Por Glauber Ataíde – mestre em Filosofia pela UFMG.
Uma das
afirmações mais conhecidas - e também mais polêmicas – de Marx é a de que a
religião é “o ópio do povo”. Para compreendermos o que Marx queria dizer com
isso, devemos colocar a citação em seu contexto.
Esta frase aparece nos primeiros parágrafos da
introdução à Crítica da filosofia do direito de Hegel,
escrita entre o fim de 1843 e início de 1844. Marx começa este texto afirmando
que, na Alemanha, a crítica da religião já estava concluída, e que esta é o
pressuposto de toda crítica.
Por que Marx afirma que a crítica já estava
concluída? Quem a havia levado a cabo? Ele tem em mente aqui Ludwig Feuerbach,
que havia lançado três anos antes, em 1841, a obra A essência do cristianismo. O objetivo de Feuerbach era
mostrar que a teologia é uma antropologia invertida – que o conteúdo da
religião sempre dizia respeito ao próprio homem. Podemos perceber a influência
de Feuerbach logo no segundo parágrafo da introdução, quando Marx diz, por
exemplo, que o homem busca um super-homem (Übermensch) na
realidade fantástica do céu, mas que só encontrou ali um reflexo de si mesmo.
Feuerbach havia afirmado, por exemplo, que "a religião, pelo menos a
cristã, é a relação do homem consigo mesmo, ou mais exato: com sua
essência."
Algumas linhas abaixo Marx afirma que o fundamento
da crítica irreligiosa é que o homem faz a religião, e não o contrário. A
religião, afirma Marx, é a autoconsciência do homem que se perdeu ou ainda não
se encontrou. As alusões a Feuerbach são claras, mas ele acrescenta então algo
original: este “homem” de que fala Feuerbach não é nenhum homem abstrato, mas o
mundo do homem, o estado e a sociedade. Feuerbach havia utilizado o termo
alemão Gattunsgswesen para se referir ao gênero humano
que aparece de forma fantástica na religião. Marx não trabalha com este
pressuposto abstrato, metafísico, mas coloca em seu lugar um homem concreto,
social. Ele afirma que é este estado, que é esta sociedade que produzem a
religião, esta autoconsciência invertida.
A religião é também uma forma simplificada de
compreender o mundo. Nas palavras de Marx, ela é, para o homem religioso, sua
teoria geral do mundo, seu compêndio enciclopédico e sua lógica em forma
popular. Uma afirmação semelhante seria feita anos depois por Nietzsche, para
quem o cristianismo é um platonismo para o povo. Para mostrar como Marx segue
de perto as reflexões de Feuerbach em A essência do cristianismo,
citamos mais um trecho desta obra:
"a religião é a primeira e, de
fato, a autoconsciência indireta do homem.
Ela sempre precede a filosofia, seja na história da humanidade, seja na
história do indivíduo. O homem coloca o seu ser primeiramente fora de si, antes
que ele o encontre. Sua própria essência é, inicialmente, objeto para ele como
uma outra essência. A religião é a essência infantil da humanidade, mas a
criança vê a sua essência, o homem, fora de si. [...] O homem se objetificou,
mas não reconheceu o objeto como sua própria essência." (FEUERBACH, Ludwig. Das Wesen des Christentums. Tradução nossa.)
Tendo em vista que a religião é produto de um homem
concreto e social, Marx faz então uma afirmação esclarecedora: a luta contra a
religião é uma luta indireta, mediada, contra aquele mundo do qual a religião é
o aroma espiritual. A miséria religiosa é a expressão da
miséria real e também um protesto contra
esta. Ela é o suspiro do ser oprimido, ela é o ópio do povo. Esta
metáfora de Marx quer dizer que a religião é uma espécie de anestésico para
aliviar o homem de seu sofrimento real.
É importante não perder de vista os dois aspectos
da religião que Marx aponta neste trecho: se por um lado ela é expressão da miséria real, ela também é, por
outro, um protesto contra este mundo. É
o reconhecimento de que este mundo não é bom o suficiente, e que o homem merece
um destino melhor. A análise que Engels fará posteriormente de Thomas Münzer,
líder da reforma protestante, destaca este segundo ponto. Münzer foi da ala de
oposição a Martinho Lutero, liderou os camponeses pobres nas guerras camponesas
e exigia, em seus sermões, a instauração do reino de Deus nesta terra, aqui e
agora, sem classes sociais e sem propriedade privada.
Marx via a supressão da religião, enquanto
felicidade ilusória dos homens, como uma exigência de sua felicidade real. A
questão aqui diz respeito ao papel, à função social da religião. A exigência de
abrir mão das ilusões sobre a própria situação é a exigência de abrir mão de
uma situação que precisa dessas ilusões. A crítica da religião é, em seu cerne,
a crítica do "vale de lágrimas" cuja aparência divina é a religião.
Não faz sentido, por isso, afirmar que Marx tinha como objetivo extinguir as religiões pelo fato de elas se ocuparem com o divino ou com a transcendência. Uma compreensão adequada do contexto no qual Marx afirma que a religião é o ópio do povo mostra que ele a compreendia como produto, como efeito da alienação social, e o que deve ser atacado são suas causas, suas raízes. O mais importante, aqui, não é a religião em si, mas aquela situação social que precisa da existência das religiões para humilhar, oprimir e subjugar o homem. Combater a religião sem atacar suas raízes sociais significaria combater os efeitos de um fenômeno deixando intactas as suas causas. Uma vez combatida a miséria produtora da religião, talvez seja apenas questão de tempo para que ela também desapareça.
Publicado originalmente no site pessoal do autor.