Por Eduardo Galeno - estudante de Letras pela UESPI
“(...) Incredible! one boy turned aside from operating room
or healing Pampas
yellow eye
To face the stock
rooms of ALCOA, Myriad Murderous
Board Directors of
United Fruit (...)”
-- Allen Ginsberg
I. Guevara,
mito.
Um significado é
posposto numa imagem. Na fotografia, a significação é lançada como um dado, mas
acaba por segmentar vieses de imprevisibilidade significante, de sentido e de
materialidade relacionadas a um contexto qualquer, apoiadas em discursos a
posteriori e subordinados a movimentos de semiose múltiplos. Nesse bojo, a
forma de como o imagético e suas significações são determinadas por instâncias
contextuais na cultura é comum, guardando um polo de ricochete de linguagem
contido no próprio texto, mas ao mesmo tempo sugestivamente exterior, porque
apoiado por estruturas coisificantes [alienantes] sociais. A icônica foto de
Che, feita por Alberto Diaz Korda em 5 de março de 1960, é uma demonstração. O
guerrilheiro argentino (de nascimento, mas internacional por ato e vontade)
aparece com o rosto carregado de expressões, contidas pelo aparato de
reação ao saber das mortes do dia anterior em Cuba. Expressões. Em signo
de raiva, descontentamento, todas são, em suma, preservadas em uma.
Inevitavelmente, a transparência afetiva na foto de Guevara, um quase-obtuso,
ressoaria. Andy Warhol, exemplo máximo da pop art, utilizou da famosa
fotografia para, através das técnicas pictóricas comuns ao movimento, engendrar
novos tipos significativos. Em 1968, Warhol já tinha a percepção de que a
figura guevariana se tornara mitificação, um produto como outro na cultura de
massas de um tardo-capitalismo, imagem, semelhante em conteúdo e recepção, às
de Marylin Monroe e das latas de sopa Campbell. Assim, o acaso da
fixação semântica se torna consequência conhecível se for partido do ponto de
que, qualquer objeto que seja, estando ele em submissão à lógica do tecido
sócio-histórico capitalista, estaria exposto à nivelação da linguagem cultural
que vampiriza caracteres mesmo opositores. A sociedade da mercadoria
tangencia o cerne da questão do ícone como mito e indicia, em favor do
império do valor de troca, a configurações outras que não sejam as “originais”.
“(...) Y antes de morirme,
quiero echar mis versos del alma...”
-- José Martí
II. Guevara, vivo ou
morto...
Os significantes nas
artes são intencionais. Pelo menos no que concerne à proposição de início, a
feitura da imagem, numa tela, é, substancialmente, resultado de um esforço de
composição mais ou menos orientada pelo artista. Nisso consiste a
potencialidade em se transformar em outra coisa que não seja a arte mesma: em
crítica. Claudio Tozzi, adepto, em práticas, do já mencionado movimento pop
art, caracteriza Che. Mas, ao contrário de Warhol, o guerrilheiro Ernesto
aparece entre duas formas distintas, mas contíguas, o que vai dar vazão
para uma interpretação que estabelece: Che Guevara não morreu. As
colagens, duplicadas entre o duplo aparecimento de Che - de barba, fumando
charuto, sorrindo com os olhos e com os gestos faciais marcantes, sobre a
cabeça a boina e os cabelos compridos -, são de situações tipicamente
humanas: o protesto, em experiência de homens gesticulando e ordenando
gritos de revolta; a fome como natureza social, na qual é representada por uma
criança em sinal de vulnerabilidade. Sob as formas humanas, figurativas, estão
as formas geométricas, pleiteadas pelas substâncias compositivas de cores
fortes, laranja e vermelho, colocadas à mercê de uma rítmica repetitiva em
modulação formal simples. Há um contraponto entre duas facetas, duas
substâncias, que criam um terceiro nível em torno das imagens: a aglutinação da
díade antagônica vivo/morto. Tozzi teria começado a produção da
serigrafia um dia após a notícia do falecimento de Guevara em La Higuera, na
Bolívia, resultando, quiçá, na escolha das reticências em lugar do ponto de
interrogação no plano da linguagem verbal da pintura, o que traria uma demonstração
positiva, relacionado às gravuras mencionadas, do que uma indagação. O artista
paulista sugere: se se matou um homem fisicamente, não o fez em outros
campos e planos. Se fosse de outro jeito, a reação (reacionária) à obra não
teria sido a de parcial destruição nos primeiros momentos em que foi exposta ao
público.
“(...) Súbito vimos
ao mundo
e nos chamamos Ernesto
Súbito vimos ao mundo
e estamos
na América Latina (...)”
-- Ferreira Gullar
III. Guevara, intolerante.
A foto tenta capturar o
presente. Mas o presente fotográfico, significado pela língua, é fugidio:
escapa. Foge, assim, esvaindo e ecoando pelo curso da historicidade. Che
Guevara, deitado, sem vida, apoiado em uma maca, num estábulo, percorre
a história. A determinação histórica feita, no presente e no porvir, é
declarada pelo gestual dos indivíduos, que estão em volta do hombre del
siglo, no dia 10 de outubro de 1967: do coronel apontando o dedo ao corpo
crivado, cheio de estrelas, à perplexidade do fato de dois homens
ao lado. John Berger reteve, à luz dos acontecimentos, a situação: o ato da
fotografia do cadáver estendido acompanhava o tom de A lição de anatomia do
Dr. Tulp, de Rembrandt. Não apenas quanto aos traços de contiguidade
nas composições, mas pelo fenômeno de retratação ou representação (seja lá o
nome que se queira dar) de um evento: na pintura do holandês, a ciência; na
imagem de Che morto, a advertência política. Aviso extensivo... se o
maior combatente contra a condição intolerável é exposto como se expõe a
carne de um animal em um açougue, o fluxo segue a todo e qualquer representante
dessa ideia. Mas Che, vivendo a experiência finita de saber e agir no mundo,
personifica a imanência da crítica ao que se deixa como tolerável, confortável,
ao cômodo. O tiro saiu pela culatra. Em um clarão, percebidos o modo e a causa
com que a foto foi realizada, outras imagens sobem à consciência: do genocídio
do Congo, do massacre no Domingo Sangrento na Rússia, das crianças vietnamitas fugindo
em decorrência do napalm, da matança em Eldorado dos Carajás etc.
etc. etc. Condições trágicas reverberadas nas ações, inclusive
nos efeitos, que, em ocasião, o derradeiro foi a supressão da guerrilha na
Bolívia e, por conseguinte, a execução de Che Guevara. O mito perde para o
simbólico na medida em que o receptor, quem olha, faz, em maneira positiva, uma
metamorfose sígnica. O olho vê com o sensível e o inteligível. O par
sensibilidade-inteligibilidade, deixado pelas aberturas do punctum e
studium, faz uma revelação: Ernesto Rafael não fora Superman.
Antes um homem comum, responsável e esclarecido, dentro das possibilidades, de
mudar nossa Terra Desolada (“onde a história cheira a merda”?).