A religião nos escritos de Friedrich Engels: Entrevista com Wallace Cabral Ribeiro









Wallace Cabral Ribeiro é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense (PPGS-UFF), mestre e bacharel em sociologia pela mesma instituição, membro do Laboratório de Estudos Socioantropológicos em Política, Arte e Religião (LePar) e do Núcleo de Estudos Friedrich Engels (NEFE).

 

Acervo Crítico Para começar nossa entrevista, fale um pouco sobre sua formação acadêmica, como chegou ao marxismo e também as razões que levaram a se debruçar sobre Friedrich Engels.


Wallace Ribeiro: Comecei minha trajetória acadêmica ingressando no curso de pedagogia, mas por diversos motivos acabei não me adaptando ao curso, nem à modalidade de ensino, nem à instituição. Mas foi nessa época que iniciei uma militância política dentro de um partido extraparlamentar marxista-leninista, foi nesse período que comecei a me interessar pela vida e obra de Friedrich Engels e pelo marxismo. Não conseguia entender o motivo de Engels ser invisibilizado já que ele foi um dos fundadores da teoria marxista (ou socialismo científico). Após um tempo fora da universidade, retornei, só que agora no curso de sociologia da UFF. Lá pelo terceiro período, decidi que iria pesquisar sobre a vida e obra de Engels. O que me fez tomar essa decisão era o fato de Engels ter deixado uma contribuição a diversos campos de conhecimento e os próprios marxistas pouco mobilizarem seu arsenal teórico para pensar a realidade social. Após três anos de pesquisa, publiquei um artigo sobre as contribuições de Engels para a formação da teoria marxista e para o socialismo internacional. Porém, ao longo da minha trajetória acadêmica publiquei artigos de temas diversos. No mestrado, realizei uma pesquisa sobre as contribuições de Engels ao campo da sociologia da religião ao me debruçar sobre suas reflexões em torno da relação orgânica entre religião e política em contextos de acirramento de luta de classes, enfatizando aquelas reflexões sobre experiências religiosas revolucionárias. Essa dissertação culminou no meu livro “Religião e Revolução: a sociologia da religião de Friedrich Engels” (Editora Fi, 2021). Atualmente, sou doutorando do Programa de pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense (PPGS-UFF) e estou pesquisando sobre os evangélicos progressistas (ou de esquerda) no Brasil atual.


AC Em sua pesquisa, você trabalha a questão do fenômeno religioso na sociedade capitalista. Em suma, a questão do fenômeno religioso e sua articulação orgânica com a política no contexto de luta de classes, como expõe em um de seus artigos (2020). Nas obras de Engels, como se dá esta articulação de modo geral?


WR: A articulação orgânica entre religião e política ocorre de uma determinada forma em que uma configuração social influencia a outra, não de forma igual, ou equilibrada. Essa articulação, onde ocorre uma influência mútua, opera de tal modo que muitas vezes não se sabe onde termina uma e começa outra, pois, nesse caso, religião e política estão imbricadas dentro de uma rede relações sociais extremamente complexa, que abarca múltiplas dimensões da vida. No caso das reflexões de Engels, ele pensa essas relações sociais a partir de uma aproximação que entre uma determinada corrente religiosa e uma classe social, ocorrendo assim uma “representação religiosa”. Essa aproximação ocorre por meio de um conjunto de elementos sociais, que articulados entre si de uma determinada maneira, favorecem a aproximação entre uma corrente religiosa e uma classe social. A rearticulação desses elementos sociais pode produzir novas formas de interação social, novos arranjos entre religião e classe social, o importante é que isso não é um fato dado, pois trata-se de algo que é construído. Tudo depende dos múltiplos fatores estruturais, conjunturais, contextuais e situacionais a nível micro e macrossocial. Acredito que essa seja uma das maiores contribuições de Engels ao campo da sociologia da religião.


ACSeu livro “Religião e Revolução: a sociologia da religião em Friedrich Engels”, publicado recentemente (2021), é um desdobramento de seu mestrado na Universidade Federal Fluminense. Quais as motivações que levaram a pesquisar o tema?


WR: Há poucos trabalhos acadêmicos que se debruçam sobre o pensamento de Engels, sua vida e obra. No que tange à religião, esse é um problema maior ainda, devido ao fato de muitas pesquisas recorrerem basicamente à crítica à religião pelo mote “religião é o ópio do povo”. Essa é uma expressão de Marx de 1844, quando este ainda era um “fauerbachiano’, quando realizava uma crítica universal da religião, compreendendo-a como um fenômeno atemporal e a-histórico. No entanto, Marx abandona essa concepção, todavia, essa ideia do caráter narcótico da religião foi constantemente mobilizada por gerações de marxistas, que infelizmente partiram do princípio de que toda religião é em essência alienadora da realidade e reflexo da realidade social. Diante desse quadro, achei que fosse interessante resgatar as reflexões de Engels em torno do fenômeno religioso. Pensei também que fossem oportunas para pensar o caso dos evangélicos progressistas, que fazem um contraponto aos evangélicos conservadores, que se “bolsonarizaram” nos últimos anos.


AC Os estudos de Engels sobre o “Cristianismo Primitivo” são poucos conhecidos no Brasil para o público da esquerda marxista. Em sua visão, quais são os elementos mais proeminentes nos estudos sobre a religião e quais eram os problemas centrais que Engels se deparou?


WR: Ótima pergunta. Engels sempre produziu suas reflexões a fim de responder a alguma demanda política do momento. Ele sempre buscou dar uma resposta para as questões do seu tempo. Isso é um ponto muito importante. Quando Engels publica a obra “As Guerras Camponesas na Alemanha”, em 1850, o que ele está mais preocupado era em compreender a participação da classe trabalhadora nos processos revolucionários e contrarrevolucionários de 1848-1850 que ocorreram na Europa (na Alemanha em particular). Quando Engels elabora a tríade de estudos sobre o cristianismo dos primeiros cristãos (1882, 1883 e 1895), uma das coisas que estava em jogo era compreender como se davam as influências do cristianismo sobre o movimento socialista moderno. Nesses textos que mencionei, a religião não era exatamente o objeto de estudos de Engels. Apesar disso, sua contribuição à sociologia da religião foi decisiva, principalmente no que tange à relação entre religião e classes sociais.


Existe toda uma tradição marxista que reduziu o debate da religião ao mote “ópio do povo”. Mobilizaram (e ainda mobilizam) de forma sistemática uma reflexão de Marx quando este ainda era um “fauerbachiano”. Compreender de forma a priori a religião como “ópio” é uma concepção essencialista e diria que até antimarxista. Pois o próprio Marx abandona a crítica universal e a-histórica da religião. As reflexões de Engels fazem um contraponto a essa noção essencialista sobre o fenômeno religioso, exatamente por entender que ao longo da história existiram experiências religiosas que contestavam a ordem vigente e que em alguns casos eram até revolucionárias. A exemplo dos anabatistas na Alemanha no início do século, século XVI e as primeiras comunidades cristãs nos séculos I e II. Em um texto de 1892, Engels entende que a possibilidade da religião se radicalizar frente à precariedade da vida não está bloqueada. Décadas após sua morte, tivemos na América Latina a teologia da libertação, a teologia da missão integral, a teologia negra da libertação nos Estados Unidos e, mais recentemente, temos os chamados “evangélicos progressistas” (ou de esquerda) no Brasil.  É possível afirmar que a religião não é um fenômeno pré-determinado. É um equívoco da maior envergadura dizer de forma universal que a religião é “ópio do povo”, pois a religião é um fenômeno social, uma forma cultural sempre em movimento, que se transforma ininterruptamente ao longo da história.


AC Em seu livro já citado, há uma articulação da discussão sobre religião e luta de classes. Fale um pouco se possível, dentro da perspectiva de Engels, os problemas que disso decorrem na situação atual.


WR: No contexto do Brasil atual, temos lideranças de grandes denominações evangélicas pentecostais (Igreja Universal, Assembleia de Deus, Igreja da Graça, Sara Nossa Terra,  Igreja Mundial do Poder de Deus, Renascer em Cristo etc.) que também são empresários, proprietários de empresas do ramo de comunicação, do setor fonográfico, do setor imobiliário, do setor financeiro etc., de estações de rádio, emissoras de televisão, gráficas, editoras de livros, gravadoras, aplicativos, e as próprias igrejas e templos são fontes de recursos. Estas lideranças a que me refiro, pela posição virtual que ocupam na sociedade, pelos discursos e ações, possuem interesses econômicos que visam a manutenção da ordem social. Essas grandes denominações trabalham com a perspectiva da “teologia da prosperidade”, cada uma a seu modo. A Igreja Universal, por exemplo, tem um culto chamado “Nação dos 318 Pastores”, que difunde de forma sistemática a visão empreendedora de mundo. Esses pastores empresários apoiaram o impeachment de Dilma Rosseuf, apoiaram a candidatura de Jair Bolsonaro, a reforma trabalhista, a reforma da previdência, negaram a pandemia do Covid-19 etc.


As reflexões de Friedrich Engels nos trazem a ideia de “representação religiosa”, uma denominação terá um determinado posicionamento político de acordo com as classes sociais às quais ela está conectada. Embora maior parte da membresia dessas denominações evangélicas seja da classe trabalhadora, mulheres e pobres, o corpo eclesiástico dirigente é sobretudo de homens brancos e empresários, e são eles que controlam o que Engels denomina de “maquinaria religiosa”. Eles produzem as ideias e detém força material para difundir essas ideias. Isso, de certo modo, indica que a religião está imersa na luta de classes, porque há uma representação religiosa dos interesses de classe. E no caso particular dessas grandes denominações, elas são mais do que conservadoras, mas reacionárias. Alguns pesquisadores, como Fabio Py, têm definido o posicionamento político religioso de algumas correntes do protestantismo como “cristofascismo”. Ou seja, um determinado seguimento do cristianismo evangélico que possui uma relação de proximidade com ideias, valores, atitudes, comportamentos e agentes da extrema direita fascista.


AC No contexto latino-americano, a questão da religiosidade é bem forte, seja nas ideologias neopentecostais (reacionária) seja na teologia da libertação (progressista). Em sua análise, qual o papel elementar do marxismo sobre o debate religioso e seus fenômenos?


WR: A força do marxismo está no seu método, que disponibiliza ferramentas analíticas que nos possibilitam pensar a realidade social. Mas isso não deve ser feito de forma engessada, não se pode buscar na teoria marxista respostas para compreender a nossa realidade, pois não existe respostas prontas e acabadas, não se pode pegar a teoria e encaixá-la na realidade. Quando Engels e Marx produziram suas teorias, a realidade era totalmente diferente, a dinâmica do capitalismo era outra, eles refletiram sobre aquela realidade, e, portanto, trouxeram respostas para as questões que se apresentavam naquele momento.


Penso que a teoria marxista, que é uma teoria que está sempre em movimento, deve ser mobilizada com o intuito de ajudar a pensar a realidade social e destrinchá-la de forma pormenorizada, conectando eventos, pessoas, grupos, classes sociais, organizações, objetos, ideologias etc., contemplando a realidade em suas “múltiplas determinações” e ultrapassando as “aparências do fenômeno”. Além disso, Engels e Marx nos ensinam que a produção de conhecimento deve estar comprometida com uma perspectiva revolucionária de transformação das estruturas sociais. Neste sentido, a produção de conhecimento e a prática (práxis) devem estar unificadas.  


Penso que, no caso específico do fenômeno religioso, o marxismo pode por um conjunto de perguntas extremamente importantes no processo de reflexão sobre a religião, como por exemplo, qual o papel que a religião ocupa na sociedade? Como ela está sendo vivida e experimentada pelos indivíduos? Quais os elementos simbólicos? De que forma ela está sendo mobilizada? Quais as especificidades teológicas? Quais os efeitos práticos na vida social? A quais interesses ela atende? A quais classes sociais ela está vinculada? Como ela se insere na vida política? Como ela produz os seus discursos? Quais são seus conflitos internos? Outras perguntas mais específicas podem ser elaboradas de acordo com a religião que está sendo investigada ou ao se deparar com novas informações no processo investigativo. Acredito que a teoria marxista, com seus conceitos, métodos e categorias, seja um bom ponto de partida para análise do fenômeno religioso. Mas lembrando que essas interrogações não devem ser feitas de forma mecânica, mas sim de forma orgânica.   


AC Para finalizar nossa entrevista, alguns autores no marxismo, tais como Michael Löwy, tentam uma articulação entre a perspectiva revolucionária de mundo e o cristianismo. Como você vê essa articulação para a superação dos domínios do capitalismo em que a religiosidade está presente?


WR: Michael Löwy foi um dos pensadores marxistas que mais contribuíram para o debate da relação entre marxismo e religião. Ele se debruçou sobre as reflexões de Marx, Engels, Walter Benjamin, Jose Carlos Mariátegui, Ernest Bloch, e fez uma série de reflexões sobre a influência do marxismo na teologia da libertação. Ele sempre questionou essa expressão reducionista da religião como ópio do povo. Michael Löwy foi um autor muito importante para a minha pesquisa. No meu livro, ele é o autor mais mobilizado depois de Engels, inclusive, Löwy me concedeu uma entrevista, que aparece ao longo do livro. Foi com Löwy que aprendi que a ideia de “religião como ópio do povo” não é propriamente marxista. Essa expressão está mais vinculada ao hegelianismo de esquerda feuerbachiano, que compreendia a religião como “alienação da essência humana”. A meu ver, Michael Löwy não procura articular uma coisa à outra, acredito que ele está contextualizando um fato, o que ele afirma, é que em alguns casos não existe contradição entre uma perspectiva emancipatória e religião, dependendo do caso, elas podem convergir, como é o caso do movimento teológico político que ele denomina de “cristianismo de libertação” (teologia da libertação).

 

Obrigado!

Forte abraço!


Agradecemos ao professor e pesquisador Wallace Cabral Ribeiro pela gentil entrevista e disposição para esta plataforma de crítica e reflexão!

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