvana, livro publicado pela editora Madra, São Paulo,
em 2008.
[4] Ex-empresário do Nirvana.
[5] Em tradução livre, o livro seria traduzido como
Sirva os Servos: Lembrando de Kurt Cobain. Não há dúvidas que trata-se de uma
referência à canção Serve the Servants, primeira faixa do disco In Utero. O
livro foi publicado em 2019 pela editora Orion Publishing Co, Londres.
[6] Presidente dos Estados Unidos da América entre
1981 e 1989.
[7] Até hoje não há publicação em português. Sendo
assim, as traduções serão feitas livremente e haverá referência de onde
encontrar cada passagem na versão inglesa e francesa.
[8] Cobain, K. Journals. Riverhead Books, 2003.
[9] Planned Parenthood é uma organização sem fins
lucrativos responsável por metade dos abortos realizados em território
norte-americano.
[10] Ativista anti-aborto.