O filme Abril Despedaçado, de Walter Salles, mostra o conflito de terras entre duas famílias no interior nordestino do Brasil, que se mantém durante várias gerações e se caracteriza por um ritual no qual sempre os filhos mais velhos de cada família se enfrentam em um duelo de morte em nome de suas terras, de forma que as mortes se alternam entre as famílias. Abril Despedaçado mostra a repercussão desta prática na história de vida dos personagens, principalmente em relação ao protagonista Tonho (Rodrigo Santoro) e seu irmão Menino.
Podemos
analisar essa prática através de três conceitos, que nos ajudam a visualizar o
porquê de tal ato ainda continuar institucionalizado nessas regiões até os dias
de hoje. Os conceitos são: o de Processo Civilizador, Código do Sertão e o
Sistema de Pistolagem.
O
primeiro conceito, que é baseado no livro de mesmo nome, do sociólogo Norbert
Elias, que nos questiona sobre como pensaríamos se um homem da sociedade
contemporânea ocidental e atual fosse levado para uma época remota, onde
provavelmente descobriria hábitos e modos que consideraria completamente
inadequados, selvagens, e hábitos que consideraria aceitáveis. Pra ele, esta
sociedade, baseada em seus pressupostos de costumes aceitáveis, não seria
civilizada. E basicamente é o que acontece com nós mesmos quando visualizamos
uma civilização como a retratada no filme, temos uma visão de estranhamento, de
abominação desses costumes, principalmente os que remetem a violência, pois por
desconhecer os motivos dos atos, os colocamos num plano abominável.
O
conceito do Código do Sertão aparece justamente para entendermos as motivações
que, de certa forma, legitimam estas atitudes. No livro Homens Livres na Ordem
Escravocrata, de Maria Sylvia, no capítulo de mesmo nome do conceito, ela
explica que no sertão, a violência é uma espécie de conduta intrinsecamente
ligada à sociedade daquela época, principalmente nas comunidades longe dos
centros urbanos, onde a sobrevivência com seus escassos meios de sustento em
terras inóspitas e rígidas, assim como ter de conviver juntamente com a
natureza e em lutas incessantes contra esta em constantes guerras, só reforçam
ainda mais uma forma de cultura rude e primitiva, como podemos ver no filme. Os
casos relatados neste capítulo eram silenciosamente admitidos como forma de
justificar e solucionar conflitos, geralmente motivados pelo mantimento da
honra, pessoal, e da sua família, além de uma luta pela posse de terras, algo
que é recorrente naquelas regiões, e foi destaque no filme, onde toda a
violência presente gira em torno desta luta.
Então, estes motivos fizeram com que a violência no sertão se tornasse sancionada e positiva, um padrão normal de conduta, algo banal e admitido publicamente. Uma legalidade que se faz presente como um comportamento autoritário e permanente, que contribui constantemente na conduta das diversas esferas da vida daquelas pessoas. Portanto o caráter desse código que aprovou os atos de violência está amarrado às próprias condições de constituição e progresso social daquelas pessoas pobres e livres.
Então, estes motivos fizeram com que a violência no sertão se tornasse sancionada e positiva, um padrão normal de conduta, algo banal e admitido publicamente. Uma legalidade que se faz presente como um comportamento autoritário e permanente, que contribui constantemente na conduta das diversas esferas da vida daquelas pessoas. Portanto o caráter desse código que aprovou os atos de violência está amarrado às próprias condições de constituição e progresso social daquelas pessoas pobres e livres.
E
tudo isso fica claro quando analisamos o conceito de Sistema de Pistolagem,
através do artigo do sociólogo César Barreira, intitulado “Pistoleiro ou
Vingador: Construção de Trajetórias”, onde ele nos mostra, através do
depoimento de duas pessoas que possuem fortes indícios de participação no
sistema de pistolagem, um como pistoleiro, e outro como vingador, como isso
tudo é legitimado, e se perpetua de forma tão intensa e naturalizada nesta
sociedade.
O
primeiro depoimento, de uma pessoa que se comporta claramente como um
pistoleiro, mostra, de forma resumida, que os costumes embrutecidos, a vida
difícil, e quase sempre sem expectativa de mudança que criam um desejo, uma
ganância pelo dinheiro, poder e uma espécie de fama lendária, fizeram com que
ele escolhesse esse caminho para sua vida, um caminho nômade, correndo riscos a
todo tempo, mas que todas as vantagens que se pode obter com essa prática
tornam ela ainda mais emblemática e simbólica para quem vive nessas condições.
O segundo
depoimento traz questão da vingança à tona, que é amplamente recorrente e
naturalizada nesse modelo de sociedade, algo que fica explícito nos trechos
mais importantes de Abril Despedaçado. Uma vingança baseada na violência
sofrida nas guerras de família e na reparação desses crimes “Na mesma moeda”,
“Olho por Olho, Dente por Dente” (Lei de Talião), novamente justificada na
honra. E aqui uma diferenciação: o crime de vingança, de honra, é bem mais
aclamado do que o crime de pistolagem, pois, como o depoente diz, “O pistoleiro mata por dinheiro, e o
vingador tem amor por seu sangue, pois quando vê seu sangue derramado, quer ver
o do outro derramado também”.
Claramente, são
motivos que, para quem está de fora, ou vem de outra criação, são abomináveis e
não possuem justificativa. Mas para quem vive dentro dessas relações, é tudo o
que importa. E tudo é condicionado pelas situações de vida a qual estão submetidos,
numa espécie de retorno infinito, onde essa violência não irá acabar enquanto
os seus inimigos não forem abatidos, pois esses valores são mais importantes
que a vida nessa lógica cultural.