Ao falar da escravidão na África e de como isso se sucedeu ao longo dos séculos, certamente nos vem a memória o que aprendemos desde cedo na escola: que os africanos foram escravizados por europeus, para serem usados como força de trabalho nas lavouras, nos engenhos, e em outros lugares onde se fazia necessário o uso da força. Mas é valido considerar que apenas os europeus foram os únicos responsáveis por esse regime que subjugou, e subjuga até hoje os povos africanos – e também os povos descendentes, e que apenas eles escravizavam seus semelhantes?
Quando desembarcaram na África no
século XV, com a pretensão de se apropriar de novas terras e mercados para
alcançar hegemonia e contornar a emergência de sua própria falência econômica,
fazendo isso na perspectiva da exploração, sob pretexto de
"descobrir" o que estava "perdido", tanto no globo
terrestre como na história, os europeus se depararam com modos de vida bem
distintos dos seus. Entre os africanos, a organização social e econômica girava
em torno de vínculos de parentesco em famílias extensas, da coabitação de vários
povos num mesmo território, da exploração tributária de um povo por outro. A
vinculação por parentesco a um grupo era uma das formas mais comuns de se
definir a identidade de alguém. Nos mostra que o lugar social das pessoas era
dado pelo seu grau de parentesco em relação ao patriarca ou à matriarca da
linhagem familiar. Nessas sociedades a coesão dependia, em grande parte, da
preservação da memória dos antepassados, da reverência e privilégios reservados
aos mais velhos e da partilha da mesma fé religiosa.
Mas entre esses povos, comumente haviam
disputas por territórios, por acesso a rios, por controles de rotas, etc., e os
vitoriosos faziam alguns escravos dentre os membros de vilarejos vencidos. Era
a chamada escravidão doméstica, que consistia em aprisionar alguém para
utilizar sua força de trabalho, em geral, na agricultura de pequena escala,
familiar. As terras eram abundantes, mas possuíam pouca mão-de-obra, então,
esse tipo de escravidão servia para aumentar o número de pessoas a serem empregadas
no sustento de uma família ou grupo, pois de nada valia a terra sem que se
houvesse gente empregada no cultivo de alimentos. Além disso, o cativeiro era a
punição para quem fosse condenado por roubo, assassinato, feitiçaria e, às
vezes, adultério. A penhora para pagamento de dívidas, o rapto individual, a
troca e a compra, para adquirir bens ou mesmo, em casos extremos, para
sobrevivência de um grupo quando a fome e a seca se faziam desastrosas, eram
outras maneiras de se tornar escravo. Portanto, aqui já se desfaz a ideia de
que apenas europeus escravizavam outros povos.
“O inimigo não entra na nossa casa,
a não ser que demos permissão para que ele entre”. Partindo desse
pressuposto, podemos pensar de maneira mais clara como este processo ocorreu.
Pois num continente tão grande, não seria nem um pouco fácil invadir
territórios desconhecidos para os europeus, alguns deles cheios de perigos, sem
que houvesse alguém que facilitasse isso. E estes facilitadores, eram
justamente, mercenários e até mesmo chefes de alguns povos africanas. Por causa
disso, o que antes era uma escravidão doméstica, entre povos africanos, se
tornou um grande esquema de tráfico de escravos, organizado e desenvolvido
principalmente por povos árabes que ocuparam o norte da África, por povos
muçulmanos, e pelos europeus, que deram uma dimensão intercontinental a esse
esquema, chegando inclusive às colônias, como foi o caso do Brasil.
Grandes impérios africanos, como o de
Mali e Songai, se beneficiaram muito com esse comércio, obtendo produtos como
armas, tecidos, manufaturas, contas de vidro e, sobretudo, bons cavalos já
equipados para a montaria, fundamentais para vencer guerras e ostentar poder e
riqueza. E sua economia e política foram completamente transformados com essa
prática, ao ponto que no litoral, a venda de escravos passou a determinar a
prosperidade e a força militar de uns e a miséria de outros grupos africanos. O
comércio com os europeus reforçou o poder de chefes dispostos a guerrear contra
povos inimigos com o único intuito de fazê-los cativos. A presença portuguesa
redimensionou a vida de populações litorâneas que, até então, não tinham poder
econômico e político significativo e que passaram a ter na captura de cativos
uma atividade corriqueira, sistemática, que atendia aos diferentes interesses
de povos africanos, e também dos europeus.
E a saga daqueles povos seguiu por um
bom tempo esse curso: por um lado, buscavam integrar-se com lucro no circuito
comercial transatlântico, mas por outro, viviam a trágica experiência da escravização
em massa. Não há dúvidas de que os comerciantes africanos eram os elos mais
fracos nesse circuito, pois viviam permanentemente na dependência do grande
traficante europeu, mas não podemos os isentar de culpa direta. Os negócios do
tráfico movimentaram a economia numa dimensão global, mas as suas consequências
foram brutais para as sociedades africanas, pois, eles não foram apenas
usurpados em suas economias e territórios, mas em seus modos de existência e de
pensamento, principalmente através de ações missionárias. Sabemos como a Igreja
manipulou o Cristianismo sob pretexto de uma ação civilizatória compactuada com
países europeus, que denegriu a cultura destes povos para justificar a busca do
lucro com o tráfico negreiro.
Mas não podemos deixar de notar que,
diferente do que era pregado principalmente pelo discurso eurocêntrico, os
africanos apresentavam uma estrutura hierárquica social e política bem
definidas, além de interesses econômicos claros, que acabaram se tornando a
principal causa da negação e subjugação dos povos africanos e seus
descendentes, impetrando assim nas sociedades, especialmente a brasileira, o
racismo, objetivado e legitimado por esses atos.