José Chasin ao centro da imagem. |
Publicado originalmente como “Nota de Coordenação”
(Excerto) da Revista Nova Escrita Ensaio n. 8. Escrita, São
Paulo, 1981.
A construção democrática,
em nosso país, tem por eixo fundamental a natureza e a dinâmica da classe
operária, - norte e núcleo das vastas massas trabalhadoras da cidade e do
campo, de cuja perspectiva e ato depende,
nos objetivos de curto e de longo prazo, a efetivação
das melhores e mais generosas aspirações populares e nacionais.
A rigor trata-se de reconhecer a centralidade operária na questão democrática, que, entendida a sério, jamais pode ser tomada como meramente institucional. Centralidade operária que é imperativa a três níveis do real: I) para efeito das pugnas correntes, que envidam a construção democrática para o presente imediato, na contraposição ao bonapartismo vigente, hoje compelido, pela crise econômica e suas conseqüências, a buscar sua recomposição sob a forma de autocracia burguesa institucionalizada; II) na efetivação da democracia operária futura: o socialismo, posto necessariamente, desde logo, no horizonte, para que se tenha luz e lógica sobre a direção histórica de todo o itinerário a percorrer; III) como base e perspectiva legítimas para a assimilação crítica do chamado socialismo de acumulação, pois, em que pese o devido reconhecimento das positividades destes, seja como momento efetivo de ruptura com o modo de produção capitalista, seja como fundamental combatente anti-imperialista, ou ainda como ponderável efetuador da satisfação das necessidades materiais das massas, um verdadeiro pensamento transformador, em nossos tempos, não pode emergir e orientar a intervenção prática se condenado a reproduzir formas petrificadas que a história fez emergir e vingar, não por qualquer engodo deliberado, de modos distorcidos e mutilados, incompletos e invertidos.
A
assunção plena e o reconhecimento vigoroso da centralidade operária, nas
questões históricas decisivas de nossos tempos, é, com
efeito, o próprio esforço de recuperar universalmente a autentica e concreta
perspectiva histórica do proletariado, que por infortúnio se encontra deprimida
por toda parte, para além de ser, no caso brasileiro
em sua continuidade, a única via de acesso real para a resolução
de nossa problemática essencial.
Tudo
isso nos põe, é óbvio, no bojo de uma imensa polêmica, propriamente
no interior do dissenso teórico, nacional e internacional, do marxismo. Dissenso
muito bem abordado por Lukács, numa de suas mais
extraordinárias entrevistas, ao fim de sua longa e fertilíssima existência
teórica e política. Falando, em 1969, a um jornal iugoslavo, explica: “Grandes
batalhas ideológicas são necessárias até que a ideologia
de uma nova fase tome forma. A crítica do pensamento stalinista
e a luta pela renovação do marxismo que a ela subjaz está sendo
levada com todo tipo de instrumento intelectual, da melhor maneira
que é possível. É evidente, no entanto, que ainda não há pontos
de vista totalmente claros, nem uma única tendência dominante. Tenho certeza de
que não levarão a mal se eu disser que estou esperançoso, subjetivamente, de que
a corrente que defendo será dominante, embora saiba que cada um deseja que a
História de sua aprovação final ao seu próprio
ponto-de-vista. Em todo caso, tal decisão histórica,
sobre qual o caminho correto, deve ainda se dar objetivamente,
e há pessoas, em países socialistas e capitalistas, que
se esforçam por uma renovação do marxismo. Cada um tenta seus
próprios métodos, a sua maneira, debatendo entre seus colegas, desejando que
alguma tendência seja alcançada e que tire o marxismo
fora da situação infeliz, na qual caiu graças à influência de
Stalin”. E completa, mais adiante, comentando o que seu entrevistador iugoslavo
apontara como o “crescente caráter polifônico do marxismo”:
“Nessa questão há algo que me leva a crer que este poliformismo da filosofia
marxista ainda pode vir a ser um fenômeno positivo.
Tenho minhas reservas sobre o assunto. Vejo, entretanto, como positivo o fato de ainda haver pessoas em todos os países que dizem ‘agora vou analisar esta questão’ ou ‘tomarei uma posição em relação àquele problema’. Sem dúvida nenhuma, trata-se de um fenômeno positivo que tem, ademais, a conseqüência de fazer com que o marxismo que se desenvolve hoje em dia tenha um caráter polifônico e polimórfico ou até mesmo como dizem alguns, pluralístico.Contudo, deixem-me colocar uma dúvida aqui. O marxismo, como tudo o mais, não escapa à regra de que há somente uma verdade. A História é a História da luta de classes, ou então não é. Agora, pode-se, dentro da História da luta de classes, argumentar ter ela ocorrido de uma maneira ou de outra. Isto é totalmente diferente. Mas devemos saber que em cada questão - objetivamente - só pode haver uma verdade. No entanto, não condeno a existência deste poliformismo, mas creio estarmos apenas no limiar da solução ideológica da presente crise. Muitas correntes se oporão entre si até chegarmos à verdade. Mas novamente insisto em que há somente uma única verdade em cada caso. Esse poliformismo mostra que estamos no caminho da verdade. Seria, entretanto, extremamente indesejável se aceitássemos uma concepção burguesa incorreta do marxismo, e víssemos o pluralismo como algo próximo do ideal, se olhássemos para ele como sendo uma vantagem para o marxismo, no sentido de que poderia ser tanto idealista quanto materialista, casual ou teleológico, assim ou assado. Creio que devemos deixar este tipo de coisa para a capitalismo manipulatório - a ele cabe inventar suas próprias teorias para o marxismo. Devemos, entretanto, deixar bem, claro que em cada questão só pode haver uma verdade e que nós marxistas lutamos pela sua emergência. Enquanto isto não se der, estas correntes continuarão em conflito. Acrescento, entretanto, que sou contra qualquer tentativa no sentido de apressar o processo por vias administrativas. Só problemas ideológicos que devem ser solucionados ideologicamente. Ao mesmo tempo, acho ser necessário dar espaço ao plurarismo ocidental desde que se adote o princípio de que em cada questão só há uma verdade. Já disse e torno a repetir, que a simpatia de alguém não depende de um acordo universal, mas do sentimento de que estamos todos servindo à mesma grande causa, e que mesmo que estejamos envolvidos em polêmicas as mais acirradas, sabemos que essas polêmicas servem ao mesmo objetivo”.
Dissenso e polêmica para as quais seria
absurdo, de fato criminoso, voltar as costas, como deseja e propugna a
dogmática staliniana, debaixo da alegação filistéia de que o importante, de
todo modo, é sustentar e dar continuidade ao primado da prática.
Não se incomodando, assim, por infringir
palavras expressas de Lenin que, - em
princípios do século, exatamente sob as determinantes de uma “época de
dissensões teóricas”, tal como ele próprio a denominou -, estigmatizaram com
violento sarcasmo a redação do Rebótcheie Dielo, que foi, não por acaso, o
centro dos economistas russos no exterior, vindo a representar no II Congresso
a extrema-direita do POSDR. Redação que “deixava de lado as
questões teóricas, embora elas preocupassem os social-democratas do
mundo
inteiro”, e apelou, fora de senso e contexto, para a frase de Marx,
contida em sua carta a É. Bracke, sobre o programa de Gotha, quando assegura
que “Cada passo do movimento efetivo é mais importante
do que uma dúzia de programas”. Lenin não perdoou, nem
deixou por menos: “Repetir estas palavras, numa época de dissensões teóricas, é
exatamente o mesmo que exclamar ao passar um cortejo
fúnebre: ‘Oxalá tenhais sempre algo que levar’” (Que Fazer, I,
4). Será preciso aditar mais algum comentário, para sublinhar a propriedade
e a atualidade desta primorosa estocada?
DEZEMBRO/80.