Por João Neto Pitta
A consciência ingênua e a consciência oportunista se uniram em
defesa da criminalização do “comunismo”. O raciocínio parece simples e lógico,
e até ocultador das implicações que está em seu âmago: se
o nazismo matou mais de 6 milhões de pessoas e é crime, porque o comunismo, que
supostamente matou mais, não é? Os aperitivos desse silogismo são:
1 – Um
pressuposto falso (nazismo não é criminalizado por ter matado pessoas);
2
– Uma implicação lógica impertinente (devemos
criminalizas as ideologias, movimentos e religiões que foram usadas para
justificar homicídios, genocídios, exploração, perseguições e tudo mais?);
3 – Uma
reflexão histórica ausente.
Uma das coisas mais repetidas pelas pessoas bem intencionadas e
melhor situadas no debate é que o elemento racista do nazismo, que está
presente em seu núcleo duro, é o que o torna uma corrente antissocial por
essência, pois, para que tais ideias se consubstanciem no mundo, parte da
humanidade precisa ser inexoravelmente destruída (não pelas escolhas e decisões
dessas pessoas, mas pela simples razão genealógica, natural e imutável). O “comunismo”,
por sua vez, é um sistema de ideias anticapitalista: seu fundamento não está na
destruição de certos seres humanos qualificados como inferiores, mas na
alteração de um arranjo societário marcado pela alienação do trabalho, pelas
crises e pela exploração do homem pelo homem.
Diferente do que alguns acham, a crítica do socialismo científico
não é maniqueísta (embora muitos se apropriem dela dessa forma); o problema não
está na ganância incomensurável dos burgueses, mas na orientação genética do
sistema ao lucro acima de tudo, inclusive das necessidades sociais. A categoria
“capitalista” não é uma identidade natural, mas social e mutável; o
comunista defende que os capitalistas não deveriam existir da mesma forma que
os abolicionistas defendiam que um senhor de escravos não deveria existir.
Em suma, enquanto o nazismo é uma ameaça à humanidade enquanto
tal; o comunismo, assim como as revoluções de independência e as guerras
civis e revoltas contra a escravidão, tem como intuito a superação de um estado
de coisas que é, em si mesmo, injusto e explorador.
O “comunismo”, contudo, foi criminalizado, em parte considerável
dos países capitalistas, por um longo período no decorrer do século XX, isto
porque a revolução russa, o sufrágio universal e as crises do capitalismo foram
fortalecendo os partidos comunistas do mundo ocidental. Pra se ter uma
ideia, nas eleições de 1919, o Partido Socialista Italiano havia triplicado o
número de votação e conseguiu mais de 1/3 das cadeiras no parlamento. O Partido
Comunista Alemão (KPD) crescia
ininterruptamente de dezembro de 1924 até novembro de 1932. O Partido
Social-Democrata Alemão (SPD) já era um dos
maiores partidos marxistas da Europa.
O que aconteceu depois? A democracia foi
sacrificada para salvar o capitalismo, como bem pontuou
Merquior. O estamento liberal/ conservador fez um pacto pelo poder
(Herrchaftskompromiss) com o fascismo na Itália e com o Nazismo na Alemanha.
Juntos poderiam expurgar o fantasma vermelho e assim o fizeram.
Diferente do que pensam conservadores olavistas,
como Bruno Garchagen, que afirmou que o comunismo e o nazismo são “igualmente
inaceitáveis”, na experiência histórica, quando tiveram a opção de escolha, a
direita se curvou ao nazismo.
E isso fica mais claro quando se analisa a composição dos votos da lei
plenipotenciária (que conferia poderes ditatoriais a
Hitler). Todos os 94 votos contra o projeto foram oriundos do SPD,
enquanto o KPD já estava na
ilegalidade e, portanto, impedido de votar. Os outros 444 votos (dos partidos
conservadores, liberais, nacionalistas, etc.) garantiram a vitória
acachapante da barbárie. E ainda há aqueles que querem jogar o nazifascismo
para o campo da esquerda numa irônica reverberação da epígrafe de Homer
Simpson: Se a culpa é minha, eu ponho em quem eu
quiser.
Portanto, a criminalização dos Partidos Comunistas no século XX não
foi em decorrência das mortes causadas pelo movimento, mas da ameaça potencial
que estes imprimiam ao sistema. Se hoje os partidos “comunistas” não são
criminalizados em muitas democracias liberais, isso não é evidência de que a
democracia vigora sobre a necessidade de subsistência do capitalismo, mas
apenas pela razão de não ser mais o comunismo uma ameaça global concreta
(senão para reacionários que enxergam vermelho por onde quer que olhem).
Assim, aqui começo a discussão do segundo e do terceiro pilar:
deveríamos proibir as ideologias em razão das mortes que foram realizadas em
seus nomes? Se sim, a partir de quantas mortes deveríamos fazê-lo? E quais
grandes ideias, movimentos e religiões relevantes na humanidade que não
produziram mortes e, portanto, poderiam sobreviver a este recorte?
O cristianismo não se espalhou pelo mundo apenas através das flores
e do convencimento, mas de perseguições a adversários,
derrubamento de templos pagãos, assassinatos e guerras. O
capitalismo, muito menos. A separação dos trabalhadores dos meios de produção e
a capilarização do sistema de troca pelo mundo através do imperialismo, dos tratados
desiguais e das guerras foram o mote da consolidação do capitalismo enquanto
sistema mundial. Os cálculos jogam pra mais de 106 milhões de
mortes como resultado desta empreitada.
A diferença é que as pessoas não conhecem esse lado da história,
tudo que é produzido e disseminado por aí é panfletagem conservadora e liberal
que tira da história somente o que se harmoniza com a propaganda anticomunista.
Isso quando não a deforma completamente.
Há outro elemento interessante: as duas ditaduras
pelas quais o Brasil passou (a de 37 e de 64) tiveram um caráter anticomunista.
Isso quer dizer que quem usou o Estado, no contexto brasileiro, para perseguir,
matar e asfixiar os seus adversários não foram os comunistas, mas seus
inimigos. As ditaduras da América Latina compartilham este mesmo caráter. A
ideia do comunismo como uma grande ameaça, nas nossas terras tropicais, está associada
às nossas piores tragédias no século XX. Então, se fosse esse o critério usado pelos
próprios reacionários para justificar a criminalização do comunismo, também deveria valer contra eles mesmos: não haveria dúvida de que também o anticomunismo seria
criminalizado (junto com o capitalismo, cristianismo etc.). E dado a nossa
história particular, haveria até mais razão em fazê-lo.
Ora, fica claro então que esta condenação aos ditos crimes do
comunismo não é algo despropositado, tampouco possui razões humanitárias, dado
a seletividade circunscrita em suas alegações. A razão por trás das cortinas é nada
mais do que a absolvição do capitalismo e a criminalização de todo pensamento
que o coloque em questão.
A visão que existe hoje sobre o comunismo é predominantemente ruim,
mesmo por aqueles que se dizem de esquerda. Existem razões até legítimas para
se pensar isso: o movimento comunista foi, de fato, e incontestavelmente derrotado
no século XX, muito mais pelo veneno incutido em suas próprias células, o
estatismo, etapismo, etc., do que por uma realização dos sólidos princípios
socialistas. Por óbvio que os adversários irão usar tais experiências como
atestado de que não há alternativas e que o capitalismo é o fim da história.
A partir de um rigoroso estudo publicado em 1953, o historiador
Robert Palmer demonstrou que o termo “democracia” foi usado de forma
predominantemente pejorativa nos discursos políticos e filosóficos até depois
da primeira guerra mundial (muito disso relacionado à necessidade de se criar
uma propaganda de promoção aos países capitalistas no contexto da ameaça
soviética). Até então, o ideal democrático era entendido como uma experiência
grega que deu errado, uma ideia que não funcionaria na prática e todos os
velhos jargões repetidos desde sempre. Hoje é raro alguém dizer que é contra a
democracia.
A história é cheia de voltas e reviravoltas, mas o certo é que ela
ainda não chegou ao fim.
REFERÊNCIAS
EVANS, Richard J. The Coming of the Third Reich
MARX, K. O Capital – Livro I.
PALMER, Robert Roswell. Notes on the Use of the Word
“Democracy” 1789-1799
PERRAULT, Gilles (1995). O livro negro do capitalismo. PAXTON, Robert. A anatomia do fascismo.
Publicado originalmente no site Ciência Popular Livre
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