Filosofia não é opinião – e nem todos são filósofos


Por Glauber Ataíde – mestre em filosofia pela UFMG

Hegel afirma que a história da filosofia nos mostra uma fileira de espíritos nobres, a galeria de heróis da razão pensante. Ela não é algo do passado, fora de nossa efetividade.  O que somos hoje não surgiu no presente, mas é uma herança, um resultado do trabalho de todas as gerações anteriores, e esta herança é alterada e preservada de maneira enriquecida.

Duas concepções equivocadas de história da filosofia seriam: 1) considerá-la apenas como uma sequência de eventos acidentais, aleatórios; ou 2) como um estoque (Vorrat) de opiniões, de conhecimento inútil. Se a filosofia fosse apenas isso, afirma Hegel, ela seria de fato desnecessária e enfadonha, entediante.

A filosofia não contém "opiniões", e nem mesmo existe algo como "opiniões filosóficas". A filosofia é a ciência objetiva da verdade, a qual se torna conhecida através do esforço do pensamento. O pensamento filosófico deve ser entendido em seu desenvolvimento imanente, assim como uma semente que já possui em ato tudo aquilo que se tornará: árvore, troncos, folhas, frutos e novas sementes. A filosofia tem este impulso (Trieb) de se desenvolver.

Ao estudarmos o desenvolvimento de novas escolas de pensamento, como o marxismo, por exemplo, vemos claramente os momentos de preservação e enriquecimento de que nos fala Hegel. Não haveria marxismo sem a chamada "filosofia burguesa" de Hegel e Feuerbach, ou sem a "economia burguesa" de Adam Smith e David Ricardo.

Não é possível imaginar Marx sendo Marx sem estes precursores, como se ele pudesse reconstruir sozinho todo o trabalho sobre o qual se apoiou. É por isso que o filósofo marxista Louis Althusser, em sua obra How to be marxist in Philosophy, afirma que todo materialismo, inclusive o marxista, contém algo de idealismo, e que todo idealismo contém algo de materialismo. As coisas nunca aparecem de forma tão pura assim no mundo real, e por isso é preciso considerar, ao se criticar a chamada "filosofia burguesa", que parte dela está preservada dentro do próprio marxismo.

Dois outros interessantes exemplos de como o momento de preservação é importante na história da filosofia são Santo Agostinho e Georg Lukács. O que ambos têm em comum é que passaram por "conversões" que geraram sínteses extremamente enriquecedoras.

Santo Agostinho foi maniqueu e cético antes de se converter ao cristianismo. Uma de suas principais tarefas filosóficas foi estabelecer uma ponte entre a teologia cristã e a filosofia pagã antiga (grega), sem com isso ferir os princípios de sua fé. Em sua obra Sobre a doutrina cristã, ele afirma que assim como os judeus, no Êxodo, saíram do Egito levando vários tesouros, o cristão, ao deixar o mundo e se converter ao cristianismo, deve trazer os tesouros da filosofia pagã que possam servir à fé. Os pagãos não disseram apenas falsidades, mas fizeram também um trabalho de garimpagem intelectual que trouxe à superfície diversas verdades das quais os cristãos não discordam.

Georg Lukács, filósofo marxista do século XX, também passou por um processo semelhante de conversão, mas foi uma "conversão intelectual". Inicialmente kantiano, depois hegeliano e, finalmente, marxista, Lukács fez uma brilhante leitura hegeliana do pensamento de Marx, ancorado na extensa bagagem acumulada em seu itinerário teórico. Sua principal obra, História e consciência de classe, possibilitou o surgimento da Escola de Frankfurt e influenciou também o existencialismo francês.

O que os exemplos de Marx, Agostinho e Lukács nos mostram? Exatamente o que Hegel aponta no início deste texto. A filosofia não é um pandemônio de opiniões, onde cada um fala o que bem entende, sozinho e da maneira como quer. A filosofia é um diálogo com a tradição e com o nosso próprio tempo, e sua atitude não é a de um iconoclasta que derruba todo o passado para anunciar ao mundo a nova verdade do universo. Agostinho, Marx e Lukács ilustram o momento essencial de preservação e elevação a um nível superior que deve acompanhar a negação.

Por isso não concordamos com quem afirma que todo ser humano é um filósofo. Ninguém nasce sabendo filosofar à maneira que já sabe, por exemplo, sugar o seio da mãe logo nos primeiros minutos de vida. Concordamos que todo ser humano, dispondo da plena capacidade de suas faculdades mentais, tem potencial para ser filósofo, caso queira e passe pelo processo de formação (não exatamente universitário) para tal. Daí afirmar, no entanto, que todos já são filósofos, é um longo salto. 

Não se pode chamar propriamente de pensar qualquer atividade mental que se possa em nossas consciências. Ter dúvidas sobre o mundo, levantar perguntas e passar pela experiência do sublime diante da grandeza do universo, isso todos fazem. O que é propriamente filosófico é a resposta - ou melhor dizendo, as novas perguntas - que se dá a essas experiências, pois elas admitem também abordagens místicas e religiosas. 

A concepção equivocada de que filosofia é opinião leva à distribuição gratuita e indiscriminada do título de filósofo a toda a humanidade. Já que qualquer um é capaz de opinar, mesmo quando não entende nada do assunto, todos garantem seu lugar de honra na "galeria de heróis da razão pensante", da qual nos fala Hegel. Isso leva à curiosa situação de que Sócrates, Platão, Descartes e Kant recebem a companhia, ombro a ombro, de qualquer divulgador de fake news em redes sociais, já que estes também possuem opiniões. Filosofia, no entanto, é uma atividade empreendida com método, rigor lógico e em diálogo com o passado e com o presente. Por isso filosofia não é opinião, e nem todos são filósofos.

Artigo publicado originalmente em seu blog pessoal.

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